Luanda - Pode um Membro do Governo (Executivo) em funções, ser simultaneamente, empresário? A problemática das incompatibilidades no nosso ordenamento jurídico

Fonte: Club-k.net

Nota Prévia


Com a entrada em funcionamento de um novo Executivo, após a tomada de Posse do Presidente da República Eleito e a formação de um novo Governo, bem como a abertura da Legislatura (2017- 2022) da Assembleia Nacional, a 15 de Outubro, voltou à ribalta nos corredores das academias, a questão das incompatibilidades dos titulares dos órgãos de soberania. O Presidente, o Vice- Presidente e os demais integrantes do Executivo, são os titulares dos órgãos de soberania mais visados, pois são eles que têm a responsabilidade de gerir o erário público (dinheiro público) e, por isso, recai sobre eles, maiores suspeições sobre a possibilidade de envolverem-se em práticas, que violem os princípios e regras das incompatibilidades.

E como é um tema abrangente, vamos apenas nos debruçar sobre as incompatibilidades dos integrantes do Executivo, da Assembleia Nacional, dos titulares dos órgãos judiciais (Tribunais) e destacar as incompatibilidades de carácter privado.


Vejo que já todos tomaram os assentos, vamos dar início à agradável viagem ao mundo do Direito.

2. Incompatibilidades

2.1. Razão de Ordem

As incompatibilidades visam permitir que haja transparência, independência e dignidade aos titulares dos órgãos de soberania. Nos Estados Democráticos e de Direito, as Constituições e as Leis, em homenagem ao Princípio de Separação de Poderes, estabelecem um conjunto de princípios e regras para que os titulares destes órgãos, possam exercer as suas funções com lisura, transparência, honestidade, imparcialidade e sentido de Estado. Por isso, o conjunto de incompatibilidades é vasto. Vamos telegraficamente indicar algumas, mas daremos destaque às de carácter privado remunerado.

2.2. Conceito

Entende-se por incompatibilidade em sentido jurídico, a proibição imposta por lei, aos agentes públicos, de acumular cargos e/ou funções de ordem pública ou privada.

2.3. Espécies

Há incompatibilidades para as funções públicas e incompatibilidades para actividades de carácter privado, a saber:


Incompatibilidades de funções públicas - são aquelas que proíbem os titulares de cargos públicos de exercerem outras funções públicas. Em homenagem ao Princípio da Separação de Poderes, por exemplo, o Presidente da República, ou qualquer outro integrante do Executivo, não pode exercer funções próprias dos órgãos judiciais (fazer julgamento ou emitir sentenças);

Incompatibilidades de actividades privadas - são proibições legais que impedem os titulares dos órgãos de soberania, de exercer algumas actividades de carácter privado, sobretudo remuneradas, (exemplo, é o caso da proibição de um membro do Executivo em exercer funções de gerência numa sociedade comercial).

2.4. Regime Jurídico das Incompatibilidades dos Agentes Públicos

As incompatibilidades dos titulares dos órgãos de soberania, vem regulado na Constituição e na Lei da Probidade Pública (Lei no3/10 de 29 de Março). De seguida, analisaremos as incompatibilidades de cada órgão de soberania.

2.4.1 Presidente da República (e Vice-Presidente da República)

As incompatibilidades do Presidente da República, vêm reguladas nas disposições consagradas nos artigos 110o e 149o, no1, na alínea a) da Constituição. As incompatibilidades do Presidente da República e Vice-Presidente são as seguintes : a) Magistrados Judiciais e do Ministério Público; b) Juízes do Tribunal Constitucional ou outros e de Provedor de Justiça (ou Provedor de Justiça Adjunto); c) ser membro da Administração Eleitoral (CNE), exercer funções militares outras que não a de Comandante-em-Chefe.

Como se vê, o legislador constitucional não consagrou uma enumeração taxativa. Consideramos que os requisitos de Elegibilidade e as Incompatibilidades dos Deputados à Assembleia Nacional, constituem a essência do regime jurídico constitucional das incompatibilidades do Presidente da República e do Vice-Presidente. Mas há outras incompatibilidades que decorrem da lei, dos princípios gerais do Direito e da lógica jurídica. O Presidente não pode exercer actividades públicas, como ser Presidente do Conselho de Administração de uma empresa Pública ou ser Administrador Municipal.

Nas incompatibilidades de caráter privado, o Presidente e o Vice-Presidente não podem exercer funções privadas pois, não só, afectariam a dignidade do cargo, como é impensável termos um Presidente subordinado a outrem. De resto, a Constituição é peremptória em dizer que as competências do Presidente, são aquelas que estão consagradas constitucionalmente (artigo 117o). Outrossim, quer a gerência de empresas, passando pelo exercício de actividades liberais (advocacia por exemplo), também estão vetadas a estes titulares de órgãos de soberania: aplica-se aqui por analogia, as incompatibilidades dos Deputados (artigo 138o e 149o da Constituição).

2.4.2 Membros do Executivo

Os Ministros de Estado, Ministros, Secretários de Estados e Vice-Ministros, também estão sujeitos ao regime das incompatibilidades. Este vem consagrado no artigo 138o da Constituição, o número 1 e dispõe que: “são incompatíveis com o mandato de Deputado e com o exercício da actividade de Magistrado judicial ou do Ministério Público”. O número 2 consagra que: “são ainda incompatíveis com uma das seguintes actividades: a) empregos remunerados em qualquer instituição pública ou privada, excepto as de docência ou investigação científica; b) exercício de funções de administração, gerência ou de qualquer cargo social em sociedades comerciais e demais instituições que prossigam fins de natureza económica; c) exercício de profissões liberais.

Podemos com esta disposição Constitucional, constatar que os Membros do Executivo, estão proibidos por lei, a exercerem actividades remuneradas, com excepção da docência e investigação científica. As proibições de ordem pública, visam garantir o respeito pelo princípio da separação de poderes e da independência das funções que exercem (poder executivo) e as de ordem privada, visam garantir a imparcialidade e a transparência que deve existir na causa pública. Não é aceitável que, por exemplo, um Ministro possa ser gerente de uma sociedade comercial, não só pode colocar em causa as regras de concorrência, como pode favorecer a empresa que esteja a gerir. Haveria uma promiscuidade entre as funções públicas e privadas, inaceitáveis num Estado Democrático de Direito.

2.4.3 Deputados

Os nossos deputados eleitos para exercer funções na Assembleia Nacional, estão igualmente sujeitos a um regime de incompatibilidade que vem consagrado no artigo 149o da Constituição, que dispõe que “o Mandato de Deputado é incompatível com o exercício de funções de: a) Presidente da República e Vice-Presidente; b) Ministro de Estado, Ministro, Secretário de Estado e Vice-Ministro; c) Embaixador, Magistrado Judicial e do Ministério Público, Provedor de Justiça e Provedor de Justiça Adjunto; Membros do Conselho Superior da Magistratura Judicial e do Ministério Público; d) Governador Provincial, Vice-Governador Provincial e demais titulares dos órgãos da Administração Estado; h) titulares dos órgãos das Autarquias Locais; Membros dos órgãos de Direcção, Administração e Fiscalização de empresas públicas, institutos públicos e associações públicas. O número 2o dispõe que o mandato é igualmente incompatível com: a) exercício de funções públicas remuneradas em órgãos da administração directa ou indirecta do Estado; b) o exercício de funções de administração e de gerência ou de qualquer cargo social em sociedades comerciais e demais instituições que prossigam fins lucrativos; c) o exercício de funções jurídico- laborais subordinadas com empresas estrangeiras ou organizações internacionais; d) o exercício de funções que impeçam uma participação activa nas actuações e actividades na Assembleia Nacional, excepto as funções de dirigente partidário, de docência ou outras como tal reconhecidos pela Assembleia Nacional.

Como podemos constatar, a Constituição foi ao detalhe, na abordagem das incompatibilidades dos Deputados. Ao dispor que os mesmos no desempenho ou a designação para algumas da funções que constituem incompatibilidades é a razão justificativa de adiamento da tomada de posse. E mais: a ocorrência de situações de inelegibilidade superveniente às eleições (por exemplo, ser nomeado Ministro), é incompatível com a função de Deputado. Por fim, o legislador constitucional deixou a porta aberta aos próprios deputados, para estabelecerem em leis ordinárias outras incompatibilidades que acharem convenientes.

Pensamos que, com as devidas adaptações, o regime da incompatibilidade do Deputado é o melhor tratado na Constituição. Deve ser o regime regra a seguir pelo Presidente da República, Vice- Presidente da República e os membros do Executivo e demais titulares dos órgãos judiciais.

3. Das Incompatiblidades de caráter privado em Especial

3.1 Razão de Ordem

Por ser a mais violada e a mais discutida nas academias, a proibição que impende sobre os titulares dos órgãos de soberania, de exercer actividade de caráter privado, sobretudo remunerada, merece uma especial atenção, sobretudo as ligadas às sociedades comerciais.


E as questões que se têm levantado são estas: pode o Presidente da República, o Vice-Presidente da República e os restantes integrantes do Executivo, Deputados, e Magistrados Judiciais, serem gestores e administradores de empresas comerciais (privadas)? E podem ter participações (serem sócios)? Podem no exercício das suas funções públicas criarem sociedades comerciais?


A primeira questão já foi respondida. Vale, contudo, acrescentar que, para o Presidente da República e o Vice-Presidente, achamos que somente funções partidárias podem ser exercidas pelos mesmos. Nem a docência nem a investigação cientifica devem ser ocupações para o Chefe de Estado e nem para o seu Vice. Já para os restantes integrantes do Executivo, para lá das funções partidárias, podem, a nosso ver, exercer actividade docente e de investigação cientifica. A Lei proíbe os Magistrados Judiciais e do Ministério Público, de ter filiação partidária. Para estes, a docência e a investigação cientifica é permitida, mas jamais a gestão e direcção de uma qualquer sociedade comercial.

3.2. Participação em Sociedades Comerciais

Nem a Constituição nem a Lei, proíbe que qualquer titular de órgão de soberania tenha participações em sociedades comerciais. Tirados os casos de incompatibilidades entre o cargo que exerce e a sociedade comercial em que tem participação (Governador do Banco Nacional de Angola não pode ser accionista de um banco privado), nos demais casos não há qualquer incompatibilidade. Todavia, os titulares de órgãos de soberania, não perdendo as suas participações sociais por causa dos cargos que ocupam, não podem estes, no exercício das suas funções, entrar em novas participações sociais. Tal comportamento constituiria uma flagrante violação, à dignidade do cargo que ocupa e levantaria muitas suspeições sobre a sociedade criada. Pensamos que deve haver uma clara separação entre a actividade pública e a actividade privada.

4. Conclusões

Depois desta curta viagem ao sempre aliciante mundo do direito, resta-nos concluir, respondendo à questão colocada no início: Pode um Membro do Executivo (incluindo o Presidente e Vice presidente da República) ser empresário?


A resposta é claramente negativa. O Presidente e Vice-Presidente, Membros do Executivo, Deputados e Titulares dos Órgãos Judiciais (Juízes e Procuradores), não podem exercer cargos de gerência, nem de administração de empresas. Não podem ter cargos remunerados, excepto a docência e a investigação cientifica.

A lei não proíbe que os titulares tenham acções ou participações em empresas, todavia pensamos que não devem criar ou participar em novas sociedades, no exercício das funções públicas, em

homenagem à transparência, ao respeito do princípio de separação em funções públicas e privadas, à dignidade do cargo e da boa gestão da coisa pública.

5. Recomendações

Depois desta abordagem jurídica das incompatibilidades dos titulares dos órgãos de soberania, se afigura oportuno sugerir o seguinte:

O respeito do Regime das Incompatibilidades consagrado na Constituição e na Lei, sobretudo a nível da Assembleia Nacional onde há relatos de violação do mesmo.

Declaração de Bens dos titulares dos órgãos de soberania para conferir maior transparência.


Os titulares dos órgãos de soberania que possuam participações em sociedades comerciais devem abster-se de favorecer as suas empresas ou fazerem negócios consigo mesmo.

Os titulares de órgãos de soberania, no exercício das suas funções, não devem criar nem entrar em participações de sociedades comerciais.

Isto é possível,
Se Pensar Direito !

Bibliografia

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dina, 1996,
. ARAÚJO, Raúl, Presidente da República no Sistema Político de Angola, 2a Edição, Almedina, 2012
. CANOTILHO, José Gomes, Direito Constitucional, 7a Edição, 2017
. MERLIN Cléve, Clemerson, Direito Constitucional Brasileiro - Teoria da Constituição Direito Fundamentes - Vol.1, Thomson 2015
. BARROSO Luís Roberto, O Novo Direito Constitucional Brasileiro - Contribuições para a Teoria e Prática, 1a Edição, 2012
. SAMUELSON Paul e William Naudaus Economia, 19a Edição, 2013