Luanda - Era uma vez o kamartelo. Deixou de ser substantivo próprio ou comum e transformou-se em verbo. Esse verbo – kamartelar – não ficou-se pelo pretérito perfeito ou imperfeito. Nem por um futuro de um tempo ou modo qualquer. Não. O substantivo kamartelo, acrescido de um pronome pessoal referente a nós, conjugado na terceira pessoa do plural, e de um desconcertante e doloroso presente do indicativo, fez-se verbo, habitou entre nós e ficou assim: ELES KAMARTELAM-NOS!
 
Eles kamartelam os nossos sonhos. Os sonhos de um país onde todas as crianças possam fazer um gigantesco parque para as suas brincadeiras. Onde o pão e o mel que brotam da terra encham todas as narinas com o seu perfume de fartura. Onde o hoje e o amanhã se confundam na harmonia de uma esperança total, de um abraço inclusivo, de uma fraternidade nacional. Eles kamartelam as nossas esperanças.
 
Eles kamartelam as nossas preces. As preces por uma identidade prenhe da generosidade que se alimenta de sorrisos de felicidade. Aquela felicidade sem tempo nem lugar, regada pelo suor de homens probos sedentos de justiça. Assim como kamartelam as nossas casas, as nossas vidas, eles kamartelam o nosso lugar. Lugar na História, lugar no Tempo, lugar no espaço chamado Angola... eles kamartelam o seu próprio passado de gesta gloriosa de homens sonhadores de liberdades totais. Eles kamartelam-se a eles mesmos.
 
Porque um dia houve, que confundimo-nos na mesma identidade. Na cumplicidade de sonhos libertários eles foram povo – nós – e nós fomos eles. Eles que nos kamartelam hoje. Eles que, esquecidos do suor e sangiue derramado em conjunto feito argamassa desta Nação, kamartelam as alianças antigas, a argamassa dos alicerces do edifício que abriga o seu verbo. Esse verbo, outrora desconhecido que eles resgataram da opressão derrubada, assume hoje vida e habita entre nós. Eles kamartelam-nos e kamartelam-nos feio!
 
Kamartelam a casa da zungueira arrancada da sua bwála que, regressada da esquindiva aos fiscais encontra o kubata de zinco feita em escombros. Ela atira-se raivosa carregando com o filho às costas contra o buldozzer; e depois chora impotente perante a indiferença do gigante que prossegue imperturbável a conjugação do seu verbo. Eles kamartelam. E o que deixa raiva no peito, sofrimento nos olhos e frustração no coração da zungueira, é que o verbo no cruel presente do indicativo é conjugado a mando dos seres paridos das suas próprias entranhas. Assim eles kamartelam-na, a pobre zungueira mãe do dono do verbo; kamartelam a terra onde está enterrado o seu umbigo, kamartelam o céu onde repousam os seus sonhos de futuro.
 
Kamartelam o candongueiro do “mortelado” de mil batalhas, que aí encontrou a alternativa para não matar e não roubar. Que não tem tempo, dinheiro, nem esquemas para tratar a montanha dos documentos da legalização do seu azul e branco. O Modelo 21 que só sai com o esquema da gasosa grande. Kamartelam a sua fé na boa vontade dos homens e mulheres pelos quais o seu sangue e suor vertera. Impotente perante o verbo, vem-lhe à mente o futuro de fome e miséria que agora espera os filhos lá em casa. Lembra-se então da raiva justiceira que ardera como fogo no seu peito e lhe dera a força de avançar sem medo contra os canhões do inimigo. E quando confuso pergunta-se se os mandantes do verbo são ou não seus inimigos, kamartelam-lhe a fé que sustentara a coragem nos combates. Kamartelam o seu orgulho de pai provedor e kamartelam o respeito que qualquer homem ou mulher tem direito de sentir por si próprio. Kamartelam o seu táxi, kamartelam o sustento fa família, kamartelam a esperança que a mulher não fuja para a casa da mãe,  que arranje a coragem de ir à zunga. Kamartelam a felicidade modesta, honesta e kamartelam a inocência dos filhos que ele – o guerreiro em repouso – ensinara a acreditar que as estrelas são do Povo...
 
Kamartelam a casa do pobre, a barraca da viúva, o negócio da zungueira, o táxi do mortelado, o chimbeco do desenrascado. Para eles tudo é ilegal – salvo o que é deles próprios – e kamartelam o sentido de justiça por todos sonhado porque eles não hesitam em kamartelar tudo. Tudo kamartelam.
 
Kamartelam a harmonia da conversa, no trungungu de mostrar serviço. Agora porque o Dono quer terreno, correm todos para mostrar quem é mais. Quem obedece mais rápido às ordens superiores, dimanadas de um Olimpo construido por eles, para eles. Se alguém atrasa-se para conversar nem que seja com o Povo, o outro ultrapassa-o pela direita e chega à meta primeiro. A meta onde o Chefe vê quem chega e quem fica. Não vêm que a pista da corrida é feita do povo que eles kamartelam no afã de serem vistos pelo Chefe da meta? Kamartelam a conversa que demora as corridas, o trungungu é que adianta e assim, eles kamartelam a conversa de jango com a sabedoria do povo. Eles kamartelam só.
 
E assim, o substantivo tornou-se verbo, e habitou entre nós. Eles kamartelam-nos, eles kamartelam-se. Kamartelam-se entre eles e kamartelam o povo todo.
 
Kamartelam até ver... porque eles kamartelam o País, kamartelam a Nação!

Fonte: LAC