Luanda - Quando Palmira da Silva chegou, naquela tarde de terça-feira, para fazer hemodiálise, ao Centro Pluribus África, no Hospital Américo Boavida, já a equipa de reportagem do Jornal de Angola estava no local há meia hora.

*Rodrigues Cambala
Fonte: JA

Sentámo-nos à entrada do Laboratório de Anatomia da Faculdade de Medicina da Universidade Agostinho Neto. Há três cadeiras corridas, iguais àquelas dos parques públicos, onde cabem três pessoas. Uma está ocupada por funcionários. Outras estão livres. Volta e meia, fitam-nos dos pés à cabeça. Dois dos três funcionários abandonam o espaço coberto de chapas e entram pela única porta de ferro e com vidro esbatido na parte inferior.

 

Agora, o “nosso colega” do átrio não tem com quem falar. Encerra os ouvidos com auriculares conectados a um telefone de teclado. À esquerda, estão plantas humedecidas. De azul e branco, Palmira da Silva, 26 anos, aproxima-se com o telefone no ouvido esquerdo, para ser avistada. Aponta o trânsito caótico como a principal culpada da fadiga. Antes de iniciar a conversa, avisa que não vai estar só. Recebe instantaneamente uma mensagem e encaminha outra para o secretário-geral da ADIRA (Associação de Defesa dos Direitos dos Insuficientes Renais de Angola).


Palmira da Silva vive há seis anos com insuficiência renal crónica. O sofrimento por que passa, como outros milhares, é imensurável.
“Uma sessão de hemodiálise fica à volta de 80 mil kwanzas, com direito à assistência médica e medicamentosa, transporte, apoio psicológico e nutricional. Em três sessões por semana, o Estado paga 240 mil kwanzas”, diz numa voz contida. Para custear as despesas e o arrendamento da casa, a jovem dá aulas de explicação.


“O meu colega da Associação já está próximo”, afirma, depois de ler uma mensagem no telemóvel. Enquanto aguardamos, a conversa flui e ganha novos capítulos. Há um ano, um grupo de pacientes com insuficiência renal criou uma associação para defender os interesses dos doentes e alertar a população para a doença, apesar de ser pouco divulgada.


O atraso no pagamento de salários levou, no princípio daquela semana, os trabalhadores dos centros de hemodiálise de Benguela e Lobito a paralisarem o trabalho. Em causa estava uma dívida de cinco meses. O Jornal de Angola apurou junto de uma fonte da Pluribus África que os centros de hemodiálise de Luanda também aguardam por pagamentos por parte do Governo. Todos os centros são administrados por empresas privadas. Os doentes são encaminhados por intermédio de Junta Médica. A nível do país, somente as províncias de Luanda, Benguela, Huambo e Malanje contam com estes serviços, que funcionam dentro dos hospitais públicos.


Em Luanda, o centro de Pluribus África, no Hospital Américo Boavida, continua a receber pacientes, mas baixou o tempo das sessões de quatro para três horas. “Os pacientes estão ‘sub-hemodialisados’ com esta situação e, se prevalecer por mais tempo, vamos ter mortes generalizadas”, admite Palmira da Silva.


Outras unidades deixaram de acolher mais pacientes e mantêm as quatro horas por sessão. Os serviços são prestados nos hospitais Militar, Prenda, Josina Machel, Multiperfil e algumas clínicas.


“Somos discriminados. A nossa Lei de pessoas com deficiência não enquadra a insuficiência renal. Já questionámos os deputados da 7.ª Comissão e não nos conseguiram dar uma explicação”, sublinha.


Os pacientes renais queixam-se de não receber a medicação todas as semanas. A Eritropoietina e Aranesp escasseiam. “A Aranesp, por exemplo, é dada uma vez em cada oito meses”, revela a paciente.


Uma enfermeira do Centro de Hemodiálise Pluribus África confirmou a informação, devido à dívida que o Estado tem para com a instituição. Contactada pelo Jornal de Angola, a direcção promete em breve falar sobre o assunto. A Aranesp ajuda a manter os doentes vivos, quando o rim perde capacidades, e tem de ser aplicada uma vez por semana, explica a enfermeira, referindo que a falta desta medicação causa anemia, reduz a hemoglobina e leva os pacientes à transfusão de sangue quase frequente. “Alguns morrem por falta de sangue”, disse.


Palmira da Silva sabe dos efeitos positivos da Aranesp e reforça que o remédio é imprescindível para o doente renal e quase impossível de encontrar nas farmácias. O preço de uma ampola pode atingir dez mil kwanzas. “Se receber uma ampola no princípio do ano, só volto a beneficiar de mais uma no final do ano, pois alega-se haver uma dívida do Governo para com o centro”, explicou.
A maioria dos doentes renais é pobre e desempregada. Muitos vendiam a própria medicação a outros doentes. “Por isso, administramos o remédio no hospital, para evitar a sua comercialização”, justificou.


“A condição financeira dos doentes é precária. Os remédios são caros. Mesmo que haja, os doentes renais vivem desprovidos de recursos financeiros para os adquirir nas farmácias”, acrescentou.


“Sim, é pura verdade. Não há quem ajude a pessoa com insuficiência renal”, confirma Palmira da Silva.


A ADIRA está a envidar esforços junto do Ministério da Família e Acção Social para que os doentes sejam inseridos na lista das pessoas com deficiência, no sentido de ganharem protecção legal, tal como acontece em outros países.

O homem por quem se espera

Palmira da Silva envia uma mensagem por telefone para Timóteo Sebastião, secretário-geral da ADIRA. A sua presença, embora tivesse a ver com uma entrevista, causou certa emoção ao repórter. Ainda em finais dos anos 80, o autor desta reportagem foi aluno da pessoa que esperávamos. Quis o destino que nos cruzássemos desta forma e naquele lugar quase trinta anos depois. Enfim, os discípulos nunca se esquecem dos mestres.


A insuficiência renal trouxe uma deficiência de audição ao professor Timóteo Sebastião, 48 anos. O antigo jogador está firme, como sempre. A conversa é feita em voz alta ou por mensagem escrita. Os ouvidos estão conectados a um aparelho de audição. Mal o professor se senta, Palmira da Silva relata que os doentes de insuficiência renal aguardam por uma melhor atenção por parte do Estado.


Os pacientes justificam que a insuficiência renal pode progredir com o passar do tempo, causando deficiência a um órgão. Deixam de caminhar, ou perdem a visão e a audição. “Não temos onde nos queixar, porque a Lei não nos protege em nada”, ressalta a jovem paciente, franzindo a testa.

Programa Nacional de Hemodiálise é a principal barreira

Timóteo Sebastião entende que a principal barreira está no programa nacional de hemodiálise, uma vez que durante mais de trinta anos o Estado enviou pacientes para Portugal. “Esses eram cidadãos privilegiados”, diz sem balbuciar. E acrescenta: “Isso faz com que não se preste muita atenção ao programa em Angola, porque os cidadãos privilegiados, quando ficam afectados pela doença, vão fazer diálise em Portugal.”


O secretário-geral da ADIRA vê nisso um problema, dizendo que “o ponto da situação é que essa evacuação é por tempo indeterminado, porque o transplante tarda em acontecer, quando vão ao exterior”.


Sobre a possibilidade de Angola vir a ter uma Lei de Transplante, Palmira da Silva diz que não há informação, mas a associação defende a aprovação, porque “a hemodiálise gasta muito dos cofres do Estado”. “Não devemos criar um programa de hemodiálise sem protecção legal e social do paciente, pois isso vai fazer com que a hemodiálise seja vista apenas do lado comercial, como um bom negócio”, afirma Timóteo Sebastião.


O secretário-geral da Associação defende que o Estado paga avultadas somas a privados, mas não fiscaliza. “A doença é crónica e o Estado não pode deixar tudo na mão dos privados”, pontualiza. Para ele, o doente renal em Angola não tem um estatuto específico no ordenamento jurídico e, por via disso, não tem enquadramento em nenhum programa do Executivo.


Há pacientes que deixam a casa e o emprego para procurarem serviços de hemodiálise em outras províncias. São abandonados e vivem necessidades extremas, sem ter, às vezes, comida e hospedagem. Alguns chegam a perder a vida. A ADIRA insiste que o Estado deve assumir a responsabilidade sobre o tratamento. O secretário-geral justifica: “Os centros [privados de prestação de serviço] funcionam dentro dos estabelecimentos do Estado há muitos anos. O Hospital Geral de Luanda tem espaço para hemodiálise que não funciona. O Estado como regulador deve também prestar este serviço.”

Faltam estatísticas reais

Embora faltem estatísticas exactas, a associação informou que o número de insuficientes renais está a aumentar em Angola. As principais causas são a diabetes, hipertensão e a malária. Alguns casos têm a ver com factores hereditários. E “há, na realidade, um exíguo número de máquinas de diálise para atender a demanda”, aponta Timóteo Sebastião.


Palmira da Silva interrompe para dizer que as dificuldades financeiras que afectam a prestação de serviços têm consequências para os doentes.

É preciso aceitar a doença

Aceitar a doença não tem sido tarefa fácil. Há pacientes que só aceitam a realidade depois de ouvirem o testemunho de outros. Às vezes, nem psicólogos nem equipa médica conseguem convencer aqueles que, a partir de certa altura, vão depender de uma máquina para viver.


Vários pacientes são abandonados pelos parceiros e familiares. Palmira da Silva testemunha: “A minha mãe faleceu um ano antes de eu ficar doente. Fui psicóloga de mim mesma. Passei cinco anos a lutar sozinha, depois do abandono familiar. E sigo a minha vida normal para manter-me.”


Os insuficientes renais pretendem que o Estado coloque um ponto final na evacuação de pacientes para o exterior do país, criando condições hospitalares em Angola para transplante e hemodiálise.

Dificuldades de locomoção

Faltam três minutos para as 16 horas. Timóteo Sebastião abandona a equipa de reportagem para efectuar mais uma sessão de hemodiálise, que visa superar as falhas da função renal. O tempo não espera. Despede-se à pressa e põe-se a correr, deixando Palmira da Silva preocupada. “Eu já não corro, nem consigo”, admite.


Quando Palmira da Silva foi pela primeira vez ao centro de hemodiálise contou com o alento de Timóteo Sebastião e de uma outra paciente que já não pode andar, necessitando de alguém de boa vontade que lhe possa oferecer uma cadeira de rodas.


“Os psicólogos não chegam para tantos doentes. No meu caso, quando me explicaram sobre a doença, não percebia nada de hemodiálise, mas graças a estas duas pessoas estou em pé”, diz com um olhar semi-cerrado.


Tal como os outros doentes, a jovem atravessa obstáculos incalculáveis para conseguir um emprego. O paciente renal pode trabalhar nas horas em que não faz diálise. Só não pode ser submetido a trabalhos duros.


A grande preocupação dos doentes é a discriminação decorrente da falta de humanismo de alguns funcionários da saúde. Alguns desconhecem as especificidades de um insuficiente renal. Para tal, a ADIRA sugere que as escolas de formação de enfermeiros e de médicos aprofundem matérias ligadas à nefrologia.


“Fui detectada com uma febre tifóide. Depois um paludismo e um mês mais tarde, já em estado crónico, uma insuficiência renal, porque alguns técnicos de saúde desconheciam os sintomas”, assinalou Palmira da Silva.


A ADIRA acredita que, no país, haja mais de duas mil pessoas com a doença renal crónica.