Luanda - O jornalista angolano Rafael Marques alertou hoje que o poder judicial do país continua a ser utilizado contra quem denuncia, apesar do atual discurso de luta contra a corrupção promovido pelo novo chefe de Estado, João Lourenço.

Fonte: Lusa

Rafael Marques falava à agência Lusa após ser agendado para 05 de março o início do julgamento em que é acusado de crimes de injúrias e ultraje a órgão de soberania, após uma queixa, em 2017, do então procurador-geral da República, João Maria de Sousa.

 

"O Presidente da República promove a luta contra a corrupção nos seus discursos, enquanto os grandes corruptos dançam impunes. Os tribunais apenas servem contra os que denunciam os grandes vilões e os pilha-galinhas. Aliás, estes últimos até são bestas para execuções sumárias", criticou Rafael Marques.

 

Na origem deste processo está uma notícia de novembro de 2016, colocada no portal de investigação jornalística Maka Angola, do jornalista Rafael Marques, com o título "Procurador-Geral da República envolvido em corrupção", que denunciava o negócio alegadamente ilícito realizado por João Maria de Sousa - que cessou funções de procurador-geral da República no final de 2017 -, envolvendo um terreno de três hectares em Porto Amboim, província do Cuanza Sul, para construção de condomínio residencial.

 

"Vou lá, ao tribunal, apenas para negritar o texto todo. Os corruptos querem sempre reclamar probidade, enquanto usam e abusam do poder judicial para se manterem impunes e punir quem se lhes opõe", disse ainda Rafael Marques.

 

A notícia em causa, de Rafael Marques, referia que "ao longo do exercício da função de Procurador-Geral da República, o general João Maria Moreira de Sousa tem demonstrado desrespeito pela constituição, envolvendo-se numa série de negócios", acrescentando que esse "comportamento" tem contado "com o apadrinhamento do Presidente da República, José Eduardo dos Santos [que abandonou o poder em setembro de 2017], que lhe apara o jogo".

 

"Aqui aplica o princípio informal e cardeal da corrupção institucional em Angola, segundo a qual uma mão lava outra", escreve a acusação do Ministério Público (MP), citando a notícia da autoria de Rafael Marques.

 

A notícia deu origem a uma participação criminal contra o jornalista angolano e, refere a acusação do MP, no decurso das diligências realizadas foi possível apurar junto do departamento do Instituto Geográfico e Cadastral de Angola (IGCA) no Cuanza Sul que o ofendido, o Procurador-Geral da República, "efetivamente requereu e lhe foi deferido o título de concessão do direito de superfície" do terreno em causa a 25 de maio de 2011.

 

Contudo, "passado um ano, por falta de pagamento dos emolumentos, o contrato atrás referido deixou de ter validade, tendo deste modo o ofendido João Maria Moreira de Sousa perdido o título de concessão do direito de superfície a favor do Estado", diz a acusação.

 

A notícia em causa aludia a uma eventual violação do "princípio da dedicação exclusiva" estabelecido pela Constituição angolana e que impediria que os magistrados judiciais e do MP exerçam outras funções públicas ou privadas, exceto as de docência e de investigação científica de natureza jurídica.

 

"Como se vê na acusação, não conseguem desmentir que ele não comprou o tal terreno. O que dizem depois é que não pagou os emolumentos e, portanto, o terreno já não é dele. A notícia continua a ser válida", reagiu, à Lusa, em 2017, o jornalista Rafael Marques.

 

A acusação, que visa ainda o diretor do jornal angolano "O Crime", Mariano Lourenço, que republicou a notícia em causa, refere a "violação" de princípios da "ética e da deontologia profissional", que se traduzem em "responsabilidade civil, disciplinar e/ou criminal".

 

Ambos os jornalistas são visados por um crime de injúrias contra a autoridade pública, ao abrigo do Código Penal, e outro de ultraje a órgão de soberania, pelas observações na mesma notícia ao Presidente da República, este previsto na Lei dos crimes contra a Segurança do Estado.

 

A 28 de maio de 2015, Rafael Marques viu o tribunal de Luanda aplicar-lhe seis meses de prisão, suspensa na execução, por calúnia e difamação, depois de ter exposto alegados abusos com a publicação, em Portugal, em setembro de 2011, do livro "Diamantes de Sangue: Tortura e Corrupção em Angola".

 

Os queixosos foram sete generais angolanos, incluindo o então ministro de Estado e chefe da Casa de Segurança do Presidente da República, Manuel Hélder Vieira Dias Júnior "Kopelipa", e os representantes de duas empresas diamantíferas.