Luanda - A propósito da constituição como arguido(s) de várias figuras da sociedade Angolana

1. Factos

A semana passada, a Procuradoria Geral da República, numa conferência de imprensa, anunciou a constituição de arguido, o Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas de Angola (FAA), o General Geraldo Sachipendo "Nunda", e mais quatros generais, cujos nomes não foram tornados públicos, num processo que se convencionou a chamar-se de "Caso Burla de 50 bilhões de dólares" (processo de tentativa de burla e defraudação ao Estado angolano, em 50 mil milhões de dólares americanos). Neste processo, já foram detidos alguns cidadãos nacionais e de outras nacionalidades. Ainda neste processo, foram constituídos arguidos, outras figuras da elite política Angolana, nomeadamente o Dr. Norberto Garcia, Membro do Bureau Político do MPLA e porta voz do partido no poder, e antigo Director da extinta Unidade para Investimento Privado (UTIP), o Dr. Belarmino Van-Dúnen, conhecido professor universitário e analista político, ex-Presidente do Conselho de Administração da extinta Agência para a Promoção de Investimento e Exportação de Angola (APIEX). Num outro processo, denominado "Caso Burla de 500 milhões de dólares americanos”, foram constituídos arguidos, outras figuras da elite política angolana, nomeadamente o ex-Presidente do Fundo Soberano de Angola, Dr. José Filomeno dos Santos (vulgo Zenu), filho do antigo Chefe de Estado angolano e ainda Presidente do MPLA, Eng. José Eduardo dos Santos, e o ex-Governador do Banco Nacional de Angola (BNA), o Dr. Walter Filipe da Silva, entre outros intervenientes no processo.

2. Comentário

2.1. Razão de Ordem

Estes dois megas processos que estão a causar celeuma na sociedade, pois pela primeira vez na história de Angola, altas figuras da elite política e militar, estão a ser indiciadas pela PGR pela prática de crimes de natureza económica ou patrimonial. O mediatismo do processo, nesta fase de transição política, tanto nos meios de comunicação social públicos e privados, bem como nas redes sociais, trouxe para o léxico dos angolanos a palavra " arguido”, cujo significado jurídico nem sempre é entendido.


Vários amigos nas redes sociais e não só, têm-me colocado imensas questões à volta deste termo, que urge esclarecer. Na qualidade de jurista e investigador do direito, embora não sendo cultor do direito penal, o que não prejudica emprestar, aqui e agora, os conceitos básicos que se impõem, numa altura onde há muitas imprecisões do conceito em causa. Vou em breves notas apresentar o conceito, figuras afins e estatuto jurídico do arguido.

3. Arguido

3.1. Conceito

Entende-se por arguido, a pessoa que recai sobre si indícios de estar envolvido num acto criminoso.


O arguido é alguém que é indiciado em várias qualidades que uma pessoa pode estar associado a um crime, como por exemplo, autor, cúmplice, encobridor, etc.
O arguido é considerado inocente até trânsito em julgado da sentença, em homenagem ao princípio da presunção da inocência, constitucionalmente consagrado. Dito de outro modo, quando num processo, na fase inicial uma pessoa é constituída arguida, não significa que ela tenha praticado actos criminosos, quer apenas dizer que há indícios que ela tenha relação com os actos considerados criminosos e que estão sob investigação: pode confirmar-se o envolvimento dela ou não. Desse modo, pode durante o processo, confirmar-se a prática do crime pelo arguido ou provar-se que não cometeu nenhum acto criminoso, ou que não tenha ocorrido nenhum crime, como é o caso da legítima defesa. Por isso, é importante saber que um arguido não é um criminoso, ou condenado. Daí que é extremamente importante termos muito cuidado e não passarmos a considerar que as pessoas que são constituídas arguidas, sejam consideradas criminosas.

3.2. Figuras afins ou próximas

No direito penal há algumas figuras que são próximas ou parecidas com a figura do arguido, designadamente o suspeito, o réu, o condenado (ou criminoso).

 
3.2.1. Réu

No processo penal angolano, réu é a pessoa que está a ser acusada pela prática de um crime na fase de julgamento. Depois da acusação feita pelo Ministério Público, o juíz pronuncia e inicia a fase de julgamento e a pessoa passa da simples condição de arguido, para a de réu, cujos indícios da prática do crime de que é acusado, são mais fortes.


Assim, o arguido distingue-se do réu de acordo com dois critérios: o primeiro, o critério formal, a pessoa é arguida na fase de instrução preparatória dirigida pelo Ministério Público, e transforma-se em réu, na fase judicial com a aceitação da acusação feita pelo Ministério Público, pelo juiz da causa na fase judicial; o segundo, critério material, o arguido diferencia-se do réu porque, sobre o primeiro, em regra, recai meros indícios da ligação a um acto delituoso, já no segundo caso - réu, há provas do envolvimento da prática criminosa, isto é, estamos perante graus distintos, no caso do arguido, em regra, são meros indícios, e no caso do réu há fortes probabilidades da prática do cometimento do crime (provas recolhidas no processo de investigação no período de instrução preparatóriaia), embora só com o trânsito em julgado da sentença de condenação confirma-sea prática do crime .

3.2.2. Suspeito

O suspeito é a pessoa que recai sobre si indícios da prática criminosa, mas não foi arrolada no processo como arguido. Assim, o suspeito distingue-se do arguido apenas no aspecto formal. Na verdade, ambos possuem indícios de estarem ligados a actos considerados por lei como crime mas só o arguido encontra-se no processo, o suspeito não. Essa situação é desvantajosa para o suspeito, pois não possui meios de defesa. Quando as suspeitas passarem a certeza, com as provas recolhidas durante a investigação, podem ser prejudicial à sua defesa, pois o suspeito não é notificado e não tem conhecimento que as autoridades sabem do seu envolvimento no acto considerado criminoso. Por seu turno, o arguido, sabendo da sua condição, pois é notificado e, por via disso informado dessa sua qualidade processual tem, por isso, possibilidade de preparar a sua defesa.

3.2.3. Condenado ou criminoso

O condenado ou vulgarmente designado por criminoso é a pessoa que praticou um crime e cuja sentença tenha transitado em julgado. O condenado já não goza de presunção de inocência, pois já ficou provado em julgamento a sua conduta criminosa. Contudo, o criminoso embora tenha que merecer a censura da sociedade, uma vez cumprida a pena deve ser aceite e não descriminado, sob pena de pormos em causa a desejável convivência pacífica em sociedade. A ressocialização, é uma componente fundamental no equilíbrio social e deve haver engajamento de todos neste processo.


Por outro lado, há situações excepcionais em que uma pessoa é condenada e a sentença é transitada em julgado e descobre-se que houve um erro judicial e que a pessoa condenada não cometeu o crime ou porque não houve crime, ou porque o crime foi cometido por outra pessoa. Num e noutro caso, o bom nome e a reputação da pessoa, injustamente condenada, fica quase sempre irremediavelmente afectada e nem mesmo as possíveis indemnizações serão suficientes para compensar ou atenuar, consideravelmente, os danos provocados. Daí que um criminoso, que cumpre a sua pena, deve ser reinserido na sociedade.

4. Estatuto do Arguido

O arguido é um sujeito processual na fase de instrução preparatória que possui direitos e obrigações que a lei lhe confere. O seu estatuto, confere-lhe privilégios que outros intervenientes no processo não possuem. Assim, um arguido tem direito a não prestar declarações e a recusar responder a perguntas já que, como presumível culpado, age em sua própria defesa, coisa que uma testemunha não pode fazer, pois é obrigada a responder. O arguido tem direito a Advogado e pode recusar-se a falar sem a sua presença perante as autoridades, quer policiais quer do Ministério Público.

A testemunha, por exemplo, não tem esse privilégio. Por isso, na doutrina e no direito comparado, o estatuto do arguido é visto como a consagração da verdade material, dito de outro modo, é a legitimidade que o tribunal tem de levar à Justiça, por via da investigação criminal , todas as provas consideradas importantes à formação do juízo de valor; condenando ou inocentando o arguido/réu. A partir do momento que um pessoa é constituída arguida num processo de investigação criminal, fase de instrução preparatória, onde se recolhe provas para formular-se a devida acusação, há um conjunto de medidas cautelares que podem ser aplicadas ao arguido, nos termos da Lei.25/15 de 18 de Setembro, que são: detenção (artigo 4º); as medidas de coação pessoal (artigo 16º) e as medidas de garantia patrimonial (artigo 43º).

Essas medidas cautelares são aplicadas quando se verificam os requisitos exigidos pela referida lei para a sua aplicação. Desse modo, no caso da detenção e de acordo com o artigo 2ª “pressupõe a existência de fortes indícios de que a pessoa detida praticou uma infração punível com pena privativa de liberdade e determina a sua constituição como arguida, se ela não estiver ainda nessa condição processual”. Para aplicação das medidas de coação pessoal de acordo com o nº2 do mesmo artigo 2º “a aplicação das medidas de coação pessoal, à excepção do termo de identidade e residência , depende da prévia constituição como arguido e da existência de fortes indícios de crime punível com pena de prisão superior a (1) um ano”. Quanto às medidas de garantia patrimonial que de acordo com o artigo 43ª podem ser a caução económica (“havendo fundado receio de falta ou diminuição relevante das garantias de pagamento da multa, quer se trate da pena principal, de pena de substituição ou resultado de conversão de outras penas, das custas do processo ou de qualquer outra dívida ao Estado relacionada com o crime…”), e o arresto preventivo que, de acordo com o artigo 45º pode ser decretado pelo juiz o arresto preventivo dos bens do arguido ou da pessoa civilmente responsável, ainda que se trate de comerciante, desde que fixada a caução económica e que este não a preste no prazo de (8) oito dias.

5. Quem pode ser Arguido?

5.1. Arguidos no ordenamento jurídico angolano

No ordenamento jurídico angolano, com excepção do Presidente da República, cujos processos-crimes só podem ser os constantes na Constituição, as demais entidades públicas e privadas (todos os cidadãos) podem ser constituídos arguidos. O Presidente da República nos termos do artigo 127º, nº1 da CRA, pode ser um arguido especial e de forma excepcional, tais como em casos de suborno, traição à Pátria e em crimes definidos pela Constituição como imprescritíveis e insusceptíveis de amnistia. Desse modo, o Vice-Presidente, Juízes, Procuradores, Deputados, Ministros, oficiais generais das Forças Armadas, em exercício de funções, e demais entidades que gozam de imunidades, podem ser constituídos arguidos, na fase de instrução preparatória.


A polémica que se levantou à volta da constituição de arguido do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas de Angola (FAA), o General Geraldo Sachipengo Nunda, em exercício de funções não faz sentido, porque se confunde a constituição de arguido, isto é, a abertura de um processo crime contra um titular de cargo público, com as imunidades que este goza. E passamos a explicar.

 

5.2. Imunidades versus Arguidos

Entende-se por imunidade as prerrogativas de direito público, de que desfrutam os titulares do poder de soberania e os altos oficiais das forças armadas, da polícia nacional e entidades equiparadas. Há várias espécies de imunidade, a saber: a) imunidade material ou inviolabilidade, que significa que o titular da imunidade não está sujeito a prisão, com excepção das previstas na lei. No caso dos deputados e de acordo com o artigo 150º nº2 da Constituição, estes “não podem ser detidos ou presos sem autorização a conceder pela Assembleia Nacional ou, fora do período normal de funcionamento desta, pela Comissão Permanente, excepto em flagrante delito por crime doloso punível com pena de prisão superior a dois anos”. No nº3 do mesmo artigo é-nos dito que “após instauração de processo criminal contra um Deputado e uma vez acusado por despacho de pronúncia ou equivalente, salvo em flagrante delito por crime doloso punível com pena de prisão superior a dois anos, o Plenário da Assembleia Nacional deve deliberar sobre a suspensão do Deputado e retirada de imunidades, para efeitos de prosseguimento do processo”.

Quanto aos Ministros, estes só podem ser presos “depois de culpa formada quando a infração seja punível com pena de prisão superior a dois anos, excepto em flagrante delito, por crime doloso punível com pena de prisão superior a dois anos” (artigo 140º, nº2 da CRA). Os magistrados judiciais e do Ministério Público, bem com os oficiais das FAA , policia nacional e entidades equiparadas, seguem com algumas adaptações o mesmo regime dos termos das leis aplicáveis, ou seja, só podem ser detidos em flagrante delito por crime doloso punível com pena de prisão superior a dois anos; b) imunidade processual ou imunidade formal ou ainda imunidade de jurisdição. Consiste em retirar qualquer jurisdição penal, civil ou administrativa à pessoa que beneficia desta imunidade. Em regra, só o Presidente da República e os diplomatas (e seus familiares) nos países onde representam o Estado, gozam deste tipo de imunidade, nos termos do artigo 31º da Convenção de Viena sobre a Imunidade Diplomática e Consular (1961).


Como se vê, o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas de Angola, o General Nunda, não goza de imunidade processual, formal ou de jurisdição (só aplicáveis ao Presidente da republica e diplomatas e seus familiares), mas apenas de imunidade material ou inviolabilidade, que foi respeitada no caso do processo da burla dos 50 mil milhoes de dólares americanos (não foi detido, nem lhe foi aplicada qualquer medida cautelar que pudesse constituir uma violação da imunidade de que goza).


Desse modo, só há a necessidade de se retirar a imunidade das pessoas que gozam da mesma, na fase judicial (fase em que o juiz aceita a acusação do Ministério Público, pronunciando-a para julgamento), com excepção do Presidente da República e corpo diplomático e seus familiares, nos termos já referidos.


Por isso, podemos facilmente concluir que o arguido é qualquer pessoa que recai sobre si a suspeita de estar envolvido em qualquer acto considerado por lei crime, na fase de instrução preparatória (recolha de prova), com excepção do Presidente da República e corpo diplomático e seus familiares.

E com isto termino!