Luanda - [O director do Jornal de Angola solicitou a Justino Pinto de Andrade a sua colaboração como colunista de opinião no JA, garantindo-lhe que agora o país vive um período de abertura e que o JA queria ser o espelho dessa pretensa mudança. JPA, antes de enviar um texto seu, à guisa de teste, enviou-lhe, a 17 de Março, o texto que abaixo se publica. Passado quase um mês, instado a explicar-se, Victor Silva respondeu que o presente texto não foi nem seria publicado no JA “por critérios editoriais”.]

Fonte: Novo Jornal

Não há mais segredo, não há mais aparências a preservar, nem ponderação nas palavras. Intelectuais partidários de JL saíram à rua para proclamar alto e a bom som: JES ndé!, tunda mujila! Baza! Acusam-no aberta e despudoradamente (pela amnesia selectiva que ostentam) de ter pilhado o país e de o ter conduzido à bancarrota e de ainda pretender continuar no poder para defender os seus interesses egoístas, os interesses da sua família e do seu grupo. JES é tratado como de grupo, como o Dadão, da música do talentoso Ésio. Um reincidente que quer também arrastar “o Mpla para o abismo, provocando cisões nunca antes vistas, impossíveis de ultrapassar”2.

Pedem então que JES não crie transtornos, nem atritos ao seu “sucessor natural” e passe o poder total a JL, da mesma maneira que lhe pediam para que não o largasse e que nele se eternizasse para os proteger, a si e aos seus interesses, dos “arruaceiros”, “bandidos”, dos revús et tutti quanti de inimigos do seu imaginário fértil. Pedem que o faça imediatamente para ainda sair pela porta grande e não delapidar o património simbólico dos seus “feitos positivos” e de ter protagonizado uma “sucessão exemplar” em África.

Argumentam, pois, com ameaças, chantagem e ressonância ao odioso popular contra o regime que eles todos representam (ou representaram) que tem sido antropomorfizado numa só pessoa. Fazem apelo ao medo das pessoas: se JES não aceitar as essas exigências, vai haver um “extremar de posições”, não se vai realizar o “programa de governo” e virá “à tona muita coisa que se mantém escondida e que aí se deveria manter, a bem do processo de transição” 3.

Recorrem à retórica messiânica e a categorias da gramática da ditadura, procurando naturalizar a situação que se criou (diga-se, pelo próprio JES que não fez a reforma política que se impunha antes de sair de PR), como se o caminho que indicam fosse o único porque inscrito no sentido da vida política do país e dos destinos dos cidadãos. O verniz superficial do discurso da democracia estala rapidamente quando falam em “sucessor natural”, em “salvador” que são categorias das ditaduras; em Democracia não há sucessores naturais, muito menos salvadores.

Recorrem ao falso argumento culturalista da excepção africana e à truculência habitual: ou JES passa o poder total a JL e temos uma “transição pacífica” ou então passarão à violência contra o antigo inquilino do Palácio da Cidade Alta. Sem nenhum comedimento, abertamente, sem nenhum constrangimento, lançam a inventiva de que “qualquer outra solução que se queira engendrar”, como a possibilidade de uma terceira pessoa assumir a presidência do Mpla; configuração que designam por “jogo tricéfalo”, “será pouco ou nada benéfica” para o seu partido e constituirá o “fim político” dessa terceira pessoa. Uma qualquer outra solução em direcção àquilo que chamam “bicefalia”, com JES ou outro, será sempre um acto que “beneficiaria claramente outros partidos e outros actores políticos”4. É esta a grande preocupação deles, não os interesses do país.

Para eles, a repartição de poder, o equilíbrio político, é “um rude golpe contra o Mpla”, um crime de lesa-pátria no país-Mpla. Eis a principal inquietação dos apparatchiks do partido/Estado. A preocupação deles não é com o país/Angola, com a Democracia, com o Estado de Direito mas tão somente com a funcionalidade do “novo” Príncipe, com o reforço dos seus poderes e com a hegemonia política do partido/Estado.

É evidente que JES, tal como ele desenhou a sua sucessão, pretende consolidar um regime de tipo iraniano: em que ele funciona, por intermédio da presidência do Mpla (tendo JL como vice-Presidente), como guia supremo do país (uma espécie de ayatolah Khomeiny) a quem cabe dar as grandes orientações (como fez com a formação do governo, com o OGE e com a conferência sobre a corrupção), tendo um direito de supervisão sobre todos os poderes do Estado: legislativo, executivo e judicial, ao ponto de indicar pessoas para as suas instituições-chave.

Mas, não é por isso, que devemos deitar fora o bebé com a água do banho: opor- nos ao ayatolahismo que JES está a protagonizar, vivenciando um estatuto de “Presidente emérito” que a lei não lhe atribuiu, não implica aderir à corrente da restauração do eduardismo sem JES, ou seja o gonçalvismo, cuja lógica é a do partido/Estado virtuoso, comandado por um “novo” líder providencial e renunciar ao “Estado Democrático de Direito”, dirigido por um presidente republicano que tão- somente se submete à Constituição.

Não podemos expulsar o Leão pela porta e deixar o Tigre entrar pela janela.

Está visto que acabar com o partido/Estado e tornar o Mpla mais um partido (e não o partido) é coisa que eles não podem admitir senão como uma perda. Mas, seguramente que o país/Angola ganha muito com a desmontagem e fim do partido/Estado, o que permitiria fazer da simples sucessão, uma transição do poder autoritário para o “Estado Democrático de Direito”, como está definido na Constituição, nos seus princípios fundamentais.

No quadro do “Estado Democrático de Direito” não há nenhuma “bicefalia”, pois, o PR não é equiparável às lideranças partidárias, está acima delas. O PR, como mais alto magistrado da Nação, não pode estar sob a influência de nenhum poder, como não deve determinar a dinâmica política de nenhum partido, nem submete-lo aos seus interesses circunstanciais ou envolver-se em querelas de capela.

A actual situação, somente na lógica do partido/Estado e da pretensão do poder total, se pode entender como “bicefalia”. No quadro do Estado Democrático de Direito, o que se está a passar, é a violação da Constituição que prescreve uma incompatibilidade universal da função de PR com toda ou qualquer função pública ou privada. O PR não pode ser outra coisa que não seja PR. Não pode ser, nem mesmo presidente do clube de matraquilhos do seu bairro. Como não pode ser PCA das suas empresas. Ao tornar-se PR tem a obrigação constitucional de suspender todas as outras suas actividades para se dedicar, única e exclusivamente, aos interesses públicos. A reserva da Constituição prescreve que “as competências do Presidente da República são as definidas pela Constituição” e não outras (artigo 117o, CRA).

Então, JL precisa de se assumir como verdadeiro PR, não sendo mais presidente de uns que de outros (como fez ao dar posse aos membros do CR ou ao subordinar o dossier das Autarquias à pretensão hegemónica e à agenda partidária do Mpla). JL precisa de ser PR dos angolanos por igual. A aparente bicefalia deixará de existir se JL, deixar de violar a Constituição, suspender a sua militância partidária, não pondo mais os pés nas estruturas do Mpla e deixar que este partido resolva livremente os seus problemas de sucessão interna.

Os intelectuais orgânicos de JL querem nos fazer acreditar que somente a concentração de poderes na pessoa do “novo” líder, visando a reestruturação do

partido/Estado, poderá permitir o prometido desenvolvimento e bem-estar dos cidadãos e, por isto, catequisam a necessidade de o aceitar como “salvador”, justificando com a filosofia política de que a unidade se materializa no “feitiço do Um”5. Ora, a Constituição não diz isso! A Constituição fala da vontade do Povo que se autoinstitui como soberano, mediado por uma representação legítima e com a sua activa participação. Entre Hobbes (ou São Tomás de Aquino) e Rousseau a opção é claramente por este último. Não é o absolutismo que é o modelo escolhido mas a Democracia representativa e participativa.

Como dizia uma pena sensata, “este país tem desafios a mais, dificuldades a mais, atrasos a mais para compensar, para ser despendida tanta energia com intrigas palacianas e guerras intestinas de um partido”6. Porque não falar dos grandes desafios no sector produtivo e social: a falta de água potável e de saneamento básico, a restruturação dos sistemas de saúde e de educação, a produção de energia para a indústria, a agroindústria e o consumo doméstico. Também é muito mais importante, no plano político, discutir a restauração da ética na política, discutir o regime e as formas de reprodução da sua natureza autoritária, abordar a reforma constitucional (a bendita mãe de todas as reformas), impulsionar o instituto da Defesa Pública e encarar as autarquias como uma questão de urgência nacional, para lá das delongas tacticistas e jogos de empurra-empurra para manter a hegemonia política impossível.

Logo, o país não precisa de um novo messias mas de liberdade, igualdade e participação dos cidadãos, no quadro de um firme pacto constitucional republicano em que o PR não queira utilizar os seus poderes para fins pessoais mas que se submeta à Constituição.
(in Novo Jornal, no 529, 13 de Abril de 2018)

1* Investigador-coordenador do Centro de Estudos Africanos da Universidade Católica de Angola (CEA- UCAN)


2 Paulo Carvalho, O lado prejudicial da bicefalia ao interesse nacional, Jornal de Angola, 15203, 15 de Março de 2018, Opinião, Sentinela Alerta , p. 7.

3 Ibdem
4 Ibdem,
5 Adriano Botelho de Vasconcelos, O tabu e a saída não bicefalia no interesse do país, Jornal de Angola, 15202, 14 de Março de 2018, Opinião, p. 7.
6 Geralda Embaló, Agora pergunto eu, Nova Gazeta, 292, 15 de Março de 2018.