Luanda - Decididamente, o Príncipe tem um problema com os escritores! Durante muito tempo foi tido como um dirigente que não prestava nenhuma atenção à cultura, nem importância aos homens de cultura do país.


Fonte: Jornal AGORA



Nessa época, as únicas leituras a que se dedicava, segundo a sua própria confissão, eram sobre economia. Estimulado por acessores húngaros, procurava casar o liberalismo com o socialismo e empreender uma reforma económica. Veio, então, o SEF (Saneamento Económico e Financeiro) que estimulou, num primeiro tempo, para se lhe opor, logo de seguida, acusando os seus mentores intelectuais de “esquerdismo”, lançando um balde de água gelada no entusiasmo e dedicação de toda uma plêiade de quadros nacionais que se tinham nele envolvido de forma voluntariosa. Esqueceu o socialismo, e todo o espírito de promoção da justiça social que lhe era associado e ficou com o que mais lhe agradou do “liberalismo”, ou seja, com a ressonância da ideia do “safe-se quem puder”. De facto, as razões dessa sua brusca mudança de atitude estavam ligadas a sua campanha de patrimonialização do poder.



Agora, perante o escândalo do roubo do Prémio Nacional de Cultura, em Literatura, ao grande poeta Viriato da Cruz, parece-me que o Príncipe tem um problema com os escritores. Talvez este “problema” esteja associado ao seu complexo de Édipo político. Afinal, o seu pai espiritual (político) é um grande poeta. (Digo é porque os poetas não morrem). E, Agostinho Neto, como político, cavalgou o grande poeta que era com grande proveito. José Eduardo dos Santos, embora tenha sido um músico-compositor reconhecido, não soube (ou não quis) tirar tanto proveito disso, como político, nem cultivou esta sua faceta, como o fez com a do futebol. Ao contrário, foram-se somando os atritos com os escritores. A União dos Escritores Angolanos que era a “casa” de Neto, nunca (que eu me lembre) foi por ele visitada. Mesmo quando o presidente do Brasil, o escritor José Sarney, esteve em Angola e fez questão de colocar no seu programa de visita um encontro com os escritores angolanos, JES, como anfitrião, acompanhou-o mas deslocou o encontro para uma das salas anexas à Assembleia do Povo, em vez de aproveitar a oportunidade para visitar a sede da União.



Vários foram os atritos com escritores. Rapidamente, podemos assinalar um bom grupo de escritores com os quais teve (ou tem) problemas: o primeiro, mandou encarcerar, não lhe perdoou a facto de o ter criticado, utilizando o humor. Num primeiro momento, riu da peça de teatro que o colocava no centro de um enredo que visava uma crítica moralista do grande líder, de quem se esperava todas as virtudes revolucionárias. Depois, achou que afinal a sua vida privada estava a ser utilizada como cavalo de Tróia para o atingirem no seu poder. Mandou então uns tantos para a cadeia e saneou outros quantos. Entre eles estava o escritor Ndunduma we Lépi. Ao segundo, mandou tirar a casa. Pepetela foi desalojado sem aviso prévio. Ao terceiro, mandou “desterrar” para a RDA porque, na sua irreverência, Uanhenga Xitu o acusou de “infantilismo”. À quarta, não assinou o diploma do Prémio Nacional de Cultura, para Literatura. Ana Paula Tavares, até hoje, ainda não sabe o motivo de tal animosidade contra ela. O quinto, Boaventura Cardoso, “em segundas núpcias”, digamos assim, perdeu o pelouro de Ministro da Cultura e foi “reenviado” para Malanje porque defendeu a sua palavra e a confrade. Agora foi a vez de Viriato da Cruz, a quem tirou o Prémio Nacional de Cultura, em Literatura, para o entregar a João Melo.



(Alguns dirão, então João Melo, como escritor, é a excepção que confirma a regra. Direi que se trata de “namoro” recente e incerto que tem mais a ver com a facilidade com que este se “entregou”, na esperança (incerta) de vir a ser cooptado para o comité central (quiçá bureau político) do Príncipe. O próprio João Melo mostrou consciência do negócio escuro em que se meteu mas não quis perder a oportunidade deste trato; uma espécie de dois em um, pois a aceitação do prémio alheio lhe permite ter como segura (quase, nunca se sabe o que pode acontecer, numa casa em que o diabo anda à solta) a sua entrada no comité central do Mpla, pois quem lhe deu o prémio é também quem distribui os lugares naquela instituição. Mas eu creio que o João Melo deve saber que sendo as suas ambições políticas perfeitamente legítimas, a sua aceitação do prémio é absolutamente ilegítima e faz dele um receptador, “aquele que aceita conscientemente o produto de um roubo”. Por outro lado, João Melo, sendo filho de um grande nacionalista (Aníbal de Melo) que também viveu a experiência de uma militância consecutiva em dois movimentos de libertação (a UPA-FNLA e o MPLA), devia ser mais sensível ao argumento pelo qual Viriato da Cruz é privado do prémio.



Esta privação é um “roubo”, cujo autor moral é o Príncipe. Já se conhecem os autores materiais do delito; a Ministra da Cultura e seus ajudantes. Uma Ministra que, tendo o precedente autoritário de ter mando retirar de exibição um filme concorrente ao Festival Internacional de Cinema de Luanda, arcou com todas as culpas, servindo de saco de pancada e de biombo ao autor moral do roubo; aquele que esteve na sua origem e in fini o sancionou. Não se trata de obsessão, de perseguição ou qualquer outra manifestação antipática, da minha parte, em relação a JES, pois os factos falam por si.


Conta-se – a escritora Amélia da Lomba, com inteligência e muita dignidade, explicou isto, na entrevista que concedeu ao Novo Jornal – que uma vez atribuído a Viriato da Cruz, o Prémio Nacional de Cultura, em Literatura, a Ministra da Cultura, cumprindo um dever regulamentar, informou ao Conselho de Ministros, na pessoa do PR, a escolha unânime do júri. O PR, perante tal procedimento, terá dito: “por mim, não vejo nenhum inconveniente mas, para que não haja nenhum problema político, informe o bureau político do partido [Mpla]”. Nada mais insólito do que este comportamento. As palavras de JES são suficientemente esclarecedoras para o tornar o autor moral do roubo do prémio. Normalmente, ele teria tomado boa-conta da escolha e, dando provas de sentido de Estado, teria acertado com a Ministra os pormenores da assinatura dos diplomas e, quiçá, da cerimónia de entrega, caso a quisesse honrar com a sua presença. Não lhe cabia ver conveniente ou inconveniente, na atribuição de um Prémio Nacional de Cultura, por um júri que é soberano no seu estatuto e, muito menos ainda, levantar um problema político pela escolha desse júri. Nem tão pouco (isto brada aos céus) remeter a sua resolução para uma entidade não-estatal que não é tida, nem achada em todo este processo. Uma entidade que num acto de prepotência e abuso de poder surrupiou o prémio a Viriato da Cruz e o entregou a um seu kamba. E, agora, mais uma vez o Príncipe “não viu inconveniente” e sancionou esta decisão, apesar de aparentemente já ter sancionado a anterior. Sabendo nós que uma tal entidade não é senão a marioneta do chefe, não fica difícil adivinhar quem roubou o prémio com o argumento distópico ou caco-tópico de que a atribuição do prémio a Viriato da Cruz teria como objectivo ofuscar a dimensão de Agostinho Neto.


Ora, Agostinho Neto, como presidente da República, também foi colocado perante um mesmo dilema. Num contexto diferente, que lhe era muito menos favorável pois não se falava em sociedade pluralista, nem em democracia. O poeta António Jacinto, que era o Ministro da Educação e Cultura, foi ter com ele e disse-lhe que havia um problema com a inclusão, dos poemas de Viriato da Cruz, na selecta literária, para as escolas secundárias, do recém proclamado país independente, em princípios de 1976. Contou António Jacinto, numa sessão pública da União, que Neto lhe teria dito o seguinte: “Viriato fez muito mal ao movimento mas é indiscutivelmente um grande poeta e não pode, por isto, deixar de ser incluído”. Independentemente da opinião pessoal de Neto, sobre o papel político de Viriato da Cruz, no movimento de libertação nacional, ele ultrapassou o dito “problema político” e valorizou a literatura, evitando assim o que seria uma grande injustiça. Este gesto de Neto significou já uma certa reconciliação, como veio a acontecer mais tarde com Lúcio Lara que dedicou a sua monumental obra, “Um Amplo Movimento...”, entre outros, ao seu “camarada Viriato da Cruz”.


Trinta e três anos volvidos, depois de tantos desencontros e sofrimentos, numa época em que já todos nós “já não estamos aí” (como disse a Amélia da Lomba) José Eduardo dos Santos, que fala amiúde de reconciliação, levanta um problema político (intransponível) à atribuição a Viriato da Cruz do Prémio Nacional de Cultura, em Literatura! Haja dó!



José  Eduardo dos Santos que diz, no prefácio que escreveu para a História do MPLA (2008), que “nunca pretendeu que a mesma se constituísse numa espécie de tribunal para julgar eventos passados” porque, na sua opinião, “os historiadores autênticos não são juízes, mas hermeneutas que tratam de analisar de forma imparcial os acontecimentos”, vem agora dizer que a atribuição do prémio a Viriato da Cruz levanta um problema político! Quando foi, precisamente no espírito e na letra desse prefácio, escrito por JES, que o júri do prémio agiu ao atribui-lo a Viriato da Cruz. Aliás, este grande poeta e nacionalista é amplamente referido nessa “história”, tendo até ai uma fotografia e documentos escritos pelo seu próprio punho, como é o caso do Manisfesto de 1956. O que se quis foi, sem nenhuma motivação política, como dizia a Amélia da Lomba, “premiar a beleza [incontestável] da sua poesia e perpetuar a sua memória”.



Então, se a recente descoberta de JES, a “tolerância zero” contra a corrupção, não é apenas um momento de requintado (e sinistro) humor (fazendo concorrência aos Tuneza), é hora de a aplicar imediatamente a este caso, devolvendo o seu a seu dono, para não termos que pensar que o roubo deste ano, está na sequência lógica do acto de retaliação (e vingança pessoal) do ano anterior, quando se recusou a assinar o diploma do prémio atribuído à Ana Paula Tavares, com o pretexto de que “essa senhora fala mal de mim”.