Paris - Há momentos em que me pergunto se alguns de nós realmente vivem neste mundo e se aprenderam alguma coisa com as tragédias que a África sofreu desde o encontro com os europeus! Bem, desde o início da guerra russo-ucraniana há um mês, lê-se aqui e ali coisas surpreendentes como: "É um escândalo que os estudantes africanos sejam tratados assim!" ou: "É inaceitável que Portugal não diga uma palavra sobre os seus cidadãos (negros) que foram vítimas de racismo na Ucrânia!", como se Portugal já tivesse demonstrado consideração pelos Negros. Até esquecemos que este país votou contra a resolução da ONU que exigia a libertação de Nelson Mandela em 1987! Mas que a última lamentação venha dos nossos Assimilados não surpreenderá ninguém, alguns deles só começaram a conscientizar-se sobre a sua negritude desde a eleição do Obama e outros apenas desde o movimento Black Lives Matter, então ainda estão na sua fase embrionária em que tal ingenuidade é inevitável. Aliás, ninguém ignora que a pessoa que encarna a luta contra o racismo em Portugal chama-se Mamadou Ba, um senegalês, e não Desgraça da Constipação Aguda dos Anjos, angolano ou cabo-verdiano. Ba foi educado e treinado desde o ventre da sua mãe para ser negro e orgulhoso, Constipação Aguda dos Anjos não. E se o último nasceu mestiço ou apenas um pouco de pele clara, provavelmente disseram-lhe que não era negro, o que o tornaria ou um mundelé-ndombe, ou uma alma penada. O que, em última análise, dá no mesmo: um ou outro só produz um alienado que terá sofrido uma perigosa despersonalização. Assim, Constipação Aguda dos Anjos mal descobre, em 2022 e amuado, que é negro. Portanto, não poderá deixar de passar por esse aprendizado doloroso sem os contratempos e os erros que o acompanham. Por exemplo, ficará tentado, por entusiasmo pela sua nova africanidade em construção, a dizer aos africanos da África profunda como eu que é mais africano do que eles, porque vive em Angola (Luanda e eu em Paris!), ou porque aprendeu duas palavras de kimbundu por acaso. O Mamadou, não, ele teve o Senghor e o Césaire para o guiar, eles defenderam a nobreza negra para ele se sentir bem consigo mesmo. É, pois, bastante natural que se tenha levantado um dia em Portugal para levar a cabo a luta de um povo inteiro porque estava ontologicamente mais bem equipado como muntu do que os mutantes fabricados pelos portugueses. E há quem ainda goste desse estado mutante, é até sinal de superioridade para eles!

Fonte: Club-k.net

Ba não descobriu que era negro com o Black Lives Matter ou com a guerra russo-ucraniana, sempre soube disso. E também sabe que o Césaire escreveu isso no seu Discurso sobre o Colonialismo: "Sim, valeria a pena estudar clinicamente, no pormenor, os itinerários de Hitler e do hitlerismo e revelar ao burguês muito distinto, muito humanista, muito cristão do século XX que traz em si um Hitler que se ignora, que Hitler vive nele, que Hitler é o seu demónio, que se o vitupera é por falta de lógica, que, no fundo, o que não perdoa a Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime contra o homem branco, a humilhação do homem branco e o ter aplicado à Europa processos colonialistas a que até aqui só os árabes da Argélia, os coolies da Índia e os negros de África estavam subordinados". No entretanto, os nossos ainda lêem com alegria em Os Maias sobre os Manimpanzos do Rossio que Eça de Queirós descreve zombeteiramente vestidos de tanga. E também lêem em modestos romances de Afro-Convenientes coisas como: "Não entendo a negritude de Diop, sou da Angola do Além Mar". Entendemos então porque continuam a privilegiar os campeonatos que premeiam o melhor sotaque português. Recentemente, em Paris, presenciei mais uma cena grotesca: acabara de apresentar uma pessoa amiga lusófona a outra pessoa amiga francófona famosa e militante da causa negra. A lusófona queria convidar a francófona para um debate antirracista em Portugal, mas a última, que vive no Brasil onde aprendeu a falar português, mostrou-se relutante, alegando não ter o nível de português adequado para falar em Portugal. A lusófona primeiro a tranquilizou dizendo-lhe: “Não te preocupes, vai correr tudo bem! Todo o mundo sabe que és francesa!". E depois acrescentou com desenvoltura e com os olhos brilhando de satisfação, marca infalível da alienação das pessoas deste espaço triste: “Se no limite fosse um sotaque angolano, então sim, seria um problema!". Aqui, a missa foi rezada! Ri, com tristeza, e vi mais uma vez a dificuldade da tarefa, pois era óbvio que a luta não poderia ser feita em Portugal por falta de consciência de quem quer fazê-la. Os lusófonos são historicamente carentes e hoje precisam desesperadamente ser desalienados primeiro! Ainda não entenderam que o nosso sotaque testemunha o inegável crime contra a humanidade cometido contra nós, que é a descrição do grito de resistência que se ouviu em português, mas que na realidade foi proferido pela força vital que nos liga aos nossos ancestrais protectores. A este nível de alienação, é fácil entender que não consigam compreender a mensagem de dignidade transmitida pelo andar seguro de Alex Williams, o advogado da série americana Suits, nem aquela transmitida pelos braços em movimento do jovem kimbanguista que desfila alegremente sob a fanfarra! O nod fraterno do Negro anglófono em Piccadilly ou em Manhattan não lhes é acessível. Esta é toda a proeza da colonização portuguesa.

 

Bem, todos, incluindo os nossos Lusotropicalistas e Afro-Convenientes, bem-vindos ao mundo real! Bem-vindos a este mundo criado por e para Brancos, há 3 000 anos, segundo Sartre! Sim, três mil anos de privilégio branco, escreveu este intelectual sério no seu prefácio à Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache de langue française, de Léopold Sédar Senghor. Não há, portanto, nenhuma surpresa, o tratamento reservado aos negros na Ucrânia é apenas uma consequência lógica, uma normalidade mais banal. É o que encontramos no tom calmo e sincero dos especialistas e jornalistas que comentam o destino dos Brancos nesta guerra. Então fiquem calmos, irmãos Assimilados e Lusotropicalistas de todas as convicções, poupem as vossas lágrimas sinceras e ingénuas. Enfim entendam a condição negra neste mundo e venham participar na construção da grande obra, a da dignidade africana, a construção de uma África respeitável para erigir uma humanidade maior! Vamos condenar o que está a acontecer na Ucrânia contra os Negros, mas vamos fazê-lo com sagacidade de espírito e inteligência e vamos trabalhar para construir a dignidade dos africanos. Como? Comecemos por ter vergonha, esse sentimento nobre e revolucionário, e invistamos massivamente nas nossas universidades para que os nossos estudantes não precisem mais ir sofrer racismo na Ucrânia. Entendamos uma vez por todas que o conceito de direitos humanos foi inventado exclusivamente para Brancos, e isso nunca foi segredo: em 1789, quando o texto foi adoptado, consequência da Revolução Francesa, os Negros franceses foram mantidos na escravidão. Portanto, é antes de tudo aos líderes africanos que devemos brandir os nossos direitos humanos, em África! E com o mundo branco, temos apenas uma luta: a dos imaginários. Vamos quebrar os imaginários que ele construiu contra os Negros através da nossa excelência e do nosso trabalho pelo bem-estar dos Negros. Porque não temos nada para provar a ninguém, mas tudo para provar a nós mesmos. Cuidemos, portanto, que os nossos governantes não nos roubem mais e governem melhor, prefiramos o sacrifício e a seriedade ao gozo imerecido. E se o que vivemos é consequência da nossa experiência neste mundo que foi construído contra nós, então vamos mudar de mundo criando o nosso se não podemos mudar este!

 

Ricardo Vita é Pan-africanista, afro-optimista radicado em Paris, França. É colunista do diário Público (Portugal), cofundador do instituto République et Diversité que promove a diversidade em França e é headhunter.