Benguela -  No dia 25 de Abril de 1974, sopraram em Angola os ventos da Revolução dos Cravos que triunfou em Portugal. Na época eu estava a concluir o segundo ano do ciclo preparatório do ensino secundário.


Fonte: JA


[jaimeazulay.jpg] Repentinamente, as pessoas começaram a demonstrar comportamentos diferentes e a falar coisas que nunca tinham ousado falar em público, tal como independência de Angola. Era a revolução a romper a morna e lenta espera. As árvores começaram a ser arrancadas pela raiz. Tudo se precipitava num rodopio para esmagar o inimigo colonialista contra a terra pura, para que a secular maldade das suas vísceras ficasse plantada nas profundezas.


Participei nas primeiras manifestações estudantis. Assinei, por vontade própria da idade, o cartão de ingresso na geração da utopia. Seguiram-se as aulas políticas e os infindáveis debates com outros jovens e fervorosos revolucionários, gente há pouco desmamada. Alguns já liam, à sua maneira, Vladmir Lenine, Karl Marx e os poemas de Neto. A escolha entre o capitalismo e o socialismo não confundia ninguém. Tudo era tão linear e tão fácil, no meio do fervor revolucionário. Convidava-se para discutir política do mesmo modo como se convida um amigo para uma partida de xadrez. Havia vencedores que se transformavam em líderes e os perdedores que eram rotulados como uns nabos em política. A revolução popular triunfa e os nossos heróis serão vingados, repetíamos até à exaustão.

 

Lembrarei sempre o juramento de bandeira no CIR Sangue do Povo, na Gabela. Os esquadrões kwenha e Ngunza Kabolo, os combatentes garbosamente perfilados, uns com boinas azuis dos comandos e outros com boinas pretas da infantaria. Apesar de garoto, sentia que deveria estar entre aqueles jovens devotos, prontos a baterem-se por Angola, contra o inimigo. A revolução chama. Quando isso sucede, torna-se imperioso levar avante o facho aceso.


O ingresso no MPLA aconteceu em 1975, na delegação do Sumbe, chefiada pelo comandante Mbeto Traça. A vida na delegação era diferente de tudo que vira antes. Ginástica militar dada ao lado do palmar da fazenda CADA-Boaventurança pelos camaradas “Explode” e Domingos, ambos jurados do esquadrão Ngunza-Kabolo, com o desmontar dos cangurus, exercício muito penoso para principiantes.

 

O monta e desmonta das “pepechás”, “efebepês”, “estrelings”, gegés (G3), e outros artefactos bélicos, como as traiçoeiras granadas de pau, herdadas sabe Deus como, dos arsenais da Wermarcht de Hitler e trazidas pelos homens do ELNA. Tal como as enormes mausers desaconselhadas para nós, que ­estávamos a começar, por causa do potente coice da coronha.

 

Uma dessas manhãs, após termos conseguido os uniformes, cruzei-me no quintal com o Zezito, meu companheiro desde a cabunga até à secundária. O Zezito também estava fardado e calçava umas botas enormes que tinham sido da polícia tuga, a PSP. Olhamo-nos matreiramente e batemos continência num ritual transbordante de belicismo:

- Bom dia camarada Dipanda, bramiu o Zezito ao erguer as mãos em concha. Eu respondi hirto e com voz firme:

- Sim! Aceito, camarada Granada.


Assim nos passamos a tratar. Cada combatente deve escolher o seu nome de guerra, é uma das primeiras coisas que se aprende na revolução. Dipanda era a independência, cuja data se aproximava. Líamos o jornal VC, Viória é Certa, e ouvíamos as músicas revolucionárias do Urbano de Castro, David Zé, Santocas e outros.

 

Consequência dos acordos de Alvor, foi constituída a ronda mista, patrulhas que incluíam soldados dos três movimentos de libertação e do exército português. Os incidentes passaram a suceder-se e a espiral começava a ficar incontrolável. Num sábado, estalaram os primeiros confrontos contra o ELNA, o exército da FNLA. As armas e as granadas feriram pela primeira vez os ouvidos dos camussumbes. A igreja conseguiu negociar um frágil cessar-fogo. Todos os movimentos falaram na rádio Kwanza-Sul, através dos porta-vozes. O comandante, Joãozinho “Morte”, comandante do Esquadrão Kwenha, também falou:


- O nosso povo deve continuar vigilante, a luta continua e a vitoria é certa. De facto, a guerra voltou poucos dias mais tarde, com os combatentes do MPLA a saírem vitoriosos. Custa-me tanto explicar o estardalhaço que se gerou com a ida da minha mãe à delegação, a fim de levar-me pelas orelhas, por ter fugido de casa:


- Não entreguem armas ao meu filho, ele é uma criança”.


- Não, ele não é criança, é um camarada do MPLA. O Gangula também era pioneiro e deu a vida para proteger dos tugas a base do movimento, disse um camarada combatente.

 

A minha inconsolada e incrédula mãe quase desmaiou ao ver-me com uma simonov com baioneta nas mãos. Hoje lamento o mal que lhe causei naqueles dias complicados e depois disso, tudo por causa da revolução. Um dia, em 1991, eu e os meus irmãos Nelito e Yaya fomos sepultar a nossa mãe no cemitério do Calundo, em Benguela. Ela foi tudo o que de melhor tive na vida.