Luanda - Os cães ladram e a caravana passa … Um sábio ditado árabe, bem das minhas origens, das quais me orgulho, diz que não importa o latido dos cães, não importa o barulho que façam, a caravana segue o seu caminho, apesar deles… existe uma estrela a ser seguida, um pensamento a ser preservado, e nada vai impedir que a caravana siga o seu rumo…mesmo que pare por alguns momentos, mesmo que alguns cães se julguem alimentados pegando os restos que caíram durante a passagem, a caravana segue o seu rumo, mais fortalecida, mais coesa, deixando cada vez mais longe o barulho dos cães esfomeados. Uma caravana é feita de gestos, de sonhos, de atitudes, de longas vivências, de cumplicidades, de sentimentos fortes, de amizade, de amor e de desejos. Ela segue o seu caminho, totalmente indiferente ao ganido de cães enlouquecidos, atrás de alguma cadela no cio …


Fonte: www.centralangola7311.net


- Sandra Nasrallah, em O Recanto das Letras, 2005

Quão bela é a história.


A beleza da historia é que não obstante a sua diversidade colorida e diversa, ela se repete. E a teimosia do homem é que, não obstante a repetição da história, ele se recusa a aprender dela.


Sinto que neste momento vivemos mais uma destas repetições da história. Sente-se algo de diferente no ar, algo que pressente a mudança do status quo. Creio que os nossos pais sentiram o mesmo por ocasião das independências das colónias africanas e o surgimento de novas nações no continente berço, finalmente lideradas pelos seus próprios povos. Olharam com olhos molhados às imagens de um Kwame Nkrumah triunfante e radiante perante o seu povo liberado, donos de um novo país, cujo nome clamavam com orgulho: Gana. Deve ter sido assim também quando as outras colónias se libertaram por África afora, deixando por último as colónias portuguesas, cujos líderes agarravam-se a elas com unhas e dentes, impávidos contra o rumo da maré e sem capacidade para lerem os sinais dos tempos.


Na altura, os portugueses deviam ter chamado a isto “os ventos da independência”,  jurando a pés juntos que tal coisa nunca chegaria à sua província ultramarina de Angola. Devem ter exortado os seus cidadãos a se manterem vigilantes contra os que queriam manchar a paz e a tranquilidade pública. Devem ter dito que a realidade em Angola era diferente e que os que queriam independência simplesmente queriam imitar o que viam no estrangeiro. Seguramente que os denunciaram como confusionistas, apelidando-os de terroristas e que só estavam a usar o nome do povo para motivos pessoais e objectivos inconfessos. Quando eles se tentavam manifestar, reprimiam-nos violentamente, atirando-os para cadeias por ousarem pensar de forma diferente e quererem gerir os seus próprios destinos.


Como reza a história, foram incapazes de lerem os sinais do tempo e de medir o nível de descontentamento das suas populações. Foram cegados pela sua própria arrogância, desprezando as aspirações, desejos e direitos dos povos cuja lealdade julgavam sua. Depois do derrube do Salazar, foi só uma questão de tempo para os portugueses fizessem o que era esperado deles, e darem a independência a Angola, mesmo que em condições menos boas e da forma quase irremediável em que o fizeram.


Algo parecido aconteceu pelo mundo no final da década dos 80, aquando do derrube do muro de Berlim. Mais uma vez, as classes no poder foram incapazes de ler os sinais do tempo e aprender com a história. Julgaram-se superiores aos seus povos e, arrogantes, desprezaram as suas demandas legítimas, atirando-os para cadeias, ameaçando-lhes, e reprimindo-lhes. E, sendo o povo mais forte que qualquer classe reinante, os governos comunistas foram caindo um por um. Talvez o episódio mais caricato desta transição tenha ocorrido na Roménia, onde o Nicolae Ceausescu, de tanta ignorância e incapacidade de saber dos problemas dos seus constituintes, quase foi morto em plena rua durante um discurso irrealista que fazia, dizendo ao seu povo esfomeado que na Roménia não existia nem fome nem pobreza extrema.
O muro de Berlim, por tanto tempo um símbolo do comunismo, caiu como se de areia se tratasse, e alemães, de um lado e outro do muro, se abraçavam, choravam, e sentiam-se vitoriosos, mais uma vez donos do seu próprio destino. Porque afinal de contas, a força de uma nação reside no seu povo, e são eles que acabam por ditar o rumo de um país. Eis o que conta a história, vez após vez.


E acontece assim sucessivamente na história. Hoje, estamos perante mais uma mudança do status quo, naquilo que muitos à volta do mundo chamam “A Primavera Árabe”, e, aqui em Angola, “os ventos do norte”. Um pouco por todo o médio oriente e o Norte de África, e mesmo na África subsaariana, os povos destes países, fartos da pobreza, da gestão grosseira dos seus recursos naturais, do fosso enorme entre os ricos e os pobres, das injustiças, das perseguições, das prisões, da falta de liberdade de expressão, das violações sucessivas dos direitos humanos, enfim, fartos de serem tratados como colonizados nos seus próprios países por dirigentes dos seus próprios países, decidiram sair à rua para reclamarem os seus direitos, de forma pacífica. É muito importante realçar este último ponto: de forma pacífica.


Quase sempre, a resposta às suas demandas por parte dos seus dirigentes, do mesmo povo, foi violenta. Contra cartazes e cânticos são exibidas armas de fogo e algemas. Morreram cidadãos por ousarem demandar um futuro melhor para os seus filhos. Outros foram presos, outros torturados. Mas, na Tunísia, o Presidente Ben Ali decidiu que era melhor sair do que evitar mais confrontos, porque, talvez por ter aprendido com a história, viu que esta era a sua melhor opção. O mesmo fez o Presidente Hosni Mubarak.


Já o Presidente Laurent Gbagbo decidiu afiar os dentes e as unhas, só para depois aparecer nas televisões mundiais de camisola interior, a transpirar, altamente desonrado e deorientado, fazendo uma figura ridícula e triste.


Outros ainda decidiram disparar indiscriminadamente contra os seus povos, tentando matar as mudanças do tempo cidadão por cidadão, homem por homem, mulher por mulher, para ver se esta vontade da mudança é derramada do país tal como é derramado pelas estradas o sangue dos seus povos. Neste grupo estão o Presidente Muamar Khadaffi, da Líbia, o Presidente Ali Abdullah Saleh do Iémen, e o Presidente Bashir Al-Assad na Síria.


Um pouco por todo continente, as populações africanas subjugadas pelos seus dirigentes vão acordando. No Uganda, um Museveni paranóico prende e ameaça vezes sem conta o líder da oposição e seu antigo médico pessoal, o senhor Kizza Besigye, só para este  se reerguer, cada vez mais forte e com mais apoio, vezes sem conta.


E, finalmente, aqui em Angola, uma juventude corajosa, farta da falta de acesso ao ensino, farta das gritantes assimetrias sociais, farta do fosso entre os ricos e os pobres, farta do facto de só poderem singrar se tiverem um determinado cartão de um determinado partido, ou um “tio na cozinha”, farta dos sussurros “xé menino, não fala politica”, farta dos mujimbos “se você falar muito não vais conseguir emprego”, farta das promessas falídas dos seus dirigentes, farta do acesso ao crédito inexistente, farta de não poderem comprar casa própria devido aos preços astronómicos destas, farta da falta de oportunidade, farta do crime, farta da incompetência de muitos dos seus dirigentes, farta da pobreza extrema, farta da falta de liberdade de expressão, enfim, fartos de serem tratados como colonizados no seu próprio país, acordaram da sua letargia, sairam da maratona, sacudiram os ouvidos da última nota teimosa dum kuduro qualquer, e decidiram sair à rua e manifestar o seu descontentamento, conforme permite a constituição do nosso estado democrático de direito no seu artigo 47.


Curiosamente, a reacção do regime foi parecida com a do colono nos tempos idos. Em vez de atender às preocupações legítimas da juventude, chamaram-nos nomes. Oportunistas. Demagogos. Fantoches. Intriguistas. Disseram que a realidade aqui é diferente, que os “ventos do norte” jamais chegariam à Angola. Exortaram os seus cidadãos a se manterem vigilantes contra os que queriam “manchar a paz” (como se mancha a paz com uma manifestação pacífica?) e a “tranquilidade pública”. Disseram que a realidade em Angola era diferente e que os que queriam uma democracia verdadeira simplesmente queriam imitar o que viam no estrangeiro. Denunciaram-nos como confusionistas e que só estávamos a usar o nome do povo para “motivos pessoais” e “objectivos inconfessos”. Quando a juventude se manifestou, reprimiram-na, atirando-a para cadeias na noite cerrada por ousarem pensar de forma diferente e quererem gerir os seus próprios destinos.


Enquanto que no mundo a juventude é a impulsionadora da mudança e da renovação, em Angola ela é insultada, o seu ensino é asfixiado, e o seu emprego quase que inexistente. Enquanto que o mundo abraça as novas tecnologias de informação (neste momento a valorização do Facebook ronda os $8 bilhões), em Angola o acesso a elas sofreu um atentado de restrição, por parte de um regime com medo da sua própria sombra, com maioria absoluta de 80% no parlamento mas fabricando panfletos falsos e violentos para tentar denegrir a iniciativa de uns vinte ‘gatos pingados’.


Os tempos estão a mudar, e a marcha da democracia por África é real. Como a caravana citada acima, ela passa. Com cães a ladrar ou não, ela continuará a passar. Com o advento da internet, a propaganda de outrora já não funciona. Pouco por pouco, a população vai abrindo o olho. A juventude já não cai nas mesmas fintas dos tempos idos. Os nossos problemas são reais, e queremos ser uma força competitiva em África e no mundo, não por virtude do preço do nosso petróleo, ou no número de estradas descartáveis que construímos, o pelo número de prédios de vidro na baixa de Luanda, mas sim pela nossa capacidade de gerir os nossos próprios destinos, sim pela quantidade de doutores, juristas, pesquisadores, gestores e professores entre nós, sim pelo número de invenções feitas por angolanos, sim pela nossa capacidade intelectual, sim pelo nosso poderio financeiro não extraído por estrangeiros mas feito por angolanos e para angolanos, e sim pela força da nossa democracia.


Quão bela é a história.


A beleza da historia é que não obstante a sua diversidade colorida e diversa, ela se repete. E a teimosia do homem é que, não obstante a repetição da história, ele se recusa a aprender dela.


Resta saber se o regime angolano saberá lidar com as lições da história.