Luanda - Conferência sobre «Transparência, Corrupção, Boa Governação e cidadania em Angola»

 

Luanda, 28 e 29 de Junho de 2011
Auditório do Centro de Formação de Jornalistas (CEFOJOR)

 Tema apresentado na conferencia da AJPD


“A promiscuidade entre a política e os negócios pode ser perfeitamente legal, mas pode matar um regime” (António Barreto, 6 de Novembro de 2008, Lisboa, in Público)


A construção da Democracia e o fenómeno da corrupção na República de Angola

 

Quero antes de mais agradecer o convite formulado pela Associação Justiça, Paz e Democracia (AJPD) na pessoa do seu Presidente Dr. António Ventura, para estar nesta conferência e partilhar com todos alguns pensamentos, ideias, inquietações de uma jovem académica que, tal como muitos nesta sala, luta por uma verdadeira implantação do estado de direito democrático em Angola, livre do mal da corrupção.

 

Durante o dia de ontem ouvimos brilhantes prelecções sobre a questão da corrupção, quer na vertente económica, social, ética e jurídico-penal. Pretendemos trazer para este fórum uma perspectiva diferente: a vertente jurídico-política da corrupção. É desta última dimensão que pretendo falar. Tentarei fazê-lo de forma a estabelecer uma ponte entre esta abordagem e os princípios da igualdade, dignidade da pessoa humana, do estado de direito, do democrático e do republicano.

 


Angola vive um momento crucial de mudanças negativas que afectam a sua identidade e perigam o futuro do seu povo. Mudou a geografia política e humana, alterou-se a economia política e agudizou-se a crise social. Temos uma república sem republicanismo, um estado democrático sem democracia, um estado de direito que viola os direitos fundamentais dos cidadãos e uma Constituição derivada de fraudes e fundada na inconstitucionalidade.

 

Por outro lado, após quase dez anos de paz militar, os angolanos começam, a perceber que a guerra, afinal, não era a causa principal da repressão, nem da corrupção; e que as desigualdades e a pobreza estão mais ligadas à exclusão social do que à guerra. Percebem também que zelar pela boa governação dos recursos de todos não deve preocupar apenas os partidos políticos, mas constitui tarefa de todos os cidadãos. Vemos hoje uma juventude crítica, empreendedora e participativa, que começa a perder o medo e a encher-se de coragem para reivindicar os seus direitos, para falar política e exercer o poder político, tal como a juventude revolucionária dos anos 60 e 70 do século passado. Considero que chegou o momento de todos “falarmos política”, frontalmente e apresentarmos propostas correctivas para construirmos o nosso futuro.
 


O processo de construção da democracia angolana confunde-se com o processo de consagração da República. É um processo complexo que envolve a transição cultural e material de Partido/Estado para estado de partidos; da guerra para a paz; da exclusão para a inclusão; da corrupção para a transparência; da repressão para os direitos humanos; de Estado de não direito para o Estado de direito. Envolve, prioritariamente, a aceitação de pertença a uma comunidade política – Angola – onde o exercício do poder político tem por objectivo único servir a comunidade; e onde o Estado é uma pessoa de bem sob o controlo do cidadão. Isto implica a subordinação de todos ao princípio republicano.

 

O processo de construção da democracia angolana teve o seu início há mais de três décadas. Nasceu corrompido, foi várias vezes defraudado e encontra-se encalhado exactamente porque os angolanos ou não compreenderam ou não aceitaram ainda o princípio republicano.

 

Depois de proclamada a República Popular de Angola, em 1975, o processo de construção da democracia, envolveu batalhas militares entre exércitos estrangeiros em solo angolano, intensa actividade diplomática em solo estrangeiro e pouco ou nenhum diálogo estruturado sério entre angolanos, em solo angolano. Esta é outra das razões porque o processo democrático se encontra encalhado até hoje.

 

O Memorandum de Entendimento assinado no Luena, em 2002, foi essencialmente um documento militar que não envolveu um diálogo constitutivo sério para o processo de construção da democracia.  

 

Todos estes eventos e documentos históricos, apesar de imprescindíveis para o alcance da paz militar, revelaram-se insuficientes para o processo de construção da democracia.

 

Porque a cultura do totalitarismo, da intolerância e da exclusão, dominou tanto o movimento de libertação nacional como a sociedade e o Estado e a vida pós-independência ; e porque nem os artífices da independência nacional nem a sociedade formada após ela herdaram da potência colonial uma referência de valores e princípios republicanos para o exercício do poder político numa República, a construção de uma democracia sólida em Angola implica necessariamente dois passos prévios:
 

 

1. A estruturação e institucionalização da reconciliação nacional como premissa da dignidade da pessoa humana e da cidadania igual para todos; 


2. A estruturação de um diálogo franco e introspectivo sobre a natureza, os objectivos, os limites e os fundamentos do poder político numa República.

 

Os programas concretizadores da reconciliação nacional terão de abarcar a dimensão cultural, política e económica para se alcançar a plena restauração e renovação do tecido social. O diálogo introspectivo deverá incluir as regras de acesso ao poder e os conteúdos do seu exercício para que, com base nos princípios universais, os angolanos possam compreender e aceitar, por exemplo, a resposta às seguintes questões fundamentais:

 

Quem deve deter o poder político? Deter e exercer o poder político é a mesma coisa? Por quanto tempo deve o titular deter o poder político? Por quanto tempo deve o seu representante exercê-lo? E como? E porquê que o poder político pertence ao povo e só pode pertencer ao povo? E quem é o povo? Que relação deve existir entre o titular do poder político e o titular de cargos políticos? Quais as regras de acesso ao exercício do poder político? Porque é que os titulares de cargos políticos não devem participar na organização de eleições?


Que papel desempenham os princípios estruturantes da organização do Estado na construção de uma sociedade justa, democrática, solidária, de paz, igualdade e progresso social? O que significa dizer que Angola é uma República? E o que significa para o Presidente da República dizer-se que a República baseia-se na dignidade da pessoa humana e na vontade do povo angolano? 

 

Acredito que encontrar-se a resposta correcta e estruturada a essas perguntas – e aceitá-las incondicionalmente - é o que permitirá desbloquear o processo de construção da democracia angolana.

 

De facto, a democracia angolana não se constrói com Acordos assinados fora de Angola por alguns dos seus filhos, nem com Constituições impostas para promover os interesses de algumas famílias e muito menos com actos de corrupção, coacção ou de cooptação política ou económica. A democracia é um ambiente que se constrói a partir da aceitação plena e sem reservas do princípio da igualdade entre os homens, dos direitos e liberdades individuais e do princípio do governo do povo, para o povo e pelo povo; a democracia constrói-se com o diálogo permanente e inclusivo assente no pensamento liberal e no constitucionalismo moderno.

 

Esta tarde, proponho-me a contribuir para esse diálogo colectivo com a apresentação e discussão de três teses:

 

1. A relação entre processo democrático e corrupção é endémica. Ao longo dos anos, o fenómeno da corrupção tem obstruído o processo de construção da democracia angolana e tornou-se num obstáculo sério para a afirmação da República como Estado de direito.

 

2. O Estado actual não pode combater nem punir a corrupção, porque o seu governo funda-se na corrupção e promove a corrupção por sistematicamente subverter a democracia, defraudar a Constituição e utilizar a res publica para promover a res privata dos titulares de cargos públicos.

 

3. A actual geração só cumprirá o seu papel histórico se aceitar agora o desafio de firmar uma frente comum para criar as condições conducentes ao estabelecimento efectivo da República de Angola como estado de direito democrático. 

 

Primeira tese

 

A relação entre processo democrático e corrupção é endémica. Ao longo dos anos, o fenómeno da corrupção tem obstruído o processo de construção da democracia angolana e tornou-se num obstáculo sério para a afirmação da República como Estado de direito.

 

De acordo com a definição de Rui Teixeira Santos, “agregamos na palavra corrupção um conjunto de comportamentos ilícitos, que afectam o público e o privado e que incluem extorsão, fraude, nepotismo, o dinheiro sujo, o roubo, comissões, falsificação de registos, o tráfico de influências, lavagem de dinheiro e as contribuições de campanha” .

 

A corrupção que obstrói o processo democrático é essencialmente a corrupção da alta hierarquia, aquela que impacta a vida política e a estrutura do Estado. Susan Rose-Ackerman caracterizou os efeitos da corrupção na vida política e na estrutura do Estado defendendo que “a corrupção da alta hierarquia cria cleptocracias, Estados extorsionários ou Estados fracos e incentiva o monopólio, enquanto a corrupção da baixa hierarquia cria subornos competitivos com possível espiral e Estados mafiosos” .

 

A corrupção política que cria estados mafiosos é uma falha do Estado. Tem-se debatido e evidenciado não só “a existência de uma relação entre a pobreza e a corrupção, entre o subdesenvolvimento e a corrupção, entre a eficiência e corrupção”  mas também a existência de uma relação estreita entre o efectivo exercício da democracia num estado de direito e a corrupção.

 

É desta última dimensão que trata a nossa apresentação. Na primeira tese, tentarei apresentar no tempo exemplos de como a corrupção política influenciou a construção da democracia; na segunda e na terceira teses estabelecerei uma ponte entre esta abordagem e os princípios da igualdade, dignidade da pessoa humana, do estado de direito, do princípio democrático e do princípio republicano.

 

A corrupção política tem-se manifestado na forma de violação sistemática dos acordos políticos e deturpação e manipulação de conceitos político-jurídicos fundamentais, como os conceitos de soberania, povo, unidade nacional e segurança do estado; manifesta-se também através de fraudes à Constituição e fraudes eleitorais; manifesta-se ainda pela violação sistemática dos princípios da supremacia da Constituição e da legalidade; engendra a banalização da política e a subversão do papel do Estado, objectivando sempre o exercício do poder político por uma classe ou grupo social ao arrepio do princípio republicano e do princípio democrático.

 

A história regista que, ao longo dos anos, a corrupção foi utilizada para subverter todas as etapas importantes do processo constitutivo da República e do regime democrático. Em 1975, as forças corruptivas sabotaram os Acordos de Alvor e impediram a organização de eleições livres para os angolanos elegerem uma Assembleia Constituinte e redigirem a Constituição da sua primeira res publica.

 

A corrupção dos conceitos de soberania e povo, na década de 80, alimentou o fratricídio e a política de exclusão. As negociações políticas foram utilizadas como manobras tácticas dos objectivos militares, pelo que não se podia perder por via eleitoral o que já se havia alcançado no plano militar.

 

As motivações dos mediadores estrangeiros também se revelaram corrompidas: provam-no o fiasco de Gbadolite, promovido pelos interesses de Mobutu, em Junho de 1989, os interesses cruzados de Portugal, em 1975, as ambiguidades, cumplicidades e contradições americanas e soviéticas, na década de 90; e o papel geo-político que Cuba e África do Sul jogaram na defesa de interesses opostos à construção da República e da democracia angolana . 

 

Saídos os estrangeiros e consagrada constitucionalmente a República democrática, a corrupção continuou a orientar a direcção política e institucional do país, agora por via de atentados e fraudes à Constituição.

 

Um desses atentados ocorreu em 3 de Junho de 1996, quando, em contravenção ao disposto no Artigo 118º da Lei Constitucional, o Presidente da República exonerou o Primeiro-ministro, um órgão autónomo, eleito (indirectamente) com a legislatura de 1992, antes do termo da legislatura e sem este ter apresentado a sua demissão, sem ter havido a eleição de um novo Presidente da República, uma moção de censura, a dissolução da Assembleia, ou outra situação de excepção, prevista na Lei Constitucional de então.

 

Depois deste atentado, e não obstante JES ter nomeado um novo Primeiro Ministro, o Tribunal Supremo clarificou por Acórdão, e a requerimento de Eduardo dos Santos, que, apesar da existência de um Primeiro-ministro, o Presidente da República era o Chefe do Governo.

 

Um novo acto de corrupção que bloqueou o avanço do processo democrático ocorreu em 22 de Julho de 2005, por via judicial, quando Eduardo dos Santos causou que o Tribunal Supremo lavrasse o Acórdão relativo ao Processo Constitucional nº 12, que agrediu o princípio republicano ao decretar, na prática, que o Presidente da República em exercício poderia perpetuar-se no poder.

 

Os dois processos eleitorais realizados em 1992 e em 2008, também foram eivados de actos de corrupção na forma de fraudes estruturadas. A fraude eleitoral de 2008 foi planeada para permitir dois outros actos de corrupção: utilizar um acto democrático – a eleição – para subverter a democracia e utilizar os resultados laboratoriais da eleição para subverter os direitos políticos dos cidadãos, impedindo-lhes de exercer o direito a soberania através do sufrágio universal para a escolha do seu representante para o cargo de Presidente da República de Angola.

 

Assim, por via da corrupção, foi consagrada em 2010 uma Constituição autoritária, que foi aprovada em contravenção às regras procedimentais e ao princípio da separação de poderes que constitui limite material imposto em 1992 ao poder constituinte formal; que agride tanto o princípio republicano como o princípio democrático ao configurar-se instrumento e não fundamento do poder; que irá, por isso, bloquear a realização de processos eleitorais competitivos e credíveis, pelo facto de consagrar um sistema de governo que, segundo o professor Jorge Miranda, aproxima se, sim, do sistema de governo representativo simples , a que, configurações diversas, se reconduziram a monarquia cesarista francesa de Bonaparte, a república corporativa de Salazar segundo a Constituição de 1933, o governo militar brasileiro segundo a Constituição de 1967 1969, vários regimes autoritários africanos   .

 

A pergunta que se coloca agora é: pode o Estado actual combater e punir a corrupção?


Segunda tese

 

O Estado actual não pode combater nem punir a corrupção, porque o seu governo funda-se na corrupção e promove a corrupção por sistematicamente subverter a democracia, defraudar a Constituição e utilizar a res publica para promover a res privata dos titulares de cargos públicos.

 

O desenvolvimento desta tese implica uma apreciação sumária da actuação dos sucessivos governos do Partido/Estado à luz dos princípios fundamentais da República de Angola, porquanto, segundo De Plácido e Silva, nos princípios “não se compreendem somente os fundamentos jurídicos, legalmente instituídos, mas todo axioma jurídico derivado da cultura jurídica universal. Compreendem, pois, os fundamentos da Ciência Jurídica, onde se firmaram as normas originárias ou as leis científicas do Direito, que traçam as noções em que se estrutura o próprio Direito” .

 

Assim, mesmo não inscrito nas leis, mas porque os princípios servem de base ao Direito, “são tidos como preceitos fundamentais para a prática do Direito e proteção aos direitos” .

Analisemos o primeiro princípio: “Angola é uma República soberana e independente, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade do povo angolano, que tem como objectivo fundamental a construção de uma sociedade livre, justa, democrática, solidária, de paz, igualdade e progresso social.” 

 

A primeira parte do preceito, Angola é uma República soberana, é rico em conteúdo porque se refere, antes de mais, à comunidade política que corresponde à Nação angolana no rigoroso sentido histórico-cultural. Numa república existem coisas públicas e coisas privadas. A res publica tem a ver com tudo que seja do domínio público, tudo que seja de todos, como o diamante e o petróleo, de que nenhum indivíduo pode apropriar-se. Outra coisa é a res privata – todos os bens que todas ou determinadas pessoas podem adquirir. Temos que ter em atenção que nenhum titular pode aproveitar-se da qualidade de membro ou titular de um cargo político para fazer transferir da res publica para sua res privata e por isso é que o legislador constituinte estabeleceu inelegibilidades, responsabilidades criminal e civil dos titulares de cargos políticos e incompatibilidades . 

 

Para além deste aspecto, regista Jorge Miranda, pode ainda, contudo, encarar-se a república numa perspectiva algo diversa – na perspectiva de uma democracia mais exigente e qualificada. Sendo nela o poder do povo e constituindo o povo de cidadãos livres e iguais, procura-se levar esta ideia até ao fim, em total coerência. Pois, se a proscrição da hereditariedade se justifica por isso, então outras consequências poderão e deverão estar-lhe ligadas, em nome do mesmo princípio – do princípio republicano .

 

A essência do princípio republicano é bem explicada pelo eminente professor: “Não se trata apenas de eleger, e de eleger periodicamente: trata-se de eleger todos os titulares de todos os órgãos políticos; e trata-se também, desde logo, de banir quaisquer desigualdades, designadamente quaisquer privilégios de nascimento. Não se trata apenas de eleger, directa ou indirectamente, o Chefe do Estado; trata-se ainda de qualquer cidadão activo poder vir a ser eleito e de poder vir a ascender a qualquer magistratura. Mas, mais, o princípio republicano postula:

 

a) A configuração de todos os cargos do Estado, políticos e não políticos, em moldes de estatuto jurídico traduzido em situações funcionais, e não em direitos subjectivos stricto sensu ou, muito menos, em privilégios;


b) A prescrição de incompatibilidades entre os cargos;


c) A responsabilidade política pelo seu exercício;

d) A temporariedade de todos os cargos do Estado, políticos e não políticos, electivos e não electivos;


e) Consequentemente, a proibição quer de cargos hereditários, quer de cargos vitalícios; a duração curta dos cargos políticos;


f) A limitação da designação para novos mandatos (ou do número de mandatos que a mesma pessoa pode exercer sucessivamente), devendo entender-se a renovação assim propiciada tanto um meio de prevenir a personalização e o abuso do poder como uma via para abrir as respectivas magistraturas ao maior número de cidadãos;


g) Após o exercício dos cargos, a não conservação ou a não atribuição aos antigos titulares de direitos não conferidos aos cidadãos em geral (e que redundariam em privilégios) .

 

Ao furtar-se sistematicamente à eleição para o exercício de cargos electivos; ao personalizar, abusar e perpetuar-se no poder – impedindo a abertura da respectiva magistratura ao maior número de cidadãos – ; ao concentrar em si próprio os poderes que a Constituição de 2010 confere ao Presidente da transição e isentar-se da responsabilidade política pelo seu exercício, o actual Chefe de Estado ofende o princípio republicano e desqualifica-se, portanto, para poder combater a corrupção endémica. Não se pode actuar como Presidente da República sem se respeitar o republicanismo e as suas regras.

 


No segundo segmento do artigo, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular, fixam-se os fundamentos e os limites da acção do Estado na protecção do ser de todas as pessoas. “A dignidade da pessoa humana é um prius, a vontade popular está-lhe subordinada; não se lhe contrapõe como princípio com que tenha de se harmonizar, porquanto é a própria ideia constitucional de dignidade da pessoa humana que a exige como forma de realização”, ensinam António Cortês e Jorge Miranda; não há respeito da vontade do povo angolano sem respeito da dignidade da pessoa humana. “Uma sociedade que respeita a dignidade da pessoa humana”, ensina Miranda, “é aquela em que as pessoas são reconhecidas como pólos de liberdade, são tratadas com justiça e apoiadas com solidariedade. Desta forma, se a vontade popular se subordina finalisticamente à dignidade da pessoa humana, também esta, por sua vez, se liga ao modelo ideal de sociedade que lhe corresponde: o de uma “sociedade livre, justa e solidária” .

 

E aqui se manifesta particularmente a falha do Estado. Para a maioria em Angola, o que está em causa é exactamente a disfuncionalidade de um sistema que é viciante, manipulador do exercício efectivo de direitos e liberdades, criando abusos, contornando a lei e as regras, fazendo com que os mais abastados, os mais protegidos e os mais ricos fiquem cada vez mais ricos por via dos actos de uma gestão danosa e predadora da coisa pública e à custa do sacrifício da dignidade humana da maioria.

 

E mais: a falha do Estado é agravada porque a classe que enriquece ocupa cargos públicos, controla o poder político do Estado por via do Partido/Estado, que, por sua vez, controla tanto a administração da justiça como a administração eleitoral.

 

Na prossecução dos interesses das suas res privata, e com recurso a esquemas de corrupção política e económica, a classe no poder faz com que a larga maioria seja excluída da efectiva participação na gestão da res publica (coisa pública) e do acesso aos principais bens de primeira necessidade, nomeadamente água, energia, alimentação, vestuário, educação, assistência médica e medicamentosa, saneamento básico e habitação condignos.

 

Não se constrói uma sociedade livre, justa e solidária, com esquemas de corrupção institucionalizada que empobrecem a grande maioria da Nação e impedem o desenvolvimento da dignidade da pessoa humana.

 

Outra falha do Estado reside no facto de os seus órgãos não investigarem convenientemente os furtos ao Tesouro já tornados públicos; os chamados investimentos de angolanos titulares de cargos públicos enriquecidos de dia para noite; os esquemas de sobrefacturação, contratação fraudulenta, negócios consigo mesmos, etc., já amplamente denunciados e debatidos pelos prelectores que me antecederam.

 

O facto de o Estado angolano não investigar convenientemente as denúncias públicas de corrupção; o facto de nem o Chefe de Estado nem o titular do Poder Executivo terem vindo a público explicar como surgiram as fortunas das res privata com cargos públicos ou seus parentes próximos, indiciam no mínimo que esses órgãos se demitiram das suas funções constitucionais.

 

A relação de dependência orgânica do Procurador-Geral da República relativamente ao Chefe de Estado tem importantes consequências do ponto de vista do princípio da separação e do controlo dos poderes e tem refracções profundamente negativas na possibilidade de combate à corrupção. Se a essência da corrupção reside principalmente no poder executivo, que é titulado pelo Presidente da República, não se pode garantir transparência, autonomia e independência do Procurador-Geral, se esta entidade responsável pelo combate à corrupção for nomeado e destituído pelo Presidente da República.

 

Exposta a dimensão do problema, conclui-se que a corrupção em Angola é endémica, está na génese do Estado e não se combate com simples normas jurídicas. Assim, pergunta-se: se o Estado angolano consolidou-se sob o signo da corrupção política, se o seu governo funda-se na corrupção, se a corrupção política promove e sustenta a corrupção económica; se a endemia tornou-se num obstáculo para a construção do Estado de direito em Angola, o que podemos fazer?

 

Que medidas profundas pode a Nação adoptar para a moralização do Estado?

 

Terceira tese


A actual geração só cumprirá o seu papel histórico se aceitar agora o desafio de firmar uma frente comum para criar as condições conducentes ao estabelecimento efectivo da República de Angola como Estado de direito democrático. 

Como referi no início, Angola vive um momento crucial de mudanças negativas que afectam a sua identidade e perigam o futuro do seu povo. Acho que chegou o momento de todos “falarmos política”, frontalmente e apresentarmos propostas correctivas para construirmos o nosso futuro.

E penso que é para isso que todos estamos aqui. A realização de conferências como esta é muito importante, porque nelas podemos trocar ideias e programar outras acções. Eu trago algumas propostas.

O momento exige a intervenção do soberano para a restauração da república e a reformulação do Estado. Entendo serem estes os dois pilares da revolução político-cultural que Angola reclama. Repito: a restauração da república e a reformulação do Estado. E como se faz isso?

Proponho cinco medidas concretas, todas elas baseadas no princípio do estado de direito democrático e no princípio da soberania popular, consagrados nos artigos 2º e 3º da Constituição:

1. Reforçar o grau de participação individual no exercício da soberania;
2. Definir por consenso nacional o programa de reconciliação nacional;
3. Declarar anti-republicana e antidemocrática qualquer candidatura do actual Presidente da República a um cargo electivo do Estado;
4. Estabelecer por consenso nacional o novo sistema de governo para Angola 
5. Estabelecer uma frente comum para terminar, por via eleitoral, o mandato do Partido/Estado na governação de Angola.

 

Reforçar o grau de participação individual no exercício da soberania;

 

O artigo 2º da Constituição proclama a República de Angola um “Estado democrático de direito que tem como fundamentos a soberania popular, (...) o pluralismo de expressão e de organização política e a democracia representativa e participativa”.

É verdade que está aqui declarado o princípio democrático. Mas quem decide o futuro das Nações é o povo activo. São os cidadãos activos que compõem o povo activo e são estes que fazem a diferença.

 

Quando se fala em democracia participativa, comenta Jorge Miranda, “pensa-se, todavia, em participação de grau mais intenso ou mais frequente do que o voto de tantos em tantos anos ou mais próximo dos problemas concretos das pessoas”. E isto pode ser feito “através de um mais intenso e empenhado aproveitamento dos direitos políticos constitucionalmente garantidos, de uma integração activa nos partidos e em diferentes grupos de cidadãos eleitores e de uma maior disponibilidade para o desempenho de cargos públicos” . 

 

E isto é assim, porque “a democracia representativa do nosso tempo é também uma democracia de partidos. Sem serem os únicos, eles são os sujeitos ou agentes centrais da sua dinâmica, através da simplificação das escolhas eleitorais imposta pelo sufrágio universal, pelo contraditório, parlamentar e não parlamentar e pela apresentação de alternativas programáticas e de governo”15.

 


O artigo 3º da Constituição estabelece que tanto a titularidade como o exercício da soberania pertencem ao povo, que a exerce através do sufrágio universal, livre, igual, directo secreto e periódico, do referendo e das demais formas estabelecidas pela Constituição, nomeadamente para a escolha dos seus representantes.

 

Importa aqui abrir um parêntesis para explicar o conceito jurídico de soberania antes de falarmos das formas do seu exercício.

 

A soberania é poder, é vontade. Por isso, a soberania é inalienável pela sua própria natureza. A vontade é personalíssima: não se aliena nem se transfere a outrem. Só o dono da vontade a pode manifestar. Os delegados e representantes eleitos hão-de exercer o poder de soberania segundo a vontade do corpo social consubstanciada na Constituição e nas leis. A soberania (vontade nacional), sendo inalienável, é indelegável e intransferível. O povo transfere aos seus representantes o exercício do poder de soberania, mas o conserva na sua substância. Por isso é que pode manifestar de tempos a tempos. E o momento actual é um desses tempos, porque os representantes do povo deixaram de exercer o poder de acordo com a vontade geral expressa na Constituição e nas leis. 

 

No sistema democrático, os representantes do soberano não têm nenhuma autoridade para substituírem a vontade da lei pela sua própria vontade. É o direito, e não o arbítrio das pessoas, que regula as funções de governo e define as normas de conduta dos agentes do poder público. É a lei que limita o poder de governo.

 

Durante muitos anos, estes conceitos foram corrompidos para sustentar interesses difusos. Uma guerra civil nunca pode ser feita para defender a soberania nacional porque todo o povo nacional, de um lado e do doutro, é o detentor único da soberania, que é una, indivisível, inalienável e imprescritível pela sua natureza.

 

As eleições, os referendos e as demais formas estabelecidas pela Constituição, são os actos específicos de exercício da soberania e da manifestação da vontade do povo angolano que alicerçam a República angolana. Por isso, são verdadeiros e próprios actos jurídico-públicos.

 

E quais são essas demais formas do exercício da soberania?

 

Instrumentos desta soberania popular são por exemplo o exercício do direito de voto através do sufrágio universal igual directo e secretos (artigos 54º e 3º nº1 da CRA), a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais (artigo 52º da CRA) pois que, o exercício ou monopólio da política não deve ser apenas dos partidos políticos, os sindicatos e associações políticas devem fazer o exercício da mesma numa sociedade democrática); e a participação dos cidadãos no exercício do poder local. (artigos 213º a 222º da CRA).

 

“É o direito de sufrágio, o ius sufragii que faz os cidadãos optimo jure ou cidadãos activos – na fórmula de Sieyes – e que melhor define os status activae civitatis (a que se referia Jellinek). Seria isso que provavelmente também queria realçar Aristóteles ao afirmar que, quando o povo era senhor do voto, se tornava senhor do governo (constituição de Atenas, na tradução de Delfim Ferreira Leão)” .

 

Definir por consenso nacional o programa de reconciliação nacional;
Ao excluir todos os outros, primeiro em 1975 e depois em 1991 e mesmo em 2010, o MPLA definiu quem são os seus adversários. No plano militar, era a UNITA, mas no plano político é a toda a parte da Nação angolana que não se revê no MPLA. Portanto, o processo de construção da democracia implica primeiramente uma exaustiva discussão nacional sobre o futuro do país. Esta é a chave mestra da reconciliação nacional.

 

Filomeno Vieira Lopes, em artigo de opinião no Jornal português “O Público” aquando da conferência de Bruxelas, em Setembro de 1995 reconheceu este facto ao afirmar, cito:

 

“ É nossa convicção que o êxito de qualquer programa de reconciliação nacional pressupõe uma exaustiva discussão interna sobre os rumos que o país deve seguir. Uma discussão exactamente não exclusivista. O país possui, neste momento, um grau de desestruturação a todos os níveis (institucional, social, político, etc.,) capaz de subverter qualquer intenção magnânima e reduzi-la a mero desperdício (...) o problema de fundo é que as balizas da convivência política em Angola não se encontram ainda definidas (…) o golpe constitucional recentemente protagonizado pela bancada maioritária do MPLA no Parlamento, não teve um agreement completo da UNITA, cuja bancada votou contra”.

 

Quinze anos depois, o Partido/Estado protagonizou novo golpe. E este teve o repúdio firme da UNITA e de várias outras forças democráticas. Mas a citação continua actual, pelo que se impõe este amplo diálogo nacional para a definição dos grandes objectivos e dos grandes conteúdos da reconciliação nacional. Os programas concretizadores da reconciliação nacional terão de abarcar a dimensão cultural, política e económica para se alcançar a plena restauração e renovação do tecido social.

 


Declarar anti-republicana e antidemocrática qualquer candidatura do actual Presidente da República a um cargo electivo do Estado;

 

Dos princípios democrático, republicano e da igualdade material resulta uma interdição da candidatura do actual Presidente quer para o cargo de Presidente da República, quer para o cargo de Primeiro Ministro, no caso da adopção de um sistema de base parlamentar.

 

O princípio republicano tem como corolário a não vitaliciedade dos cargos políticos. Ele pretende contrariar a lógica monárquica de sucessão dinástica ou a auto-proclamação do Chefe do Estado como dictator rei publicae constituendae causa ou Cônsul Vitalício, de direito ou de facto. E esta expressão “de direito ou de facto” assume relevância no momento em que ditadores natos procuram defraudar o constitucionalismo por se manterem no poder de facto mas não de direito. Na Rússia, por exemplo, observou-se que o autoritarismo e personalização do poder em Vladimir Putin, tornou praticamente irrelevante a questão de saber se ele ocupa a posição de Presidente ou de Primeiro Ministro, na medida em que é ele, de facto, quem exerce o poder. Na Venezuela observou-se recentemente a aprovação, por referendo, de uma emenda constitucional admitindo a reeleição ilimitada do Presidente. Quer o líder russo, quer o líder venezuelano, violaram a essência do princípio republicano.

 

No nosso caso, a questão que se coloca à cidadania nacional é se uma pessoa que, pelas mais variadas razões, ocupou o cargo de Chefe de Estado durante mais de 30 anos pode voltar a candidatar-se em funções presidenciais, como se nada se tivesse passado.
 


Eu afirmo que não. Não porque a candidatura de José Eduardo dos Santos fere três princípios fundamentais: o princípio republicano, o princípio democrático e o princípio da igualdade.

 

José Eduardo dos Santos não pode ser nivelado com os demais cidadãos, porquanto ele controla (não institucionalmente mas pessoalmente) a informação, a comunicação social, as finanças públicas e a economia. E para o efeito conta com a máquina administrativa do Estado e com estruturas paralelas, civis e militares; conta ainda com a ausência de controlo e a não prestação de contas; conta também com a subordinação do poder judicial e da actual administração eleitoral. O peso que os mais de 30 anos de exercício de poder lhe conferem, de direito e de facto, nas estruturas de poder político, económico, militar e social do país, distorce o processo político e democrático republicano. A sua eventual candidatura favorece uma eleição anti-republicana e contribui para impedir a renovação da legitimidade democrática e emperrar, ainda mais, o processo de construção da democracia.

 

E temos de ter coragem como Nação para afirmar que o Acórdão do Tribunal Supremo de 2005 é nulo à luz do constitucionalismo, porque ele viola o princípio republicano e o princípio democrático. Se na Rússia e na Venezuela, os cidadãos estiveram distraídos, em Angola, isto não devia acontecer. Os angolanos não deviam permitir que uma pessoa pisasse a res publica e cuspisse no estado de direito.

 


Portanto, deve ser entendido por todos os angolanos que o princípio republicano e o princípio democrático, não permitem que o actual Presidente de mais de 30 anos exerça o poder representativo de direito - como Presidente ou como outro órgão – nem de facto - como líder partidário ou como Deputado que exerce de facto o poder na sombra através do controlo de um delfim.

 

Estabelecer por consenso nacional o novo sistema de governo para Angola
 


Para restaurar a República e reformular o Estado, as forças democráticas precisam de definir agora, bem antes das eleições, o novo sistema de governo que deverão propor à Nação.

 

Que modelos para Angola? Quais as melhores vias para se abolir o fenómeno do Partido-estado em Angola? A via eleitoral ou legislativa? A revolução cultural ou social?

 

Qual o melhor caminho para Angola? Um estado de partidos ou um Estado de cidadãos? Se se adoptar o Estado de Partidos, que relação deve existir entre o Chefe do Estado e o sistema eleitoral? E entre o Chefe de Estado e o sistema partidário? O Presidente da República deve ser partidário ou apartidário? Quem deve ser o líder do partido político no poder?

 

Até que ponto é que a concentração de poderes no Presidente da República e a sua eleição directa, a duas voltas, pode afectar o multipartidarismo e a existência de partidos coesos?
 


Em que medida é que um sistema eleitoral proporcional para as eleições parlamentares, eventualmente com cláusulas barreira, poderia funcionar como um elemento relativizador dos poderes presidenciais, sem comprometer a governabilidade e a estabilidade?

 

Deve o futuro Chefe de Estado realizar uma função de arbitragem jurídica ou de arbitragem política? Os futuros presidentes devem mesmo ser chefes do executivo e executar as políticas do Parlamento? Deve o Parlamento limitar-se a executar legislativamente as orientações políticas do Chefe de Estado, na sua qualidade de líder partidário?

 

Alguns autores defendem que se o Presidente da República exerce função governante, ou executiva, então, de acordo com a teoria cívico-republicana do poder político, a dimensão patriarcal e simbólica da figura de Chefe de Estado que ele personifica devia diluir-se em favor da sua dimensão cívica e igualitária, bem como o reforço da responsabilidade política e da vinculação jurídica. Nesse sentido, Pedro Lomba afirma que "uma governação responsável é aquela que age segundo critérios morais ou de acordo com padrões de justiça, aquela cuja legitimidade é pública e consensualmente aceite. Um dos corolários da moralidade política é a interdição da arbitrariedade; outro, o respeito pelos direitos individuais dos cidadãos... Quanto mais representativos, mais responsáveis foram e são obrigados a ser os titulares do poder político” .
 


Estabelecer uma frente comum para terminar, por via eleitoral, o mandato do Partido/Estado na governação de Angola (e definir medidas de participação política que garantam que as eleições de 2012 sejam realmente livres, democráticas e credíveis).

 

A pluralidade e a liberdade política não deveriam dispersar o voto conveniente. O voto conveniente tem precedência ao voto militante exactamente porque o momento exige que os patriotas e democratas angolanos, de todos os partidos, coloquem o interesse nacional acima do interesse pessoal ou de grupo. Este é o grande desafio que se apresenta à nossa geração nas próximas eleições.

 

Há os que defendem que Angola precisa primeiro de uma revolução político-cultural pacífica para restaurar a república e só depois deveria realizar eleições. Eu acho que esta revolução já está em marcha.

 

E deve notar-se que, como ensinam os constitucionalistas, revolução é um movimento de profundidade nacional destinado a uma ampla reforma social, ética e jurídica. É a substituição de uma ideia de direito por outra, enquanto princípio director da actividade social. Não é apenas uma mudança ocasional de centro do poder de dominação, mas uma transmutação da sociedade na sua estrutura total, legitimando-se principalmente pela sua consonância com o pensamento dominante e com as tradições históricas da nacionalidade.

 

É disto que Angola necessita. O importante é que seja feita por acordo, de forma pacífica, porque, como ensina Jorge Miranda, por exemplo, “... a revolução não é o triunfo da violência; é o triunfo de um Direito diferente ou de um diverso fundamento de validade do sistema jurídico positivo do Estado. Não é antijurídica; é apenas anticonstitucional por oposição à anterior Constituição – não em face da Constituição que, com ela, vai irromper. A revolução procura privar o direito da sua força, mas para atingir esse fim ela coroa de direito a força revolucionária”.

 

E como afirmou recentemente o Presidente da UNITA, e passo a citar: “Angola precisa não de temer a mudança, mas de perspectivá-la bem no interesse de todos, sem revanchismos nem caça às bruxas, mas com grandeza moral e no espírito da reconciliação e da construção da nação”. 

 

A frente comum a que me refiro pode assumir várias formas. Pode ser uma frente de acções concertadas, um fórum de concertação política, uma agenda nacional de intervenção política, um movimento nacional, ou mesmo uma plataforma eleitoral ou pré – eleitoral.

 

O primeiro passo seria definir o formato e acordar nos objectivos a alcançar. E para isso defendo ser necessário que se privilegie a fórmula “quem não é contra nós é por nós”, ao invés da fórmula “quem não é por nós é contra nós.” Ou seja: as forças democráticas não são adversárias umas das outras. O adversário da Nação angolana é um só, o Partido/estado. E Angola só tem um Partido/Estado. Foi ele quem definiu, pela sua conduta governativa, o povo angolano como seu adversário. É ele que subverte a democracia e o estado de direito. Mais ninguém governa. Por isso só há uma grande contradição e não duas.

 

Haverá certamente contradições ou diferenças menores reflectidas na pluralidade política nacional. Mas o momento é para se mobilizar a Nação para participar e agir no quadro da contradição maior. É o voto conveniente para 2012.

 

O segundo passo seria a definição de medidas de participação política que garantam que as eleições de 2012 sejam realmente livres, transparentes, democráticas, credíveis e controladas pelos eleitores. E é neste quadro que a sociedade deverá desenvolver acções pró-activas para reivindicar a criação de condições democráticas para a realização de eleições democráticas.

 

De momento, defendo que não há no país um ambiente de liberdade, justiça e igualdade, que permita a realização de eleições livres, justas e competitivas. Não pode nunca ser qualificada de democrática uma eleição onde participa um Partido/Estado. A eleição só será competitiva se for democrática, e só é democrática se for feita entre competidores iguais. “O princípio da igualdade constitui um dos elementos estruturantes do constitucionalismo”. Por isso, desde os primórdios do constitucionalismo moderno, está-lhe reservado um lugar saliente. Da mesma forma, em França, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, fonte das Constituições liberais, continha, logo no seu artigo 1º, a célebre fórmula “les hommes naissent et demeurent libres et égaux en droits.”

 

A Constituição angolana não se limita a declarar o princípio da igualdade (Art. 23º da CRA). Aplica-o, desde logo, a zonas mais sensíveis na perspectiva da ideia do direito, em particular na competição política entre a colectividade política para o exercício do poder político.

 

Hoje, a campanha eleitoral é permanente e os actos conducentes à formação e expressão da vontade popular realizam-se a todo o tempo (Artº 17º da CRA) Por isso, no que diz respeito às eleições, são corolários imediatos do princípio da igualdade, a não privação efectiva de direitos por motivos políticos (Artº 23º nº 2 da CRA); a igualdade entre as pessoas e entre os partidos (Artº 23º nº 1/ 17º nº 4 da CRA); a igualdade no acesso à imprensa e no tratamento dado pela imprensa (Artº 17º nº4/ Artº 41º da CRA); o acesso livre aos eleitores; a não discriminação no exercício do direito de reunião e de manifestação (Art. 21º h) da CRA); o acesso igual aos recursos públicos para fins político-partidários; e a não utilização dos cargos públicos nem dos recursos públicos para fins partidários. É a observância desses parâmetros nos períodos intercalares às eleições, que garante, junto com o voto igual no momento eleitoral, o sufrágio igual.
 

 

Ora, enquanto existir e participar nas eleições um Partido que se confunde com o Estado e que utiliza os órgãos do Estado, seus agentes e seus recursos, para intimidar os cidadãos, as eleições não serão democráticas.

 

Enquanto existir e participar nas eleições um Partido, que adopta para si e utiliza símbolos que se confundem com os símbolos de todos nós, nenhuma eleição será democrática.

 

Enquanto participar como concorrente às eleições um Partido que manipula a informação pública e usa, controla e abusa da imprensa do Estado, dispondo de mais de dez horas por dia de tempo de antena, estas eleições não podem ser democráticas.

 

Enquanto existir e participar como concorrente às eleições um Partido que utiliza a Polícia, os Administradores, governadores e sobas para promover a intolerância e a violência, não se poderá falar em eleições democráticas.
 


Conclusão

 

Tudo dito, a síntese da minha mensagem é: “o momento exige a intervenção do soberano para a restauração da república e a reformulação do Estado”.

 

Esta é uma exigência imposta pelos princípios consagrados nos artigos segundo e terceiro da Constituição. Vamos, por isso, reforçar o grau de participação individual no exercício da soberania; vamos definir por consenso nacional o programa de reconciliação nacional; vamos declarar anti-republicana e antidemocrática qualquer candidatura do actual Presidente da República a um cargo electivo do Estado; vamos estabelecer por consenso nacional o novo sistema de governo para Angola e vamos, desde já, estabelecer uma frente comum para terminar, por via eleitoral, o mandato do Partido/Estado na governação de Angola.

 


Hoje, importa, acima de tudo, preparar plenamente o cidadão para viver uma vida individual na sociedade e ser educado no espírito dos ideais de: paz, liberdade, dignidade, igualdade, tolerância, justiça, fraternidade, solidariedade e democracia, como garantes da defesa e respeito pelos direitos fundamentais rumo à construção de uma Nação democrática e sem os perigos da corrupção quer seja económica, social ou política.

 

Esta é a mensagem que dirijo à esta Conferência sobre «Transparência, Corrupção, Boa Governação e cidadania em Angola».

 

Esta é a mensagem que dirijo à esta Conferência sobre «Transparência, Corrupção, Boa Governação e cidadania em Angola».

 

Muito Obrigada!

Bibliografia
CANOTILHO, J.J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., Almedina, 2003.
CANOTILHO, J.J. Gomes/MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, 2006.
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LOMBA, Pedro, Teoria da Responsabilidade Política, Coimbra Editora, 2008.
MIRANDA, Jorge/MEDEIROS, Rui, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I, 2ª ed., Coimbra Editora, 2010.
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WEBBA, Mihaela, Os Poderes do Presidente da República no Sistema Jurídico-constitucional e Político Angolano, Dissertação de Mestrado, FDUC, Coimbra, 2009.

WEBBA, Mihaela N./HILÁRIO, Esteves, «A Constituição da República de Angola – Direitos Fundamentais, a sua promoção e protecção. Avanços e Retrocessos», relatório de direitos fundamentais, Edição Open Society, Luanda, Novembro, 2010.