Rio de Janeiro - A pauta dos jornais do derradeiro fim de semana trouxe como destaque as declarações proferidas pelo General Abílio Kamalata Numa que é por sinal Secretário Geral da UNITA. As declarações, consideradas inflamadas pelos observadores referiam-se a uma reivindicação da UNITA em relação a uma Comissão Nacional Eleitoral Independente tal como estipula o art. 107º da Constituição de 2010, prometendo o General em suas declarações, trazer a população às ruas caso o MPLA persisitisse em violar a Lei e recordando na oportunidade os acontecimentos daquilo que já é designado por “primavera árabe”.

 

Fonte: Club-k.net

Quem tem que mudar?

Foi sem dúvida esta última referência que terá chocado certas consciências cujas reacções os jornais trataram de dar eco. Na verdade a reacção de Numa, tida por exacerbada por alguns, advinha do facto de que, na opinião da UNITA, com a proposta de Lei Eleitoral introduzida pelo MPLA para discussão no parlamento procurava-se justamente violar o preceituado pela Constituição e, com a maioria que o MPLA detém na Assembleia Nacional facilmente faria passar uma tal lei mesmo que anti-constitucional. De resto, quem foi capaz de passar como um tractor sobre as cláusulas pétreas para aprovar a constituição atípica mais facilmente puderá costurar a lei eleitoral que lhe convier mesmo que isso vá contra a Constituição. E gato escaldado...

 

Dentre os observadores que mais se opuseram às declarações do General Numa destaca-se o escritor, jornalista e deputado João Melo que fez questão de assinalar que deixou de abordar o caso da exoneração do Governador de Luanda com o qual pretendia discutir a questão da corrupção porque não podia ficar indiferente às declarações do General.

 

Ao ler a parte introdutória do artigo de João Melo alimentei a esperança de ver discutida a questão concreta levantada pela UNITA, contida no já supra-citado art. 107º da Constituição de Angola, mas, em vez disso, o que se me apresentou foram os lugares comuns de depreciação da UNITA que fazem parte da escatologia propagandística do MPLA anunciando como irremediável o fim da UNITA caso ela não mudasse. Não sei porque razão os profetas que anunciam o fim da UNITA, que o fizeram em 1976, fizeram-no em 92, fizeram-no em 2002 e em 2008 ainda não se convenceram do fiabilismo de seus vaticínios, mas isso é outra conversa.

 


Na minha opinião, salvo raras excepções (como seja o artigo do Dr. Justino Pinto de Andrade publicado na Edição 429 do Semanário Angolense), o que os pronunciamentos em relação às declarações do General conseguiram, ou pelo menos pretenderam, foi tão somente desviar o foco da discussão sobre um assunto concreto, pertinente e legítimo levantado pela UNITA e não só (veio a público uma declaração dos partidos de oposição extra-parlamentar que alinhava no mesmo diapasão da reivindicação da UNITA).  Ou alguém pode questionar a legitimidade de uma força concorrente em exigir eleições transparentes? As declarações do General Numa não foram a única via de que a UNITA se serviu para trazer a público a sua reivindicação. O Grupo Parlamentar da UNITA fez um pronunciamento onde argumentava da forma mais clara possível as suas preocupações e, antes disso já o presidente da UNITA Isaías Samakuva expôs de forma os termos concretos dos anseios, receios e aspirações da UNITA em relação ao pacote legislativo eleitoral. A possibilidade do MPLA aprovar uma Lei Eleitoral que satisfaça seus interesses ignorando quaisquer outras perspectivas é real e, por isso, faz todo sentido que a UNITA se sirva dos mecanismos legais de pressão de que dispõe. Era, portanto, importante rebater estes argumentos e era o que eu esperava de João Melo.

 

 Do mesmo modo o líder parlamentar do MPLA Virgílio Fontes Pereira caiu em evasivas preferindo dirigir acusações superficiais à UNITA em vez de contrapôr com argumentos sustentáveis as posições assumidas pela UNITA. Se eu estiver equivocado, e posso estar, quero que me digam qual o entendimento do MPLA sobre essa matéria. É o atrelamento da CNE à CIPE? A UNITA trouxe a público a sua interpretação de independência da CNE e não ouvimos do MPLA nada que sustentasse a sua posição. Entendo, portanto, que se perdeu uma oportunidade soberana de se trazer alguma luz sobre um assunto de maior importância, e os jornais, de modo geral, não foram capazes de jogar o seu papel mediador devolvendo o foco da discussão sobre um assunto que me parece bem concreto, mas ainda assim, fundamental para os próximos desenvolvimentos do processo democrático angolano.

 


A questão, a meu ver, pode ter uma raíz muito mais profunda e prende-se com o entendimento (conceito se quisermos) que as forças políticas em confronto têm de lei em função de seus traços ideológicos. Nos sistemas democráticos, assim entendo, a lei deve ser vista não apenas no ângulo nomos grego, isto é, preceito ditado que cumpre obedecer, mas também no ângulo lex romano que significa “ligação duradoura” contrato ou aliança. Nesta perspectiva, como diz Hannah Arendt, “uma lei é algo que liga os homens entre si e se realiza não através de um acto de força ou de um ditado, mas sim através de um arranjo ou de um acordo mútuo”. O fazer a lei assim implica adoptar uma “maneira de pensar ampliada” kantiana, que permite uma compreensão que “num estado de coisas político não significa outra coisa que ganhar e ter presente a maior visão geral das possíveis posições e pontos de vista”(Hannah Arendt). Isto quer dizer que não se pode augurar fazer uma lei afunilando e estreitando pontos de vista, mas antes, procurando colocar-se de modo a ter uma visão mais ampla possível dos diferentes pontos de vista e, no debate de ideias aproximar posições. Por outro lado, a visão marcadamente marxista que em grande medida conforma o MPLA, limita a abordagem política à perspectiva dialéctica entre dominador e dominados. Num contexto assim configurado a lei é vista apenas como instrumento para o exercício do poder sendo que este emana essencialmente da força que o dominador detém. Assim, o recurso ao voto não é visto como legitimador do poder mas, essencialmente como o caucionar do uso da força para o exercício do poder.

 

Uma perspectiva diferente é aquela que reconhece na pluralidade dos homens a razão da política sendo que aqui o poder reside efectivamente no povo que por meio do voto elege seus representantes e a relação política que se estabelece é entre representantes e representados. Num sistema assim idealizado não é o uso da força que confere o poder, mas é o voto que confere poder aos representantes para o uso da força. Aqui a lei só pode significar esta aliança, este contrato que liga representantes e representados e deve ser construída neste exercício de busca paciente, racional, enfim kantianamente compreensivo.


Assim colocadas as coisas quem tem efectivamente que mudar?

 


A questão é aqui colocada justamente porque o deputado João Melo teria afirmado, no artigo a que faço alusão, que ou a UNITA muda a sua maneira de ser e agir ou então se arriscaria a perder o estatuto de maior partido da oposição e passar à história como insignificante. No fundo o que o deputado pretendia dizer é que a UNITA não tem que reclamar nada, deve assistir calada a todas as tramas e nada mais. UNITA boa é UNITA dócil que aceita de bom grado tudo o que o MPLA oferece  e foi ao extremo ao concluir que a UNITA era no fundo a responsável pelo atraso do processo democrático e até pela corrupção endêmica que caracteriza o país. Não poderia haver conclusão mais absurda! Só faltava essa, responsabilizar a UNITA pela corrupção!!

 

Curiosamente, o ex-Primeiro Ministro Marcolino Moco em seu site www.marcolinomoco.com  traz-nos uma reflexão sobre aquilo que considera “o problema fundamental de Angola” com a qual aliás procura explicar a recente exoneração do José Maria Ferraz dos Santos, e afirma taxativamente “o nosso problema fundamental, atingindo uma dimensão de anormalidade, é a anacrónica sacralização do poder, especialmente o poder do Presidente da República”. Para ele Angola é hoje um dos raros exemplos no mundo em que “o poder presidencial tanto se aproxima de uma teocracia humana”.

 


As consequências deste endeusamento são evidentes. Em nome deste deus quantas arbitrariedades não são cometidas? O exemplo mais recente é a detenção do activista cívico e político David Mendes em Kitexe, no Uíge, sob a alegação de que distribuindo panfletos estaria a ofender o bom nome de Sua Excelência (ou será Sua Santidade?). Na verdade o endeusamento, ou sacralização, para parafrasear Marcolino Moco, representa um distanciamento entre dirigente e dirigidos pois não pode haver uma relação entre iguais entre um deus criador e criaturas. Deus é omnipotente, pode tudo, até oferecer grandes conglomerados empresariais aos anjos escolhidos mesmo que à custa, é claro, do erário público. Deus é a lei e as criaturas mortais só têm que temer e obedecer. Não pode, portanto, se estabelecer uma relação entre iguais, entre deuses-homens e criaturas-homens. Esta relação desigual não pode configurar de maneira nenhuma uma democracia e as designações mais próximas que o léxico político consagrou para esse tipo de relação entre governates e governados, são autoritarismo, totalitarismo, tirania, etc. Por isso, convenhamos, sacralização do poder é obstrução à democracia, simples assim!

 


A UNITA, por mais que isso atormente algumas consciências, não é de forma alguma um bando de homens embrutecidos em busca de poder a qualquer preço. A UNITA é um projecto que perdura há 46 anos que percorreu vales e montanhas, conheceu avanços e recuos, ganhos e perdas, erros e acertos, mas foi imparável. Este projecto atrai parte significativa da sensibilidade angolana porque a sua essência, expressa na clareza dos seus símbolos, sua marca registada (o galo negro e o raiar do sol) é DESPERTAR os oprimidos, os menos equipados, os socialmente desprovidos para a liberdade, a cidadania e justiça social “na terra de seu nascimento” que são aliás direitos elementares. A UNITA não é portanto, obra do acaso, esteve presente sempre presente nos momentos cruciais da história recente de Angola, na luta pela independência, na oposição ao GULAG “á l’angolaise” e na emergência da democracia multipartidária. No contexto político actual, quer se queira ou não, quer se goste ou não, nenhum avanço democrático se fará se a divisa for o apagamento da UNITA do cenário político angolano. De resto, democraccia só é efectiva se a aceitação das diferenças e a tolerância constituirem seu fundo de tela. Democracia e exclusão são absolutamente incompatíveis!

 

A  UNITA precisará, por certo, fazer permanentemente ajustes em sua pragmática política de modo a se situar adequadamente em cada circunstância política que se configurar, o que é, aliás, imperativo à sua sobrevivência política, mas, se concordarmos com Marcolino Moco, que “o problema fundamental de Angola é a sacralização do poder do Presidente”, então ”dessacralizar este sistema é o caminho” como conclui este polítco na já referida reflexão. Isto pressupõe que a mudança fundamental que permitirá um salto qualitativo na democracia angolana, deve vir não da UNITA, mas sim, daqueles que sacralizam o sistema, isto é o MPLA. Portanto, é o MPLA que deve experimentar uma transformação profunda para assim remover um dos grandes obstáculos à democratização efectiva de Angola.

 

Em todo o caso acho que o fundamental agora é assegurar um processo eleitoral cristalino, transparente e isento. A nossa curta história eleitoral está marcada por episódios traumáticos que não interessa repetir. Faz, portanto,  todo sentido a reivindicação por um processo eleitoral que paute acima de tudo pela verdade e que seja por todos considerado incontestável. Não é nenhum pecado querer um processo eleitoral que seja uma verdadeira celebração à democracia e não um pomo de discórdia.

 

Maurílio Luiele
Rio de Janeiro, 16 de Agosto 2011

Referências:
ARENDT, Hannah; O que é política; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011
MOCO, Marcolino; O problema fundamental de Angola; disponível em www.marcolinomoco.com ; acessado em 16/08/2011