Luanda - Passou uma década e meia desde que foi publicada pelo «Angolense» a conhecida matéria jornalística que escancarou, pela primeira vez, os nomes dos detentores de fortunas em Angola. Nesse meio-tempo a riqueza sofreu um processo sociológico de desmistificação: sem tabu, os milionários “embarrados” de outrora transformaram-se em bilionários. Mas o paradoxo desta abundância está reflectido no fraco desenvolvimento socioeconómico do país e na mentalidade sovina dos novos-ricos, tremendamente insensíveis à situação de legiões inteiras de desvalidos, pobres e miseráveis que campeiam em Angola.

Fonte: Correioangolense
O que acontece quando, num país de falsa liberdade democrática, um governante se acha injuriado e caluniado por um jornal? A resposta não tem ciência alguma. O mais comum é vermos o governante supostamente difamado, deixar-se embriagar pelo poder e pela ira, e recorrer à arma que melhor conhece na relação com os jornalistas: punir com a prisão.
 
Foi o que há 15 anos passou pela cabeça do general Kundi Payhama, na altura ministro da Defesa, quando, a 11 de Janeiro de 2003, saiu a matéria A RIQUEZA MUDOU DE COR: OS NOSSOS MILIONÁRIOS, publicada pelo «Angolense», jornal precursor do que menos de dois meses depois seria o «Semanário Angolense».

A edição havia saído à rua num sábado. E já na 2ª feira a seguir, em plena ressaca do polémico artigo jornalístico, o ministro da Defesa investia sem hesitações contra a publicação. Furibundo, deixou o seu gabinete, na zona da Cidade Alta, com os seus batedores de trânsito de sirenes ligadas e um punhado de soldados da sua guarnição. Abriu caminho pelas ruas congestionadas da baixa de Luanda até parar ao Bairro do Cruzeiro, onde se localizava então a sede do «Angolense».
 
Todos os que se encontravam na redacção do jornal àquela hora começaram por sentir uma estranha impressão no estômago quando ouviram as sirenes e o ribombar das motos dos batedores deterem-se mesmo à porta da publicação. Imediatamente foram tomados de suores frios ao verem um imperial e marcial ministro da Defesa apear-se da viatura protocolar, com vários soldados de armas em punho à sua volta, e, com cara de poucos amigos, dirigir-se exactamente às instalações do jornal onde perguntou se Graça Campos estava.
 
A reunião entre o ministro da Defesa e Graça Campos, na altura editor-chefe da publicação, decorreu à porta-fechada e não levou muitos minutos. Kundi Payhama manifestou o seu profundo desagrado e avisou logo aí que se reservava o direito de mover um processo judicial contra o jornal. E foi o que sucedeu.
 
O nome do general Kundi Payhama, figura emblemática do regime e até então tida como uma das suas referências morais no que à acumulação de riqueza diz respeito, constava de uma lista de 59 personalidades referidas na matéria em causa como sendo detentoras de fortunas avaliadas, cada uma, em não menos de US$ 50 milhões. Aí estavam, finalmente, os milionários de Angola, para conhecimento dos demais cidadãos.

Na verdade, a publicação dessa lista não resultara de qualquer exercício de adivinhação, prestidigitação ou de tiro ao alvo. Hoje já se pode revelar que nessa «operação» entraram fontes que estão no «insight» do próprio regime, com conhecimentos bastante consistentes da forma como se estava a processar a chamada acumulação primitiva de capital em Angola.
 
Esse exercício foi facilitado igualmente pelos dados que a própria realidade do país tratara de produzir, baseada em abundantes e crescentes sinais exteriores de riqueza que se vinham manifestando e que só mesmo diante de miopia e hipocrisia se poderiam ocultar. Sabe-se, por exemplo, de um episódio ocorrido naquela época, em que um membro do Governo, com a maior desfaçatez e sem o menor problema de consciência, juntou os amigos mais íntimos numa «festança» e com eles comemorou o facto de a sua conta bancária ter entrado na casa dos US$ 100 milhões.
 
Na realidade, quando a matéria saiu, dados perfeitamente verificados e expostos aos olhos do universo político e económico do país já indiciavam a existência de grandes fortunas que foram sendo acumuladas ainda com Angola a viver um insano conflito armado. Bastava, para tanto, dar-se uma espreitadela às inúmeras denúncias que ciclicamente eram veiculadas pela imprensa doméstica e internacional. E o que o «Angolense» também fez na altura foi socorrer-se e fazer um «apanhado» de todos os dados que estavam dispersos por várias publicações estrangeiras e nacionais.
 
Coligidos estes dados, e com as fontes do jornal a confirmarem com uma margem de erro relativamente pequena, foi possível então chegar à conclusão de que havia já nessa época pelo menos 20 personalidades detentoras de fortunas contabilizadas em mais de 100 milhões de dólares norte-americanos por cabeça, repartidos entre activos financeiros e patrimoniais. Esta era a «Super-Liga», pois a maioria dos milionários figurava numa «segunda divisão» em que as riquezas acumuladas estavam estimadas em menos de US$ 100 milhões, mas não inferiores a US$ 50 milhões.
 
Processos em catadupa

Depois de se ter reunido com Graça Campos, o ministro da Defesa – indicado na lista do «Angolense como tendo uma fortuna avaliada em não menos de US$ 50 milhões – tratou de cumprir a ameaça de que moveria um processo judicial por injúria e difamação. E não é que moveu mesmo? Isto depois de o governante se ter desmanchado em declarações públicas negando ser detentor de riqueza. Chegou mesmo às raias de afirmar que além do seu salário como ministro da Defesa apenas possuía uma pequena casa na Huíla que herdara de sua mãe.   
 
Kundi Payhama foi apenas o primeiro a trazer a DNIC à liça. A ele seguiram-se outros membros da «nomenclatura», nomeadamente Dino Matross, na altura vice-presidente da Assembleia Nacional, e Mário António, membro do BP do MPLA e administrador da GEFI, holding de negócios desse partido. Alinharam também na purga a Graça Campos, que já então fundara o “Semanário Angolense”, os processos intentados por Mário Palhares, PCA do Banco Africano de Investimentos, e Faustino Muteka, ministro da Administração do Território.
 
Todos estes processos judiciais, que na realidade mais não visavam que condicionar psicologicamente os jornalistas de um modo geral, inibindo-os de denunciar os desvarios dos novos-ricos em ascensão no país, acabaram por fracassar em tribunal. Graça Campos foi absolvido em todos eles. Mas a nascente classe de endinheirados do país é que, pelos vistos, passou a assanhar-se ainda mais na exibição das fortunas, com manifestações escandalosas de fausto e opulência.
 
Alguns meses depois de ter jurado que apenas tinha como propriedade a casinha que sua progenitora lhe deixara, o mesmo Kundi Payhama já se mostrava, tranquila e olimpicamente, em condições de abrir um banco. Foi travado do alto por José Eduardo dos Santos, que lhe lembrou a irracionalidade em que incorreria caso abrisse um negócio próprio para milionários. Mas estes negócios e outros, como jogos de fortuna e azar, acabaram por vir à superfície, mais tarde, quando a poeira levantada pelo «Caso Milionários» havia assentado e os angolanos de um modo geral compreenderam, tacitamente, que a riqueza em si mesma não constituía drama algum. O problema está na desigual distribuição da riqueza nacional.
 
Sem tabu nem sensibilidade
 
Tanto que a riqueza não só mudou de cor e pigmentação, acedendo a ela um maior número de angolanos pertencentes a classes e grupos sociais que anteriormente nada tinham – os negros! – como também se multiplicou. Na verdade, o mesmo Kundi Payhama de que se falou acima é apenas um exemplo, tímido e pálido, dessa mobilidade social da riqueza em Angola e da sua exponencial multiplicação. Longe de nós passar a ideia de que o “ancião” seria o maior tubarão, ele é chamado à liça apenas pelo papel grotesco que desempenhou entre os que tentaram “linchar” os jornalistas que produziram a matéria. 
 
Nestes anos todos, a falta de pudor na exibição da riqueza aumentou em proporção directa com as desigualdades entre os poucos que vivem, que nem nababos, no fausto e na opulência, e a multidão dos que quase nada têm. Este é realmente o drama de que enferma o país e não a riqueza em si mesma. Constata-se, por exemplo, que a causa da formação de uma classe possidente no país, supostamente para impulsionar o seu desenvolvimento e deficientemente ancorada no conceito de “acumulação primitiva de capital”, ganhou um cunho iníquo e pérfido, caminhando em contramão com a necessidade de se acautelar as questões de justiça social e económica.
 
As políticas de combate à pobreza soçobraram diante da diante da ganância de uma elite que acabaria por se revelar de extracção malsã. Seleccionada já não por critérios de epiderme, mas de família, a classe de endinheirados angolanos atirou a maioria dos seu concidadãos numa condição económica débil e de subsistência.     
 
Por conseguinte, decorridos 15 anos após a publicação da matéria jornalística “OS NOSSOS MILIONÁRIOS”, conclui-se que o que se fez na época em causa foi uma tremenda tempestade num copo de água. Os que pretendiam encarcerar e imolar os jornalistas, por simples “delito de opinião”, já não têm hoje qualquer escapatória. É o próprio regime que os sustenta quem acaba de dar a mão à palmatória ao trazer à agenda dos principais problemas nacionais exactamente a questão que lhe é correlata: os colossais capitais que foram desviados do erário nacional e colocados no estrangeiro, a respeito dos quais o novo Presidente da República conclamou a necessidade de repatriamento imediato para que sirvam o desenvolvimento do país. 
 
Na verdade, nessa demanda presidencial está subjacente a ideia de perdão para o crime de natureza económica com que a maioria destas riquezas foram forjadas. Por conveniência política até se pode fechar os olhos a essa realidade, mas não há hoje como não concluir que só há uma explicação para tamanha riqueza sem causa: corrupção, pilhagem e gestão ruinosa dos recursos do Estado.