Luanda - Antes de tudo, começa-se por definir a palavra Modernismo antes de confrontar o Cristianismo ou melhor a Fé cristã com a cultura bantu.
Fonte: Angolense
Modernismo é a tendência para pôr a exegese (interpretação gramatical e histórica dos textos e particularmente da Bíblia) cristã de acordo com os dados da crítica histórica e da filosofia modernas, diz o dicionário prático ilustrado, Novo dicionário enciclopédico Luso-brasileiro, publicado sob a direcção de Jaime de Séguier, Lello e Irmão, Porto 1988,
Segundo o referido dicionário, a fé é a crença nas verdades da religião, a cultura é um adiantamento, uma civilização e a geração, são os indivíduos de uma época.
O professor de Sociologia da Universidade de Exeter, G. Duncan Mitchel, no seu livro Novo dicionário de sociologia, indica que, a cultura, numa sua definição lata, refere-se àquela parte do repertório total da acção humana (e seus produtos), que é social, oposta ao que é geneticamente transmitido.
Dai, o conflito de gerações entre a fé e a cultura pode ser entendido como o choque entre a aculturação e a tradição.
Aculturação é o processo pelo qual um individuo ou um grupo adquire as características culturais de um outro através de um contacto directo e da interacção – segundo ainda a definição de G. Duncan Mitchel, que precisa que a aculturação pode dar lugar a um conflito de culturas e a uma adaptação que conduz à modificação da identidade do grupo.
Dai, a fé crista é um produto do colonialismo europeu. No caso concreto de Angola, são os colonialistas portugueses que trouxeram o cristianismo. São eles que introduziram os nomes de Deus, Jesus, Santa Maria, Anjos e Santos no léxico religioso bantu.
O cristianismo defende a Trindade, que há três pessoas em Deus: Deus pai, Deus filho que é Jesus Cristo e Deus Espírito Santo.
Antes da chegada do colonialismo, os antepassados bantu acreditavam num Ser superior, omnipotente e omnipresente que eles chamavam por Nzambi a Mpungu.
Eles (antepassados bantu) sabiam ainda da existência de um outro ser poderoso e adversário de Nzambi, que é o Nkadiampemba (Diabo) e que Nzambi vive no Zulu (Céu) e Nkadiampemba no Bilungi (Inferno).
Os povos bantu sabiam distinguir o Mbote (bem) do Mbi (mal) e que quem procede mal comete o Sumu (pecado) e diziam “Vola e sumu” (cometer o pecado).
E acreditavam que depois da morte, uma pessoa benfeitora vai ao Zulu e a malfeitora ao Bilungi. Aquela que comete pouco Masumu (plural de sumu, pecados) passa pelo Kombelo (purgatório) antes de ir ao Zulu.
“Todo o homem que se interrogue profundamente sobre o mistério de si próprio (origem, dignidade, missão, destino) e o mistério do mundo que o rodeia, encontra ou vislumbra pegadas, vestígios ou sinais de «Alguém» que está no principio, no meio e no fim de tudo isso, como seu fundamento e sentido ultimo. A esse «Alguém», que tem de ser grande e maravilhoso, podemos dar nomes diferentes: Criador, origem, causa, Deus…” – diz Américo Veiga, no seu livro A Educação hoje, 5ª edição, “A realização integral e feliz da pessoa humana”.
“A fé crista é a fé em Deus revelado em Cristo e por Cristo” – acrescenta, precisando que Religião e fé são diferentes, ainda que complementares. Na primeira, é o homem que, partindo do mistério de si e do mundo, chega a Deus e na segunda, é Deus que se apresenta ao homem, propondo-se a Si próprio e, com Ele, o Seu projecto ou mensagem de salvação.
Também Religião e fé são duas realidades relacionadas entre si, mas diferentes. Religião é uma coisa; fé, outra. Pode existir religião sem fé; não pode, contudo, existir fé sem religião ou manifestações religiosas da fé – sublinha.
Depois da conferência de Berlim de 1885 organizado por Oto Von Bismark durante a qual as potências daquela época dividiram-se do continente africano, para assentarem as suas autoridades, os colonialistas começaram por combater as culturas bantu, alegando que os povos negro-africanos ou melhor os bantu adoravam feitiços e ídolos.
O Padre Raul Ruiz de Asuá Altuna, no seu livro Cultura tradicional bantu, cita Filipo Pigafeta e Duarte Lopes como tendo afirmado na sua Descrição do Reino do Congo, publicada em 1591, o seguinte: “E vimos inúmeros objectos, pois cada qual adorava o que mais gostava, sem regra nem medida, nem razão de qualquer espécie… Escolhiam, como deuses, cobras, animais, pássaros, plantas, árvores, diversas figuras de madeira e pedra, e imagens que representavam estes seres já enumerados, pintados ou esculpidos em madeira, pedra ou outro material…”
“Os ritos eram variados, mas todos cheios de humildade, como por exemplo, ajoelhar-se, prostrar-se de rosto em terra, cobrir a face com pó suplicando ao ídolo e fazendo-lhe oferenda dos bens mais estimados” – afirmam, acrescentando que “Também tinham bruxos que os enganavam fazendo crer a esses ignorantes que os ídolos falavam.”
O autor não duvida que a religião tradicional contem elementos mais notórios, do que se chamou Feiticismo, Animismo, Naturismo, Ancestralismo, Manismo, Animantismo e Totemismo.
O Dicionário acima citado define o Feitiço como objecto material adorado pelos selvagens e Selvagem é a pessoa que não é civilizada, que vive nas selvas.
Os colonizadores europeus comparam os negros ou melhor os bantu com animais selvagens que vivem nas florestas, nos bosques, nas savanas.
Como se antes da chegada dos colonos ou melhor do cristianismo em África, os negros ou os bantu, depois da morte, iam todos ao inferno. Se na verdade Deus existe, o Céu e o Inferno existem, como feiticeiros, selvagens e pagãos, nenhum negro ia ao Céu.
Nada disto corresponde a verdade. O facto de os povos bantu possuírem estatuetas (Teke, em língua Kikongo) e criarem animais não quer dizer que os adoravam como Deus. E nem todos os teke eram feitiços.
O feiticeiro é quem usa o teke para o seu trabalho.
Os bantu nunca consideraram o feiticismo e a bruxaria como religião nem tão pouco os confundiam com o respeito a Nzambi (Deus). “Vumina e Nzambi aku” (Respeita o teu Deus), recomenda a tradição bantu.
De igual modo, os mindele (plural de mundele) - brancos, europeus – não comparam a magia branca e os monumentos com a fé em Deus. Nem os adoram.
Os bantu consideraram sempre o feitiço como maléfico. E não se deve confundir feitiço (Nkisi) com a bruxaria (Kindoki), que diferem um do outro. O feitiço é visível e adquire-se, enquanto que a bruxaria é invisível e transmissível.
Se o feitiço tem fins maléficos, a bruxaria – antes que perversão do seu objecto social - servia para a protecção individual e do clã. O feitiço adquire-se, como ir a um hospital para se tratar. Pois o feiticeiro é visível e tem um laboratório onde atende os clientes.
A bruxaria é invisível, um espírito e voa a noite como cometa com destino preciso. É um poder que se transmite de uma maneira mística apenas entre membros de um mesmo clã. A bruxaria é transmitida só a um bebé, a um feto ou a uma criança e nunca a um adulto. Se for transmito a um adulto, este enlouquece ou fica demente.
O Nsadisi ou Nganga m´wuki, curandeiro, trata com poderes de Nzambi a Mpungu e dos ancestrais. Um curandeiro que recorre ao feitiço comete um desvio à tradição bantu e perde poder de curar os doentes. Tumbuka, diz-se em língua kikongo.
O Ngang´a ngombo, vidente, serve para detectar o bruxo e quem adquiriu feitiço, a pedido dos membros das vitimas. Este também age com poderes divinos e dos ancestrais bantu.
Os bantu nunca adoraram um humano nem símbolo material. O Nzambi em que acredita existir, é invisível. Não é uma pessoa, um objecto, animal ou planta.
Pelo contrário, é o cristianismo que adora estátuas e imagens. Em todas as igrejas cristãs, católica, protestantes e seitas religiosas encontram-se Estátuas e imagens que representam Deus, Jesus Cristo, Santa Maria, Anjos, Santos, profetas, etc.
De igual modo, o islamismo e budismo adoram estátuas de Maomé e Buda.
Por outro lado, as igrejas e seitas que surgem com o atributo bantu ou negro, como Bundu dia Kongo (Igreja do Kongo) de Muand´a Nsemi, Bundu dia Ndombe (Igreja dos negros), Igrejas de Simão Toko (Tokoismo) e de Simão Kimbangu (Kimbanguismo) não devem ser consideradas como representando a Religião tradicional bantu.
Estas igrejas e seitas adoram as imagens ou estátuas dos seus fundadores, confundindo-os com Deus e Jesus Cristo.
O Kimbanguismo tem um outro calendário litúrgico e comemora a festa do Natal na data do Nascimento de Simão Kimbangu.
Nada disto acontecia com os povos bantu. Estes (negros) nem tinham estruturas e locais de culto, rezavam em casa e em qualquer lugar.
As igrejas cristãs baptizam os fiéis. O baptismo não fazem parte da cultura bantu e os povos bantu o desconheciam completamente. No baptismo cristão, os nomes bantu são recusados e considerados selvagens e satânicos. Contra a vontade dos progenitores, baptizavam-se os filhos com nomes estranhos de Santos brancos.
Segundo o cristianismo, Deus é branco, Jesus Cristo é branco, Maria é branca, os Anjos são brancos e os Santos são brancos. O Diabo é negro com dentes salientes e longos, cifras na cabeça, olhos e boca vermelhos.
Tudo que é ruim é negro ou preto. Preto ou negro é a cor da maldade.
O cristianismo veio perverter tudo. Os negros que se converteram no cristianismo rejeitaram as suas tradições, os seus nomes, as suas línguas e os seus usos e costumes. Alienaram-se aos novos valores cristãos.
Um padre de origem kikongo separou-se da mãe quando ainda era estudante no seminário. O filho ficou em Angola, a mãe que se encontrava na Província quando começou a guerra pela independência refugiou-se para a República do Zaire. Quando regressou à Angola, a mais já era velha e chorava para rever o filho. Uma vez mandou madioko, bala (bombom), zinguba e outros produtos agrícolas ao filho-padre. O filho (padre) não foi buscar a encomenda nem ouvir o recado que a mãe mandou. Também ele não foi visitar a mãe. A mãe morreu com saudades do filho que não conseguiu rever.
O padre também morreu há bem pouco tempo. Revoltado com esta atitude, a comunidade não chorou o padre, não organizou óbito para ele como manda o costume kikongo. Curiosamente, mesmo a igreja dele (Católica) local não organizou uma missa em memória do falecido padre.
As novas gerações bantu são cristãs e modernistas, enquanto que as antigas são conservadoras e fundamentalistas. Uma cultura ou uma tradição não se moderniza nem se emenda. “Muenda ntumbu, muenda luvusu, onsuiku a nlele keusingama” (Para coser, a linha deve seguir a agulha) – diz uma sabedoria kikongo.
Em 1975, havia seca na região de Kinsimba, município do Tomboko, em Angola. Os habitantes da área regressaram na sua totalidade da República do Zaire, hoje República Democrática do Congo (RDC) onde se encontravam como refugiados da guerra pela independência de Angola.
Encontraram muitas lavras de mandioca cultivadas pela população do Piri (dos Dembos) - que o governo português transferiu para àquela zona onde construiu uma chamada “Sanzala da Paz”. Depois da Independência em 1975, este povo dos Dembos tinha regressado já a sua região de origem.
Mesmo as populações das áreas vizinhas de Nkiende a Nzau Evua, Comuna de Mbanza Kongo, - regressadas da República do Zaire - abasteciam-se de mandioca em Kinsimba.
A mandioca acabou. O povo não tinha outro acompanhante e começou a comer carne com coconote (nkandi). Havia muita carne de caça. Recorde-se que o funge de bombom (mandioca) é o alimento de base dos bakongo.
Numa oração tradicional em que assistiram todos os habitantes da comuna, os chefes clânicos pediram chuvas a Nzambi a Mpungu. A noite do mesmo dia, começou a chover e com abundância. Dias depois, os velhos pediram mais a Nzambi a Mpungu para que parasse as chuvas. E deixou-se de chover.
Como se pode notar, os antepassados bantu tinham muito poder. E Nzambi ouvia as suas orações.
Quantos aos ritos, as mulheres bantu ajoelham-se para cumprimentar os homens. Nem sempre que se ajoelham e se prostram rezam.
As religiões cristãs consideram que o casamento válido é o religioso. O matrimónio religioso é o mais importante e é este que constitui a família. E que a família é constituída de pai, mãe e filhos ou de pai, mãe e filhos solteiros. Tudo à imagem da família santa.
Uma família cristã é abençoada, a família bantu ou clã é pagã, pecadora e amaldiçoada.
A família bantu é o clã; não é composta de pai, mãe e filhos. Ela é larga e matriarcal, pois a mulher é a base desta. Este é dirigido por um chefe eleito pelos membros do clã, chamado Nkulubundu, Nkazi ou Mfumu a Kanda. É o chefe clânico. O pai e os filhos pertencem a clãs diferentes.
Para os bantu, o casamento costumeiro vulgarmente chamado aqui por Alembamento é o mais sagrado. Eles desvalorizam os casamentos cristãos e civis, justificando que são exclusivamente os responsáveis da mulher casada que dão os poderes de genro ao marido.
Contrariamente ao cristianismo, a cultura bantu autoriza a poligamia, mas condena a prostituição, o adultério, o incesto e a homossexualidade.
Os bantu condena ainda o sexo anal e bucal, assim como o divórcio, pois este (divórcio) divide os clãs e cria inimizade na comunidade.
Os povos bantu são conservadores e rejeitam o estranho a sua cultura.
Desde sempre praticam a circuncisão masculina. Um homem não circuncisado, chamado em Kikongo por Sutu (Masutu, plural) é considerado como indigno e nem podia casar-se.
A circuncisão era feita por cirurgião tradicional, com material e rituais locais. De igual modo, as feridas dos circuncisados eram tratadas por um enfermeiro tradicional e com remédio natural.
Bibliografia:
Dicionário prático ilustrado, Novo dicionário enciclopédico Luso-brasileiro, publicado sob a direcção de Jaime de Séguier, Lello e Irmão, Porto 1988
MITCHEL, G. Duncan, Novo dicionário de sociologia, pp. 15 e 126, RÉS-Editora, Lda. 1978, Porto – Portugal.
VEIGA, Américo, A educação hoje, 5ª edição, “A realização integral e feliz da pessoa humana”, pp 290 a 293, Obras Básicas. Editorial PADRE ALTUNA, Raul Ruiz de Água, Cultura tradicional bantu, Artipol- Artes tipográficas, Lda – Águeda (Portugal) – 2006