Luanda - 1. A supremacia da Constituição é o fundamento de validade, substancial e formal de todos e de cada um dos actos dos órgãos, serviços, agentes e entidades públicas. Neste sentido, projeta-se sobre eles o dever jurídico inadiável de a respeitarem e de a fazerem respeitar.
Fonte: Club-k.net
2. Este é o postulado em que assentam os verdadeiros Estados de Direito “cuja pedra de toque é o princípio da separação de poderes” - (Maria Urbano). Logo, os entes públicos só podem praticar os actos que lhe são permitidos por lei, sob pena de serem inválidos ou inexistentes, vid. artigos 226.º e seguintes da CRA.
3. Dito isto e como foi publicitado, o CSMJ deliberou por meio de uma resolução a EXTINÇÃO de vários TRIBUNAIS MUNICIPAIS e a CRIAÇÃO de SALAS de competências genéricas em determinados Tribunais Províncias (…) - vid. RESOLUÇÃO, De 25 de Abril de 2018.
4. Nesta sequência, atentos à deliberação do CSMJ em análise, não se vislumbra fundamento legal de peso irrefutável pelo qual se deverá concluir que o acto é válido. Pelo contrário, É UMA DELIBERAÇÃO INCOSTITUCIONAL, pelas razões que se evidenciam:
I - DOS VICÍOS DA NOTA INTRODUTÓRIA
a) Previamente, convém exteriorizar que a breve nota introdutória que acompanha a resolução em questão, traz as seguintes justificações:
POR UM LADO, O CSMJ ouviu e concertou o conteúdo da sobredita deliberação com o Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos, ou seja, com o representante do EXECUTIVO para a Justiça. POR OUTRO, teve como motivação:
(i) melhor aproveitamento dos juízes de Direito que estão em funcionalidade nos Tribunais Municipais;
(ii) garantir uma melhor aproximação da justiça ao cidadão;
(iii) ensaiar a implementação da organização judiciária nos termos em que legislou o parlamento na já referida Lei n.º 2/15 (…).
Pois bem, eis os VÍCIOS que assolam a sobredita introdução:
• O PRIMEIRO é o da OMISSÃO por parte do CSMJ do fundamento legal específico, ou seja, a lei e o artigo in concreto que lhe atribui os poderes funcionais necessários para extinguir Tribunais ou criar salas de competências genéricas (…), conforme o fez na deliberação em causa.
• Em boa verdade, a referência “ambígua” que faz – o CSMJ – à Lei n.º 2/15 (…) não foi para indicar o devido fundamento legal da sua competência. Pelo contrário, socorreu-se dela para afirmar que o diploma em causa foi umas das motivações para a prática do acto e não a fonte do seu poder.
• Ora, como é juridicamente exigível e constitui o precedente no nosso ordenamento, em nome da segurança jurídica e preservação do Estado de Direito, a entidade pública que delibera deve indicar concretamente a lei e o artigo que legitima a deliberação que torna pública e obrigatória. Logo, está omissão constitui uma irregularidade grave que inquina o acto em causa.
• O SEGUNDO – vício – resulta do facto de o CSMJ ter optado por preterir entidades essenciais cuja auscultação prévia é legalmente obrigatória para efeito de novação ou alteração do sistema judicial.
Porquanto,
• Uma breve interpretação ao artigo 68.º; n.º 2, da Lei n.º 2/15 (…), demostra que o legislador determinou que “A Comissão Nacional de Coordenação Judicial é Órgão de consulta, de coordenação e de apoio ao Sistema de Jurisdição Comum, com vista ao eficiente funcionamento e aprimoramento da Administração da Justiça”. A sua composição, para além, do Presidente do Tribunal Supremo, integra os Juízes Presidentes das Comissões Provinciais de Coordenação Judicial; Procurador Geral da República; Provedor da Justiça e o Bastonário da Ordem dos Advogados.
• Ora, o CSMJ deliberou, após concertação prévia com o MJDH. Mesmo que por mera hipótese académica o MJDH fosse competente para extinguir Tribunais e/ou criar salas genéricas, facilmente se infere que foram preteridas as entidades referidas na parte final da disposição acima citada, cuja opinião é imprescindível para o bom andamento da justiça.
• E mais, o MJDH é o representante do executivo para a justiça e direitos humanos, mas não tem quaisquer poderes constitucionais para legislar sobre a organização e funcionalidade judiciária, como demonstraremos quando opinarmos sobre o órgão competente para extinguir Tribunais ou Criar Salas Provinciais. Logo, o facto de o CSMJ ter concertado antes com o MJHD não o torna constitucionalmente competente para extinguir ou criar Tribunais e ou Salas.
Passemos para o principal vício que justifica o fracasso total da referida resolução:
INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL e ORGÂNICA
• Como está assente doutrinaria e legalmente, a inconstitucionalidade é a desconformidade dos atos jurídico-públicos com o parâmetro constitucional a que se encontram submetidos.
• Nesta lógica, tendo como critério o vício do acto, distinguem-se: INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL - consequência da colisão do conteúdo do acto com a constituição; INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL – violação das regras constitucionais sobre a produção e revelação de um acto jurídico público; INCONSTITUCIONALIDADE ORGÂNICA – violação de uma regra constitucional de competência.
• Isto dito, para nós, a sobredita deliberação afigura-se eivada dos vícios indicados.
Pois,
• À luz do artigo 164.º, alínea h), da CRA, a “organização dos Tribunais e o estatuto dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público” integra a reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia Nacional. Em bom rigor, quando determinada matéria usufrui de tal protecção – reserva exclusiva –, só o parlamento pode modificá-las ou revogá-las. Logo, são indelegáveis.
• Como ensina Gomes Canotilho e Vital Moreira, em termos do direito comparado a esfera do domínio absolutamente reservado em que só a Assembleia pode legislar exclui a possibilidade de outra entidade o fazer validamente em termos legais.
• Ora, poder-se-ia tentar defender que no referido artigo 164.º da CRA, o legislador ao referir-se à ORGANIZAÇÃO DOS TRIBUANAIS …, não pretendeu excluir a possibilidade do CSMJ extinguir Tribunais e/ ou criar Salas (…).
• No entanto, seria mera retórica condenada ao falhanço, pois, basta uma breve leitura ao artigo 184.º da CRA, que cuida das competências do CSMJ, para constar sem margem de dúvidas que na qualidade de órgão superior de gestão e disciplina da magistratura judicial foi-lhe reservado, APENAS, os poderes necessários para: (i) apreciar o mérito dos juízes e exercer acção disciplinar; (ii) designar juízes …; (iii) propor a nomeação de juízes Conselheiros do T. Supremo; e (iv) organizar concurso curricular para o Tribunal de contas (…). OU SEJA, em NENHUMA das suas alíneas o legislador constituinte atribui ao CSMJ o poder de extinguir Tribunais ou o de criar salas de competência genérica ou talvez pensar que esta norma e/ou a CRA permite exercício hermenêutico apurado que justifique a competência ora usurpada pelo CSMJ.
• Também é inútil invocar o artigo 93.º da Lei n.º 2/15 (…) para encontrar a legalidade da resolução em análise, porquanto o artigo em causa permite, limitativamente, ao CSMJ e da CSMM, DENTRO DAS SUAS COMPETÊNCIAS, a possibilidade de tomarem as deliberações necessárias à implementação do referido diploma.
• No caso em questão, o CSMJ apenas pode deliberar para efeito de concretização da Lei n.º 2/ 15 (…) sobre as situações elencadas do já referido no artigo 184º da CRA, v.g. nomear, sancionar, sugerir juízes, (…).
• Importa clarificar que estamos de acordo com a necessidade imperiosa de se implementar um modelo de Organização e Funcionamento dos Tribunais, que proporcione ao angolano JUSTIÇA e SEGURANÇA jurídica nas questões práticas da sua vida. Porém, tais alterações devem ser justificadas à luz do Direito vigente.
CONCLUSÃO:
Tanto basta para se concluir que a DELIBERAÇÃO está ferida de inconstitucionalidade, por violação dos artigos 164.º e 184.º da CRA, entre outras irregularidades, sendo desnecessário outros desenvolvimentos.
Porém, entendemos ser oportuno SUGERIR o seguinte:
a) Convém alterar o quadro legal vigente, no sentido de se conferir ao CSMJ maior independência no que tange às competências para organização e funcionalidade do Tribunais, bem como uma autonomia financeira cuja aprovação do orçamento não dependa da mediação do executivo;
b) O CSMJ, para sanar este vício, tendo em conta o actual quadro legal, deve optar por consultar o Procurador Geral da República; Provedor de Justiça e o Bastonário da Ordem dos Advogados, entre outras entidades, conforme impõe os artigos 67.º e seguintes da Lei n.º 2/15 …; e em concertação elaborarem uma proposta para concretização da Lei em causa e submetê-la ao Parlamento.
Por último, para o bem do Estado de Direito, que deve repudiar a violação da Constituição, é necessário que a sobredita RESOLUÇÃO SEJA EXPURGADA DO SISTEMA JURÍDÍCO, através dos mecanismos sancionatórios existentes ante a prática de actos inconstitucionais.
Abreviaturas utilizadas:
CSMJ – Conselho Superior da Magistratura Judicial
CRA – Constituição da República de Angola
CSMM – Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público
MJDH – Ministério da Justiça e Direitos Humanos