Luanda - Natércia Manuel, 33 anos, João da Costa, 36 anos, e Inácia Kabongo estão há quase um mês em liberdade, desde que deixaram as grades da Comarca de Kakanda, Lunda-Norte, onde ficaram 14 dias detidos, pelo facto de os agentes do Serviço de Investigação Criminal (SIC) confundirem aromatizantes para gelados com cocaína.

*Rodrigues Cambala
Fonte: JA

SIC "confunde" pó de gelado com cocaína

Os três não se conheciam até a data em que pequenos pacotes do produto, no valor de 11.900 kwanzas, enviados por Natércia por via de um despachante chegou às mãos de João da Costa e deste para Inácia.


Empreendedora e formada em Direito, Natércia Manuel tem uma pequena fábrica de gelados e picolés no Lukapa. Faz compra dos sabores e estabilizantes na Horeca, em Luanda. “Normalmente, quem compra é a minha irmã ou a minha mãe e entregam-no a um despachante que trabalha na companhia aérea Guicango.”


Por mês, adquire três a quatro vezes o produto, de acordo com as necessidades. “O senhor Dicáprio é sempre o despachante dos meus produtos que saem de Luanda para o Dundo”, afirmou.

No dia 18 de Julho, a irmã de Natércia adquiriu o produto (pó para gelado soft de chocolate, de banana e estabilizante) e fez entrega ao despachante que, imediatamente, tratou dos procedimentos para o produto chegar à Lunda-Norte. O produto foi despachado dentro de uma mala de roupa de Inácia Kabongo, num voo da Sonair, fretado pela equipa do Kabuscorp do Palanca. O despachante fez a entrega da mercadoria ao vice-presidente do Kabuscorp que, como não viajou, orientou ao técnico de equipamentos da equipa, João Costa, para entregar à cidadã Inácia, no Dundo.

Quando a aeronave chegou ao Dundo, Inácia recebeu a bagagem das mãos do funcionário do Kabuscorp.

 

“Por falta de funcionários no aeroporto, carreguei a pasta até fora da sala de desembarque. Apareceu uma senhora que disse ser a dona da mesma e daí entreguei”, conta João.


“Não a conhecia. Quando entreguei, a senhora Inácia disse-me que a pasta estava muito pesada e eu perguntei se ela era mesmo a dona. Ela disse que sim, daí segui a minha rota para o hotel com a equipa”, acrescenta.


Por sua vez, Inácia, ao sair do aeroporto, notou um peso a mais na pasta. Já fora do aeródromo, abriu-a e percebeu que tinha uns pacotes, ou seja, aromatizantes para gelados e um papel com contactos do destinatário dos mesmos produtos.


Enquanto abria a pasta, um agente da Polícia observou os pacotes e deteve Inácia por suposto tráfico de droga. Por desconhecer a dona da mercadoria, seguiu o agente. Natércia explica que, em seguida, recebeu uma chamada de um agente do SIC, de nome Levi, dizendo que aquele produto apreendido era droga e não produtos aromatizantes para gelados.


Natércia deslocou-se, no dia seguinte (sábado) de ma-nhã, ao Dundo para provar que os agentes estavam equivocados. Na companhia do esposo, procurou os agentes para reclamar a mercadoria. Foi levada até a Direcção Provincial do Serviço de Investigação Criminal, onde, além do director e de um técnico de laboratório, encontrou já detidos Inácia e João da Costa. “Já tinham sido fotografados da pior maneira, sem o mínimo de respeito e na condição de delinquentes.”


Natércia Manuel explicou que os dispositivos de teste não deram resultados concretos, mas eles diziam que era cocaína, daí que o director provincial do SIC ordenasse a detenção.


Perante a situação, a em-preendedora pediu a presença de um advogado que viajou de Luanda para o Dundo no dia seguinte. Natércia contou que foi ouvida pelo procura-dor que a acusou de traficante e pressionou-a que assumisse ser.


No local, o advogado pediu outros exames aos produtos semelhantes que levou de Luanda e alguns adquiridos numa loja no Dundo, mas o procurador negou fazer um novo teste, porque acreditava no laboratório e nos resultados. No mesmo dia, foram encaminhados para a Comarca de Kakanda, on-de ficaram encarcerados 14 dias, até se solicitar outros testes no laboratório de Lu-anda, onde saiu a confirmação de que não se tratava de cocaína.


“O resultado foi enviado para o Dundo e, infelizmente, até hoje o director do SIC não apresentou a ninguém e nem sequer se retratou pelo erro cometido”, apontou Natércia Manuel.

“Houve má-fé e fomos maltratados”

“Ficámos 14 dias detidos por má-fé, uma vez que não existiam drogas em lugar nenhum”, diz de pés juntos a empreendedora. João da Costa explicou que, antes da detenção, nos testes, utilizou-se reagentes já abertos e, no mes-mo instante, apresentaram uma cor preta e rosa.


Sem saber qual será a sua situação no Kabuscorp onde trabalha, conta que a Polícia foi buscá-lo à noite no hotel, onde estava concentrado com a equipa.
“No SIC e na Comarca, ficámos detidos em condições desumanas e a alimentação, para os três, não chegava na totalidade”, lembra Natércia, afirmando que foi ameaçada para assinar, por não concordar com o que estava escrito. “Depois de assinar, escrevi por baixo que não concordava com o que estava na folha um.”
Num tom fraco, Natércia lembra: “Houve muita humilhação e cheguei a chorar muito.”


Durante os 14 dias na cadeia, foi proibida a entrada de medicamentos para Natércia, uma vez que se encontra em estado de gestação. Ela supõe que havia uma rede montada na cadeia, coordenada por um agente prisional de nome José Mapa, que se fez passar por director da Comarca de Kakanda. “Nos primeiros dias, a alimentação entrava na totalidade porque extorquiam o meu marido. Quando cortou, por orientação da minha mãe, a situação era terrível.”


Ainda chocada com a situação, disse que no processo que deu entrada na comarca constava que foi encontrada com liamba.


Natércia disse estar agastada com o procurador junto do SIC, Bernardino Neto. Para ela, foi uma pessoa cruel e não percebeu o seu comportamento. “Perguntou se o bebé que estava na barriga tinha nome. E ele disse que vai chamar-se Kakandinha. Não sabia que era o nome da comarca, um lugar desumano. O procurador pôs palavras na minha boca.”


Ao admitirem que foram maltratados no SIC, mostraram fotografias da cela, com mais ou menos um metro quadrado e paredes sujas, com um colchão sórdido. “O meu marido teve de comprar o colchão e ventoinha”, disse Natércia.


Natércia saiu da cela com uma grave infecção, de acordo com o relatório médico. “O procurador Bernardino acusou-me de ter rasurado o cartão de consulta pré-natal e mandou os homens do SIC para me levarem ao Hospital Materno-Infantil do Dundo, para fazer a ecografia e se estava a uma semana para completar oito meses de gestação.”


No cartão de consultas pré-natal consta uma observação de que Natércia tem uma gravidez de alto risco. Um dia antes de sair da cadeia, o director da Comarca soube da situação da proibição da entrada de medicamentos. Por sua vez, manifestou a sua preocupação e questionou aos seus efectivos as razões que levaram a detida a não ter acesso aos remédios diários.


O relatório médico informa, ainda, que o bebé está com batimentos cardíacos acelerados, por causa da infecção urinária.

Tentativa de extorsão

Enquanto Natércia Manuel, João da Costa e Inácia Kabongo se encontravam na cela, um grupo de agentes tentava a todo o custo, por telefone e presencialmente, extorquir cem mil dólares ao esposo da detida. A reportagem do Jornal de Angola teve acesso a fotografias dos agentes e ao áudio de conversas mantidas, que denotava haver uma rede com a finalidade de extorsão.


No primeiro áudio, ouve-se a conversa de um responsável do SIC que informa ao esposo de Natércia que Luanda descartou ser droga, mas que está a ser perseguido e que pode ser substituído.


No segundo áudio, há uma conversa entre um agente do SIC que, sem se identificar, diz estar no gabinete e à vontade para falar. “Há um problema porque o teste enviado a Luanda deu certo (positivo). E gostaria de me deslocar ali, a Lukapa, com um agente para falarmos, mas depende de si. Mas não se espanta tanto assim...”, acrescenta o agente. Na conversa, o esposo de Natércia disfarça e pergunta, várias vezes, se o mesmo teste deu positivo. O agente do SIC avança: “Eu mesmo é que fui lá, a Luanda, e fiz o teste e deu positivo”. No final, o esposo de Natércia pede para aguardar para pensar um pouco na situação.


No terceiro áudio, ainda por telefone, um agente que se identifica como oficial do SIC, Nelito Gonçalves, pergunta ao esposo de Natércia se estava em Lukapa. Ele responde apenas que está ao volante e concordam em adiar a conversa.


No quarto áudio, a conversa retoma. O agente pede calma e diz que tudo na vida tem solução e basta ter a cabeça fria. “Se ficar frustrado, não vai conseguir resolver, as coisas vão ter solução.” Já sabendo dos resultados dos testes, o esposo de Natércia não o demonstra. O agente faz um esforço, por telefone, ­desdobrando-se em cenários para indicar a pessoa que está com o processo.


Em seguida, o agente pede para o esposo de Natércia falar com o “chefe.” “Não queres falar com ele porquê?” Sem conforto, o agente sugere, mais uma vez, que se fale com o chefe, contando com o seu apoio. O agente pede um encontro com o esposo da detida.


No quarto áudio, o agente insiste para estar com o esposo de Natércia, para evitar conversas por telefone. “Não fala com ninguém...”


O quinto áudio é feito na viatura, o agente apresenta-se mais uma vez como Nelito Gonçalves, oficial do SIC. Explica que, com os resultados dos testes, não se pode cruzar os braços. “Tens de contactar o chefe de Departamento de Drogas que anda de um Toyota. Não diz que foi o Nelito que te falou. Eu quero ganhar a tua confiança. Quando encontrares o chefe, ganha coragem e vê se falas com ele. A melhor forma é só falar com Bitchi. Fala com ele e você pode corrompê-lo. Os exames estão com ele, e já sabe que as mulheres não aguentam a situação de cadeia.”


E acrescenta: “Eu e o chefe Guerra, que tem um Rav 4, fomos a Luanda e a droga deu positivo. O que deu positivo é a droga que estava no frasco. Chama-se crack, não é cocaína. Crack é nome técnico da libanga”, diz o agente numa explicação arrojada.


“Eu não posso falar com ele, você mesmo vai lá. O chefe é uma pessoa honesta. Tens que garantir a minha segurança, senão posso ser expulso”, tartamudeia o agente.
Quanto aos áudios, Natércia Manuel justifica que os agentes da Lunda-Norte conhecem o seu esposo, em função da actividade empresarial que exerce há vários anos.

Procurador provincial:  “Há um processo  crime contra os agentes”

Contactado pelo Jornal de Angola, o procurador provincial da Lunda-Norte, Domingos Espanhol, recordou-se do processo da detenção de Natércia Manuel, mas desconhece de maus tratos protagonizados pelo seu colega, no caso o procurador junto do SIC. “Foi detida porque havia um produto que vinha de Luanda que se suspeitava ser droga.”


Sublinhou que no primeiro teste, realizado na Lunda-Norte, os peritos disseram tratar-se de drogas. “O laboratório da província não tem material sofisticado, por isso, o produto foi enviado a Luanda. Provou-se que não se tratava de droga e ela e mais duas pessoas foram colocadas em liberdade.” Domingos Espanhol afirmou que a procuradoria tem informação sobre a tentativa de extorsão por parte de alguns agentes do SIC e, em função disso, foi aberto um processo-crime contra os mesmos.


Sobre a proibição de entrada de medicamentos na comarca, o procurador garantiu que desconhecia este pormenor. “Esta é uma situação da Direcção dos Serviços Prisionais, mas, ainda assim, essa informação não chegou ao nosso procurador junto da Comarca.”


“Não tomámos conhecimento de maus tratos. Fez-se exames para saber quantos meses de gestação tinha a senhora, mas se provou que tinha mais de seis meses e se tomaram outras medidas”, explicou o procurador provincial, Domingos Espanhol.

Estado pode ser responsabilizado

O jurista e advogado Alcides Filho disse que o acto de tentativa de extorsão dos efectivos do SIC tem uma consequência directa que é a punição, pois, se o tribunal der como provadas as alegações de Natércia Manuel, podem ser privados da liberdade.


Segundo Alcides Filho, a lei penal no artigo 318 prevê a possibilidade de uma pena que vai de dois a oito anos nas situações ligadas a crimes de corrupção e suborno. “Quando o polícia ou o agente activo convida alguém para o corromper, para deixar de praticar um acto próprio das suas funções, a lei penal prevê consequência e este indivíduo pode ser expulso da função pública.”


O jurista admite que a proibição à gestante de ter acesso à medicação tem consequências do ponto de vista da lei. “Se se conseguir provar que a privação de medicação tenha causado algum problema de saúde, pede-se responsabilidade à pessoa que impediu o acesso aos medicamentos, no caso o agente prisional e também o Estado.” Alcides Filho acrescentou que o agente da autoridade, mais do que qualquer cidadão, tem o dever de colaborar para a protecção dos valores fundamentais e que o sistema prisional visa proteger.

Contradições

O director provincial do SIC na Lunda-Norte, Nelson Costa, afirmou que os produtos foram detectados pela fiscalização aeroportuária, ao passo que João Costa, o transportador da bagagem, nega e explica que retirou a mala até fora da sala de desembarque e entregou-a à senhora Inácia. “Foram à minha busca no dia seguinte no hotel e não fui apanhado no aeroporto”, revela. A segunda contradição, Nelson Costa disse que o teste foi feito no aeroporto, ao passo que João da Costa conta que o mesmo foi realizado no SIC.


O director provincial do SIC salientou que a senhora Natércia passou a noite num dos gabinetes da instituição com colchão e ar condicionado, devido ao seu estado de gravidez. Mais uma contradição, uma vez que Natércia Manuel frisou que foi o seu marido quem adquiriu o colchão e a ventoinha.

 

O oficial do SIC acrescentou que nenhum detido foi obrigado a assinar e que, dois dias depois, foram todos presentes ao Ministério Público. “Não sei qual é a má-fé de sujarem o nome do SIC”, avançou Nelson Costa. “É certo que ao longo do processo houve situações anómalas e eu, como director do SIC, em coordenação com a procuradoria e outros órgãos de defesa e segurança da província tomámos as medidas necessárias”, disse, para asseverar a abertura de um processo contra os agentes que tentaram extorquir dinheiro aos familiares dos detidos.