Luanda - Uma das questões que sempre me preocupou é sobre o que é um verdadeiro patriota. Isto tem em parte a ver com a minha infância em que fui rodeado de pessoas permanentemente apontando os dedos aos outros, em muitos casos fazendo acusações de falta de patriotismo.

Fonte: JA

A minha infância foi entre refugiados angolanos na Zâmbia, maioritariamente da UNITA, que verificavam tudo que era associado ao MPLA. Quatro anos antes da nossa ida à Zâmbia em 1976, o sistema de um partido único tinha sido introduzido; quem levantasse a questão do multipartidarismo era denunciado de imediato como um reaccionário. Os estudantes da Universidade da Zâmbia, muitos deles passaram eventualmente a ser meus professores, estavam constantemente em makas com as autoridades no governo.


Soube, muito cedo na vida, que o patriotismo é uma espécie de um rio gigantesco com vários afluentes. O verdadeiro patriotismo requer integridade, paciência, empatia, ter os pés na terra.


O meu amigo Rafael Marques de Morais, o grande activista que se destacou na campanha contra a corrupção em Angola é um dos grandes patriotas angolanos que conheço. O momento em que vimos a foto dele apertando a mão com o Presidente João Lourenço muitos de nós concluímos que Angola tinha, sim, começado um novo capítulo na sua história. Aquele foi, sim, um momento de muito orgulho para muitos de nós.


Conheci o Rafael Marques nos anos 90 do século passado em Londres. O Alex Vines, que trabalhava na altura na secção lusófona da Human Rights Watch me apresentou a este jovem jornalista. Demo-nos bem de imediato. O Rafael tinha trabalhado no “Jornal de Angola” e estava cheio de histórias do jornal. Na altura eu contribuía para a publicação britânica "The Spectator." O Rafael gostava de contar histórias. Lembro-me de uma história de um super-homem vindo do Lubango que tinha aparecido no jornal e convidado a todos para lhe darem um soco na barriga. Eu imaginava, então, a fila de jornalistas a darem socos na barriga deste gigante.


Havia vezes que o Rafael vinha para o meu apartamento e dava-me bafos porque tudo estava muito desorganizado. Passeávamos e falávamos de literatura. Rafael falou-me de alguém, do Leste de Angola, que tinha estudado em Cuba e que foi fortemente influenciado pelos romances de Gabriel Garcia Marquez. Eu tinha crescido com os romances de autores da África anglófona (Achebe, Ngugi, Peter Abrahams etc) e os únicos romances da América Latina que tinha lido, recomendado pelo meu falecido irmão, Jaka Jamba, eram de Jorge Amado. Foi através do Rafael e descobri o grande romance "Cem Anos de Solidão." Como muitos angolanos, o Rafael Marques gostava muito de poesia. Não fiquei nada surpreendido quando alguns meses mais tarde fui convidado para a sede da Human Rights Watch para o lançamento de uma colecção de poesia "No Coração do Inimigo."


Lembro-me, então, na altura, uma mudança profunda no Rafael. Conversamos numa mistura de inglês e português e o Rafael insistia que Angola tinha que ser transformada, que a elite política se tinha esquecido dos menos favorecidos. Rafael Marques nunca, como eu, foi da UNITA: ele insistia que os desafios que o país estava a enfrentar requeriam uma frente unida de todos e todas as forças. Naturalmente, esta atitude criou-lhe muitos adversários no país.


Antes de regressar a Angola, onde ele teria certamente que enfrentar a fúria do establishment por causa dos seus poemas e escritas, tive um jantar com o Rafael numa noite em Streatham, um subúrbio de Londres. Eu sugeri ao Rafael que ele deveria pedir asilo político no Reino Unido e que eu iria ajudá-lo. Rafael recusou; ele disse que iria voltar para Angola quaisquer que fossem as consequências. Tentei várias vezes persuadi-lo. Até disse que ele poderia viver no meu apartamento em Crystal Palace, já que eu na altura tinha um arranjo romântico que fazia com que passasse a maior parte do meu tempo numa outra parte de Londres. Rafael recusou e veio para Angola.


Logo depois do seu regresso lá estávamos (nós da comunidade africana) a nos organizar para fazer uma campanha, já que o Rafael tinha sido preso. O Rafael trabalhou para a Open Society e depois começou a sério a campanha contra a corrupção em Angola. Lembro-me de uma conferência no Porto, organizada pelo falecido Presidente Mário Soares, em que o Rafael insistia que os direitos humanos deveriam ser respeitado por todos. O mundo via nas Lundas uma fonte de diamantes; o nosso Rafael Marques realçava o custo humano da cultura que se tinha desenvolvido lá que aparentemente só valorizava as pedras preciosas.


Há uns anos atrás, participei numa conferência sobre Angola no Departamento de Estado dos Estados Unidos em Washington DC. Havia lá o Dr Assis Malaquias, da National Defence University e o nosso Rafael que falou sobre como o nepotismo e falta de transparência iriam enfraquecer todos os esforços de desenvolver a Nação angolana. Ninguém de nós na altura imaginava que durante as nossas vidas Angola teria um Presidente pronto a ouvir os argumentos de um Rafael Marques. No Ocidente, milhares e milhares de dólares foram gastos com empresas de relações públicas e até mesmo peritos de espionagem electrónica para arruinar os esforços de Rafael Marques. Felizmente, ele não quebrou e a Nação angolana vai agradecendo este grande patriota.