Luanda - Jurista e professor universitário avisa que “o combate à corrupção está a perder o norte”, por estar “focado nas pessoas e não na reposição do património do Estado”. Albano Pedro manifesta-se contra as prisões “selectivas” e o encerramento de empresas, alertando para possíveis convulsões sociais. Ataca a PGR, acusando-a de violar a lei e permitir o branqueamento de capitais, pela forma como age. E não tem dúvidas de que, pela forma como está a ser feita a luta contra a corrupção, João Lourenço arrisca-se a responder em tribunal, mesmo que seja “como declarante”.

Fonte: Valor Economico

O que pensa das controvérsias no combate à corrupção?

Gostaria de acreditar no sucesso do combate à corrupção se estivéssemos perante sinais evidentes de que estamos no bom caminho. Esta é uma operação de natureza política e também económica. Todos os angolanos esperavam que, a dado momento, o país entrasse numa fase de depuração dos grandes males que enfermam a sociedade e o Presidente João Lourenço lançou esse desa o. Mas depois olhamos para os mecanismos e os métodos e começamos a questionar. E é aqui onde se coloca o problema da possibilidade ou não do sucesso deste combate.

 

Porquê?

Primeiro, há uma tendência selectiva de tratar os actores do processo de delapidação do erário. Estão a ser mais abrangidos os administradores e directores provinciais ou chefes de secção, mas no topo vemos um processo mais tímido e muito mais cauteloso que dá essa sensação de selecção. Depois, são as medidas de coacção que estão a ser aplicadas pela Procuradoria Geral da República (PGR).

 

É contra essas medidas?

Como jurista, sou crítico. Os crimes económicos impõem sempre medidas de garantia patrimonial: a necessidade de apreender os bens, congelar contas e reter todo o património supostamente subtraído do erário para que se tenha garantia, na hora do julgamento, de que esses bens sejam devolvidos ao Estado.

 

A PGR não caminha nessa direcção?

Não. O que a PGR está a fazer é privilegiar medidas de coacção física: prender pessoas, coarctar liberdades e não a tocar no essencial, que é aplicar medidas de garantia patrimonial.

 

O que pode resultar disso?

Receio que, quando as pessoas forem julgadas e condenadas, os bens já tenham sido dissipados porque terão sempre possibilidade de avisar os mandatários e agentes para que dispersem o património que delapidaram. Chegados ao m do julgamento, não há bens para reparar danos. E, quando alguém não tem capacidade de pagar, assume-se os riscos tal como se apresentam, ou seja, não há nada a fazer. Esse é o risco para o Estado. Se a nalidade é repor o património, então não temos como repô-lo, usando o método da criminalização.

 

E o repatriamento coercivo de capitais não ajuda?

O repatriamento coercivo devia ajudar se funcionasse. Mas refere- -se apenas aos bens domiciliados no estrangeiro, quando a maior parte dos bens delapidados está cá, tal como as pessoas. E usam esses bens aqui. O que pode ser repatriado é residual. Temos empresas constituídas à custa do erário. Temos indivíduos com movimentações milionárias internas e a Lei do Repatriamento Coercivo de capitais nada diz a esse respeito. Aqui levanta-se outra questão: porque é que se regulou o repatriamento coercivo e não o património interno? Quais são as intenções? São esses aspectos que maculam o combate à corrupção, porque não estão a ser utilizados meios sustentáveis.

 

E quais são esses meios mais sustentáveis?

Prefiro que sejam aplicadas medidas que não constranjam a economia e permitam que os actores sejam responsabilizados, mantendo a estabilidade da economia. Isso significa que não se deve avançar com o encerramento compulsivo de empresas como está a ocorrer. Houve o encerramento de três bancos sem o respeito mínimo pelos trabalhadores e utentes. Não houve um aviso que permitisse uma mobilização interna dos recursos humanos de modo a que as pessoas cessassem o vínculo laboral de forma estável e criou-se desemprego automático.

Mas o encerramento do BANC, Banco Postal e Mais radica ale-gadamente do facto de não terem conseguido aumentar o capital social de 2,5 mil milhões para 7,5 mil milhões de kwanzas, em um ano. Logo, não foram apanhados de surpresa…

Há dois momentos: há um aviso que o BNA faz à entidade bancária para que aumente o capital e há uma noti cação da retirada da licença. Ao mesmo tempo que se avançou com o aviso sobre a necessidade do aumento do capital, devia estar também a consequência do não cumprimento automático da medida. O banco central não condicionou o aumento do capital com a cassação da licença. O BNA, enquanto entidade do Estado, devia acautelar os interesses dos trabalhadores e dos clientes, não tanto dos accionistas porque a estes fez a notificação directa para que aumentassem o capital e tinham consciência das consequências. Os utentes e os trabalhadores foram apanhados com as ‘calças na mão’, porque o BNA não foi flexível.

 

O que deve acontecer às empresas privadas supostamente criadas com fundos públicos que o Presidente mandou avaliar?

O que está a ocorrer é um con sco dessas empresas. Evidentemente, o Estado não pode chamar a si essa responsabilidade, mas sim o controlo provisório de quotas para que as empresas sejam alienadas. Mas, se o Presidente anunciou claramente que vai chamar para a tutela do Estado essas empresas, isso é uma irregularidade como também o é o con sco da Angomédica.

 

Fala-se de um processo semelhante com a Nova Cimangola...

É igual, não tenho dúvidas sobre isso.

 

Quais são os riscos que antevê destas acções?

O caos concebe-se de todas as formas, tanto como está a ocorrer, com a prisão de indivíduos e deixando as empresas, como ao contrário. O melhor era entrarmos no caos menor: a retenção dos bens porque o objectivo é que o Estado seja ressarcido. Esse é o foco que estamos a perder, ou seja, o processo de combate à corrupção está a perder o norte, porque não está a focar-se no essencial, na reposição do património público. Não há esse foco e ,não havendo, obviamente, vamos agir com muita arbitrariedade, tal como se verifica em vários processos; pessoas a serem detidas sem provas e várias aberrações.

 

Por exemplo?

Por sigilo profissional, não entro em detalhes, mas tenho o caso de um secretário-geral de um governo provincial, um director provincial de um gabinete de planeamento detidos por dívidas particulares que a PGR pensa que foram contraídas a pensar que seriam pagas com dinheiro dos cofres públicos.

 

Além do ‘peixe miúdo’ a PGR também tem chamado ‘tubarões’...

Em rigor, todos deveriam ser chamados porque, durante o consulado de José Eduardo dos Santos, o país estava mergulhado na corrupção até ao tutano. Fica difícil ver quem caria de fora numa altura em que nenhum gestor se salvou dessas operações de enriquecimento ilícito. A PGR deveria chamar quatro a cinco pessoas por semana. Não percebo como é que apenas dois ou três parlamentares são chamados no meio de mais de duas centenas. Por outro lado, tenho informações de que há uma lista de pessoas a serem chamadas pela PGR. Há um sinal claro de pessoas visadas e outras que não são. Um processo desta natureza tem tudo para inspirar revolta e não estabilidade.

 

Poderá ser o início apenas de um processo?

Não se está a ir para o caminho que se pretende. Vejamos o exemplo de Higino Carneiro. Na pele do deputado do MPLA, ao ser intimado para responder, não teria di culdade de ligar para o meu agente e dizer-lhe: “veja as contas nas Bahamas e mande-as para a ‘casca da rolha’ porque aqui as coisas estão a aquecer”. Estamos perante um quadro em que a própria PGR está a propiciar operações de branqueamento de capitais, porque não está a acautelar o essencial, que é tornar o Estado íntegro.

 

Há uma corrente que defende um perdão e começar uma nova era. Concorda?

Isso coloca o problema da moralidade, ou seja, se as pessoas falharam, devem ser responsabilizadas. Se a questão é levar toda a gente a tribunal, ilibe-se quem justamente puder por falta de provas. Mas, se estivermos perante um processo selectivo, em que só algumas pessoas é que são chamadas, o melhor é avançarmos para um perdão geral. Estamos perante um processo injusto e processos desta natureza sempre desencadeiam crises sociais.

 

Mas o objectivo é a moralização e a responsabilização a que se refere...

Se fosse uma convocatória justa dos visados, isso até traria um sentimento de justiça. As pessoas que estão a ser chamadas são superpoderosas, têm muito património e são proprietárias de empresas que operam no país e sustentam a economia, empregam quase todo o mundo. Se se tomar a decisão de encerrar empresas, por retaliação ou por solidariedade qualquer que obrigue a bloquear a economia, não tenho dúvidas de que Angola pára.

 

Que empresas são essas?

Se uma Unitel encerrar, já saberemos as consequências: de repente, ficamos todos perdidos, sem comunicação e milhares de famílias sem pão. Na Zap ou na TV Zimbo, o cenário não é diferente. São empresas vistas como pertença de suspeitos de delapidarem o erário, mas se fecham não sei onde vamos parar. Além disso, temos muitos generais que enriqueceram também à custa do dinheiro público que não fazem parte da governação, mas têm poder. Os golpes de Estado existem e, conhecendo eles os meandros castrenses, sabem por onde mexer para alterar o ‘status quo’. Não vejo dificuldades de ocorrer uma instabilidade política e económica em resultado do mau equacionamento do combate à corrupção.

 

Por que razão se faria justiça selectiva?

Os sinais são de retaliação. Nós sabemos que existem alternativas para fazermos um combate muito mais sustentável que leve o país no bom caminho. Se não estamos a ir por aí, é porque as intenções são outras.

 

Acredita que o foco sejam pessoas ligadas ao ex-Presidente da República?

Está a ficar evidente, porque só falamos dos sinais e não de coisas imaginárias. O que se está a passar é que as pessoas que foram chamadas estão a ser responsabilizadas em função da gestão passada. Muitas delas transitaram para o mandato do actual Presidente, estão na ‘máquina’ e continuam a funcionar.

 

No caso de Higino Carneiro, fala- -se em achincalhamento público em que não se respeita a presunção de inocência, quando a PGR emite comunicados de processos ainda em investigação. Concorda?

O anúncio público de uma informação que diga respeito ao direito de imagem, privacidade ou a tudo que diga respeito à personalidade só é aceitável no exercício da liberdade de imprensa. É a única liberdade capaz de constranger as outras liberdades individuais. Fora disso, não há poder nenhum que possa ser exercido sobre a liberdade das pessoas. Se a PGR não convoca uma conferência de imprensa, ou não presta informação aos órgãos de comunicação social, não tem legitimidade de apresentar informação. Os comunicados da PGR não estão a ser feitos no âmbito da liberdade de imprensa, logo, atropelam a lei. Os agentes da PGR incorrem em crimes de calúnia e de difamação e a responsabilidade cível por danos causados. Os anúncios violam direitos fundamentais. A PGR está focada na exposição das pessoas e não nos processos.

 

O ex-ministro da Comunicação Social, Manuel Rabelais foi impedido de sair do país. De seguida, o Ministério do Interior apresentou um pedido de desculpa. Que leitura faz?

Olhando para o mérito da acção, o Ministério não deveria chegar a esse ponto. É o excesso de zelo que caracteriza as nossas instituições por causa do chamado ‘senhor ordens superiores’ que o Presidente diz já ter sido enterrado, mas parece estar ressuscitado. Isso explica claramente o ‘modus operandi’ dos órgãos, como uma PGR, que antes não falava e já o faz e onde o ‘ordens superiores’ está presente. No caso de Manuel Rabelais, um simples funcionário do SME não teria capacidade de o impedir de viajar.

 

A imagem do chefe de Estado está omnipresente?

É inevitável, até por razões jurídicas. Temos uma Constituição que diz que o Presidente da República é o titular do poder executivo. Isso significa que responde por todos os actos praticados por qualquer funcionário. A hierarquia, que havia no procedimento administrativo que dava lugar à reclamação, foi esbatida. Hoje, quando um administrador municipal pratica um acto ilegal é sindicável directamente ao Presidente da República, porque ele concentra todo o poder.

 

Sugere uma mudança da Constituição?

Não, porque a mudança da Constituição é independente. Mas, se formos fazer uma alegoria, a nossa Constituição equivale a uma zona montanhosa com relevo acentuado e não dá para construir uma estrada.

 

Temos uma Constituição acidentada?

Somos um Estado de direito e democrático, mas diz-se erradamente democrático e de direito. A democracia e o nosso direito não andam, porque as instituições que os devem fazer andar, o Parlamento e os tribunais, estão bloqueadas. Os erros são muito crassos. Temos um sistema parlamentar caduco, próprio dos sistemas comunistas, que já devia estar ‘enterrado’, porque não gera democracia nem consensos, logo, não pode haver democracia liberal porque temos apenas uma câmara. Os parlamentos produzem consensos quando existem duas câmaras. O que temos é uma ditadura parlamentar. Os tribunais também estão numa confusão porque a Constituição não estabelece o topo da hierarquia.

 

Como tem visto o caso ‘burla tailandesa’?

A PGR acaba de confirmar que o cheque de 50 mil milhões de dólares é falso. Estamos a formar claramente a ideia de que houve uma tentativa de burla, porque os empresários estavam cá, zeram ‘démarches’, foram acolhidos e diziam que tinham esse dinheiro. É um desafio para os advogados que alegam que o cheque tinha cobertura.

 

É também um desafio para Norberto Garcia, antigo director da APIEX?

O meu colega de carteira, infelizmente, não escapa e ele sabe disso.

 

Mas este caso também está eivado de irregularidades?

O problema é do sistema ‘infantil’ de justiça. Estamos perante uma máquina que, durante muitos anos, não andou e ‘enferrujou’. Tecnicamente, nunca se julgaram governantes. Conheço uma sala do cível e administrativa, no tribunal, onde os juízes jogavam cartas porque nunca viram nenhum processo. Durante muito tempo, estava tudo parado e, de repente, as coisas começaram a movimentar-se. As pessoas não zeram exercícios de aquecimento e, de repente, estão a correr. Todos os embaraços começam na PGR na forma como recolhe provas. Em processo penal, não há prova válida sem prova material. Mas, infelizmente, temos uma PGR que apenas por informações dadas detém as pessoas. Essa é a maior caricatura.

 

Também temos o ‘caso Fundo Soberano’, que envolve um lho do ex-Presidente da República...

Esse é um dos poucos casos que fará com que os grandes problemas da corrupção venham ao de cima e se resolva a maka do combate selectivo. Quem vai estragar a ‘festa’ são os advogados.

 

Porquê?

Não nos espantemos que pessoas com muito poder também sejam chamadas. Temos de chegar a julgamento para o tribunal decidir, com clareza, se houve ou não matéria de culpa, porque, apesar de o tribunal britânico ter decidido que não existe culpa, isso não inibe a PGR de fazer a acusação porque acha que existem outros elementos.

 

E se não houver matéria de culpa?

Pode acontecer o inverso da moeda, um conjunto de processos contra o Estado com indemnização de milhões de dólares.

 

O ex-PR pode ser uma ‘peça-chave’, apesar da imunidade?

Todo o jurista sabe que ele é uma peça determinante no processo. Na verdade, deve responder, porque foi o gestor de topo, que decidia a distribuição e execução do Orçamento Geral do Estado. Toda a dissipação de bens correu de alguma forma com a sua participação, sobretudo tratando-se de valores altíssimos, como as transferências do BNA.

 

Mas o ex-PR pode ou não ser declarante?

É falacioso o argumento de que o ex-PR não pode ser declarante. Não há imunidades. A nossa Constituição, em matéria de protecção a ex-presidentes, vice-presidentes e, por arrasto, deputados, diz claramente que as imunidades só defendem para quem for detido ou preso. Em tudo o resto, os procedimentos de investigação podem ocorrer e as pessoas podem ser notificadas. Ex-presidentes da República só podem ser presos e detidos depois da perda de imunidade de cinco anos.

 

Chamou a atenção para os perigos do combate à corrupção, dizendo que tem tudo para prender todos…

Com essa história de prender, não se safa ninguém, incluindo João Lourenço. Não vejo ninguém safar-se e estou a falar com responsabilidade. Em 1985, tivemos o processo dos kamanguistas em que 105 pessoas foram arroladas, começou o julgamento e chegou- -se à conclusão de que estavam envolvidas guras da nomenclatura. Teve de se parar e arquivar o processo, porque já estava a pôr em causa a estabilidade do poder. Todos seriam chamados e estava desenhado o escândalo nacional. O combate à corrupção corre o mesmo risco.

 

Quer dizer que João Lourenço não é imaculado?

Não posso dizer, com todas as letras, que o Presidente participou em actos de corrupção ou de improbidade pública, mas foi gestor público e, recentemente, ministro da Defesa. Não estou a ver como o Presidente João Lourenço não venha a responder a um processo nem que seja como declarante. Se formos rigorosos a prender, o país pára. Usando o rigor jurídico, isso até é mais grave do que parece porque depois temos a chamada gura do cúmplice, do co-autor, do autor moral e do autor material. Indivíduos que não foram gestores, mas beneficiaram da oferta de bens e sabiam que eram de origem ilícita, apanham como cúmplices pela mesma bitola.

 

PERFIL

Nascido em 1972 em Malanje, Albano Pedro é jurista, advogado, professor na Universidade Gregório Semedo, em Luanda. É autor dos livros ‘Assim Nasce uma Nação’ e ‘Ensaio Sobre a Essência da Relação entre o Homem e a Mulher’.