Luanda – Francisco Queiroz, 68 anos, foi um dos ministros que transitou do último Governo de José Eduardo dos Santos, para o formado por João Lourenço, em Setembro de 2017. Vinha da pasta de Geologia e Minas e passou a ser ministro da Justiça e dos Direitos Humanos. Uma mudança improvável, mas, na verdade, mais próxima da sua especialidade.

 

Fonte: JA

“Savimbi vai ser transladado para onde sempre quis ser enterrado”


Queiroz é jurista (fez o mestrado na Universidade Clássica de Lisboa) e, aliás, foi por ter sido o autor do Código Mineiro de Angola que passou cinco anos como ministro do país dos diamantes, ferro e manganês.

Agora, Francisco Queiroz gere a Justiça, mas foi por causa do complemento do nome do seu ministério - “e dos Direitos Humanos”... - que se tornou notícia. Na semana passada, em Genebra, numa reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU, Queiroz anunciou uma medida que pode ser uma pepita na construção da democracia e unidade do seu país: a reparação dos danos morais das vítimas da violência política em Angola durante a guerra civil (1975-2002).

Vítimas políticas da guerra, de qualquer dos lados, governamental e rebelde. Mas também dos conflitos internos nos dois principais partidos, MPLA e UNITA, à volta dos quais se polarizou a sociedade angolana. Do mais conhecido dos casos de repressão, o 27 de Maio de 1977, entre milhares, foi executado por camaradas seus o dirigente do MPLA José Van Dúnem irmão da actual ministra portuguesa da Justiça, Francisca Van Dúnem, mas também das tantas execuções de rebeldes pelos seus próprios companheiros de luta.

Na entrevista que deu ao jornal “Diário de Notícias” e à rádio TSF, em Lisboa, Francisco Queiroz insistiu em sublinhar: “Não se trata de apontar o dedo”.
Trata de se saber o que se passou, porque se passou e fazer o resgate da dignidade daqueles que, num processo que se pretendia de nascimento de uma nação, foram mortos pelos seus compatriotas. Verdade e reconciliação. O mínimo devido às vítimas: entregar as certidões de óbito e saber do lugar das mortes. Intenção maior: fazer desses desastres nacionais um cimento para unir Angola.

Na semana passada, em Genebra, na Comissão dos Direitos Humanos da ONU, falou do mal feito contra os direitos humanos em Angola, durante a guerra civil. E manifestou a vontade do Governo angolano em reparar moralmente essas feridas. Quer dizer, recordou uma questão funda, enorme e grave, que até atingiu internamente os partidos, o MPLA e a UNITA. E quer que esse mal sirva de lição. Exactamente o que significa isso?
Esta ideia de reparar moralmente as vítimas da guerra, os mártires, digamos assim, enquadra-se exactamente neste propósito de dar cumprimento aos direitos humanos. O novo ciclo político iniciado pelo Presidente João Lourenço tem esta marca de maior sensibilidade para as questões da sociedade civil, as suas preocupações e aquilo que é possível fazer para ir ao encontro das ansiedades dessa sociedade. Tendo já sido resolvidos alguns casos, como, por exemplo, a transladação dos restos mortais do general Chenda Pena “Ben Ben”, general do exército angolano saído da UNITA.

Condecorado nas últimas comemorações do Dia da Independência...
Exactamente. Os restos mortais estavam na África do Sul, a mãe do general falou com o Presidente e este tratou de dar resposta. O mesmo em relação aos restos mortais do ex-presidente da UNITA, o Dr. Jonas Savimbi, que também vai ser transladado do Moxico para onde sempre quis ser enterrado, na localidade de Lopitanga, no Andulo (Bié). São gestos humanitários que devem ser alargados a toda a sociedade. Há acontecimentos que ocorreram no processo histórico de Angola, no período da guerra, que geraram vítimas, pessoas que de alguma forma se sentiram agredidas nos seus direitos fundamentais.

O caso mais conhecido é o do 27 de Maio, no interior do MPLA.
Esse é um deles, talvez o mais conhecido, mas se calhar até não é o mais grave. Há outros, só que não são tão conhecidos, não são tão falados, quer no lado da guerrilha, quer no lado, também, das Forças Armadas.

Esse levantamento está a ser feito?
Existe um estudo que está praticamente terminado e que indica a metodologia de trabalho para identificar as famílias, identificar as vítimas na medida do possível e, também, propor as formas de reparação moral e psicológica desses traumas. Foi um processo feito por uma comissão indicada pelo Presidente da República que integra o Ministério da Justiça, a Casa Civil, a Casa de Segurança e os sectores que, de alguma maneira, têm que ver com esta problemática - o Interior, a Defesa, a Cultura terão uma palavra a dizer.

Os outros partidos foram ouvidos?
Este é um processo que tem de envolver toda a sociedade. No momento adequado, toda a sociedade vai ter oportunidade de se pronunciar.

Foram contactados, por exemplo, por famílias que querem saber dos seus?
O processo está em curso e no devido momento vão ser consultadas. A fase seguinte é a da identificação das situações. Aí, tem de se criar um mecanismo de consulta, de diálogo, de interacção, para que as famílias possam dizer: “Olhe, eu tive este caso, assim, assim e assim, ocorreu desta e daquela maneira”. O Estado, no caso, o Executivo, tem de encontrar a maneira de dar resposta às preocupações da sociedade e das famílias. Algumas dessas respostas poderão ser, por exemplo, emitir certidões de óbito.

Há muitos que não têm?
Nos casos em que não tenha havido registo de óbito, é preciso emitir certidões de óbito; noutros casos, com base na morte presumida, nos casos em que não se saiba qual é o paradeiro...

Assinalar onde os corpos eventualmente poderão estar...
Sim, porque nalguns casos é possível identificar onde estão as ossadas, etc.; noutros casos, não. Mas as famílias estão aí, sabem que per-
deram um parente. Há a possibilidade de erguer um monumento que simbolize os mártires da pátria desaparecidos dessa maneira, onde possam ser recordados para então se fazer uma reparação à memória dessas vítimas. Há uma dívida da sociedade para com essas vítimas. Uns perderam a vida lutando, com possibilidade de se defenderem, mas outros, sem nenhuma possibilidade de defesa, perderam a vida, quer nos massacres da guerrilha, quer nas situações de conflito interno, etc. É preciso que a sociedade faça as pazes, digamos assim, com essas vítimas e que lhes preste, com toda a justiça, esse tributo. É o resgatar de uma dívida e da honra e da dignidade das pessoas que foram vítimas.

Angola já teve uma resolução de um problema interno extremamente duro e que conseguiu, de facto, resolver, no caso da guerra civil que acabou, mesmo, em 2002. Mas não conseguiu fazer passar para fora do país esse facto positivo. Desta vez o que pensam fazer?
Dar a conhecer o que se está a fazer para resgatar esse compromisso. Este programa deve estar assente em três princípios - a historicidade, tem de ter enquadramento histórico, tem de se saber qual foi o contexto histórico em que isso aconteceu.

Saber-se o que realmente aconteceu...
E dentro de um determinado período, aquele em que as situações eram muito complicadas. Portanto, o aspecto da historicidade é muito importante. Outro é o da reconciliação. Nós já temos uma experiência de reconciliação muito bem-sucedida, que serve de paradigma para outras situações pelo Mundo.

Nas Forças Armadas, com a integração das forças rebeldes..?
Sim, nas Forças Armadas. Portanto, tudo o que se fizer neste programa concreto será no sentido da reconciliação, nunca para o oposto, nunca para abrir feridas, nunca para criar mágoas, para gerar inimizades, nunca. O terceiro princípio fundamental é o do perdão. Não vai haver um processo destes bem-sucedido, se for para apontar dedos, se for para culpabilizar este e aquele, se for para criar um ambiente de inimizade entre pessoas, entre famílias, entre instituições. Não! O princípio tem de ser o do perdão. Se nós conseguirmos conciliar estes três princípios neste projecto, poderemos realmente mostrar ao Mundo que Angola teve a dignidade de olhar para o seu passado, ver os traumas, os erros históricos e repará-los de forma digna para as famílias, para a memória daqueles que perderam a vida e, também, para a dignidade humana de Angola, dos angolanos. É preciso trabalhar isto com muito cuidado, para não gerar expectativas que vão para além daquilo que é histórica e humanamente possível e desejável, mas que consiga atingir esse objectivo da reparação dos danos morais, psicológicos e a recuperação da dignidade e da honra das pessoas.

Isto vem no sentido das condecorações que foram feitas também recentemente a várias pessoas que estavam ligadas à oposição angolana? Do histórico MPLA, mas crítico, Gentil Viana, do presidente da FNLA, Holden Roberto, o líder religioso Simão Toco, que foram reconhecidas em Angola como cidadãos que fizeram muito pela sua Independência, mesmo não sendo afectos ao Governo...
Sim, exactamente. Houve uma cerimónia de atribuição de medalhas, de reconhecimento simbólico, e vão continuar. Liceu Vieira Dias, por exemplo, que foi esquecido durante a Independência, quando tão importante foi na música angolana. E o Bonga ... Pessoas que se destacam pela sua atitude, pela sua contribuição para o progresso da sociedade angolana e que merecem esse reconhecimento. Mas aqui estamos a falar de uma situação diferente, que é o do resgate da memória, da honra devido à memória das vítimas. Mas, de facto, é o mesmo tipo de sensibilidade para com os feitos dos outros, sejam conhecidos, sejam anónimos, quer tenham agido com consciência de que estavam a fazer algo em prol do país, quer tenham agido sem ter consciência de que estavam, de alguma maneira, a dar o seu contributo. Nós, que fazemos parte destas gerações, que estamos ainda em vida e que podemos, temos de olhar para esse passado, porque o presente não tem significado, se não olharmos para o passado, assim como o futuro também fica vazio, se não tiver o presente e o passado.

Agora, trata-se de trazer o passado para servir de lição.
É isso. São processos que nunca param. No caso de Angola, temos um período que está bem identificado, que é desde a Independência, em 1975, até 2002. É um período identificado em que houve um conflito armado complicadíssimo, destruidor, que afectou muitas famílias. Vamos olhar para esse período, vamos ver quem sofreu com isso, que famílias existem e ainda estão traumatizadas, ver de que modo é possível reparar isso. É uma questão de justiça; é uma questão humana. Para a frente haverá outros episódios, se calhar. Oxalá que não sejam tão traumáticos como este, mas sempre haverá situações em que, por isto ou por aquilo, há pessoas que são também vítimas, mas o futuro o dirá. Oxalá que não haja novamente direitos atropelados.

Do ponto de vista prático, quais são os próximos passos?
Recebermos as orientações do Presidente João Lourenço, quanto ao trabalho que está praticamente concluído, de modo a que possamos interagir com a sociedade, abrir o canal de diálogo, identificar as situações, listá-las, fazer o enquadramento de quais são os casos concretos - porque diferem uns dos outros - e, depois, qual é o tratamento que se pode dar a cada uma das situações. Nalguns casos, como disse, repara-se com a certidão de óbito, noutros casos é preciso homenagear com actos simbólicos.

Já tiveram ecos dos outros partidos?
Os ecos surgem de forma bastante positiva. A iniciativa tem sido muito bem saudada e tem gerado esta sensação de reconciliação social e, sobretudo, de maior proximidade entre as pessoas. Entre aqueles que, de alguma maneira, se sentiam mais excluídos ou mais doridos ou prejudicados do ponto de vista do trauma e as instituições públicas que estão a olhar para esta situação. Estão preocupadas e à procura de soluções. Tudo isto tem contribuído para uma maior reaproximação das pessoas. Por causa disso mesmo, a reacção e o feedback têm sido os melhores, em todos os estratos da sociedade - o religioso, o político, a sociedade civil. E as pessoas comuns conversam...