Luanda - A propósito do lançamento de LENGULUKA, o seu segundo romance na sequência da publicação de três livros de contos e do seu tão conhecido diário “Os (meus) dias da independência” e o esgotado “Eleições Angolanas 1992 – Lições para o Futuro”, estabelecemos com o Dr. Onofre dos Santos esta entrevista.

Fonte: Jornal Vanguarda

O facto de se ter jubilado do Tribunal Constitucional em finais de 2017 não o tem afastado de Angola e a sua opinião é muito escutada. No entanto há muito tempo que não temos tido ocasião de conhecer os seus pontos de vista. A literatura é agora o seu caminho?

Muito obrigado pelo vosso convite e pela oportunidade. É verdade que a minha actual situação implica necessariamente não um afastamento mas algum distanciamento relativamente às coisas da nossa vida social e política o que não me impede de ver as coisas mas de um ângulo diferente. Escrever sempre foi uma coisa que desejei fazer mas só depois de 2008 quando entrei no Tribunal Constitucional e tive de viver um longo período de recolhimento comigo mesmo é que pude realizar esse meu desejo antigo. Não escrevo, no entanto, para fazer intervenção política embora o que escrevo vá de algum modo reflectindo o que vejo à minha volta.

 

LENGULUKA é a sua nova obra. O que motivou este título?

Desde que há anos ando aí pelas nossas estradas, da cidade e da periferia, que sempre me saltou à vista os letreiros gravados nas traseiras dos nossos milhares de candongueiros, alguns deles com ditos espirituosos, preces a Deus, as coisas mais diversas. Dando um salto para o futuro, projectando milhões de angolanos, cabo-verdianos, santomenses, moçambicanos e outros todos circulando entre Lisboa e a sua periferia, inventei uma combie azul e branca, conduzida pelo angolano Luís Sakulanda e também lhe pus um letreiro por cima da matrícula: LENGULUKA. O táxi vai ser um dos veículos que transporta o amor contado nesta crónica de um amor a grande velocidade.

 

O que pretende transmitir aos seus leitores com LENGULUKA?

Neste romance para além do condutor da combie, há um outro jovem angolano, Nelson Cangombe, já nascido em Portugal apaixonado por Teresinha, uma luso-cabo-verdiana integrada numa tradicional família oriunda de Cabo Verde. A intromissão entre os dois do português professor de Teresinha vai desencadear uma onda de ciúme que se converte numa tempestade política a alastrar perigosamente. Os chefes das comunidades em articulação com as autoridades nacionais procuram primeiro conter e depois travar sem êxito o ameaçador tsunami. É uma história do convívio multicultural a que já hoje estamos habituados mas não afeiçoados. Num futuro diferente as coisas vão-se revelar afinal muito semelhantes. O amor continua a fazer progressos mas o final ainda deixa espaço para manter a esperança. Mas para o conhecerem, o final, terão que o ler e espero que o apreciem.

 

Deixando o futuro nas páginas de LENGULUKA e voltando a terra e aos nossos dias , como encara a transição política com a ascensão de JLO e saída de JES?

Angola fez até hoje apenas uma autêntica transição política quando mudou de sistema em 1992 implantando uma democracia multipartidária, ampliando o reconhecimento dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos e aderindo à economia de mercado. O mundo tinha dado uma grande volta e Angola foi notável no aproveitamento do conflito interno que se eternizava para virar 180.º e acabar com a guerra e com o sistema. A não aceitação do resultado das eleições de 1992 atrasou a consolidação dessa transição para aquela que foi chamada de II República. É essa mesma República que com alguns sobressaltos pelo meio continuamos a consolidar.

Não existiu uma terceira República em 2012 nem uma quarta em 2017 porque não foi alterado nenhum dos elementos do paradigma criado em 1992. Todos os elementos que caracterizam o poder em Angola são exactamente os mesmos como a própria Constituição de 2010, o diz, claramente no seu Preâmbulo. Coisa diferente é a passagem de testemunho de um Presidente para outro que em 44 anos de independência Angola só presenciou uma vez. Foi no entanto e surpreendentemente para muita gente que sempre viu Angola como um país de conflitos, uma passagem de testemunho pacífica, que correu muito bem, dando lugar à criação de elevadíssimas expectativas no seio de uma massa crescente de jovens que querem melhores condições de aprendizagem e emprego. Alguma turbulência ficou, no meu modo de ver, contida dentro do próprio Partido que sempre governou Angola, sozinho ou apenas por alguns anos em unidade de reconciliação social. Expressado esse sentimento. Diferente seria se houvesse conhecimento de que o regresso a Luanda do antigo Presidente José Eduardo dos Santos tivesse sido propositadamente adiado para não estar presente no Congresso. Acho que isso não foi dito por ninguém e que eu saiba o antigo Presidente ainda se encontra no exterior esperando que volte breve e com saúde.

 

É possível existir coabitação entre o antigo PR e o actual Presidente da República? Como?

Eu acho que a coexistência de dois papas em Roma, sendo de tão diferente perfil e sensibilidade pode servir de inspiração para essa coexistência que não podendo ser fraternal e amistosa, pode ser solidária e pacífica. Imagino que Francisco visite com alguma frequência Bento XVI não para discutirem assuntos do governo que deixaram de lhe dizer respeito, mas sobre os grandes desafios que a sua Igreja enfrenta. Não tenho dúvidas que não faltariam aos dois Presidentes motivos para longas e proveitosas conversas. Tanto o antigo papa como o novo cometeram erros e para mim isso é suficiente para ter a certeza que outros erros serão inevitáveis, porque isso faz parte de qualquer governo terreno mesmo daqueles que também gozam do apoio directo do céu.

 

Como encara o combate à corrupção ao nível dos tribunais? Que mudanças se esperam?

A corrupção é como uma doença e uma doença previne-se, combate-se, contém-se, não há purgante nem discursos que acabem com ela. Ajudam, é como ouvirmos um sermão ao domingo e já nos termos esquecido do que ouvimos aí pela quarta ou quinta-feira. Á sexta-feira então nem se fala... por isso é preciso voltar ao sermão no domingo seguinte. A corrupção atinge todos os poderes porque todos eles são formados por gente como nós. Mas é verdade que uns têm mais responsabilidades que outros e o bom exemplo sempre vindo de cima é imprescindível para um combate coerente a este mal. Estou convencido que uma administração mais competente em todos os domínios mais do que através do poder judicial fará decrescer a nossa taxa de corrupção.

 

Alinha no pensamento segundo o qual o combate à corrupção é selectivo pelo facto de passar a margem dos chamados intocáveis, alguns dos quais deputados do MPLA. Isto é para Inglês ver?

Tenho ouvido e lido isso, aqui ali, é natural que o digam os que acreditam na tal transição de que falávamos há pouco. Se isto fosse como na revolução francesa, agora é que vinha aí a liberdade, a igualdade e a fraternidade mas nem JES é o Rei Luís XVI nem JL um Robespierre ou um Bonaparte. Angola deve orgulhar-se de ser um Estado de Direito e um Estado democrático pois destes dois princípios deriva não só a relevância dos direitos fundamentais como a imunidade dos nossos deputados e não só, pois de idênticas imunidades goza a generalidade dos nossos magistrados. Não devemos ter dois pesos e duas medidas mas sempre e apenas a medida da Constituição que já nos obriga a respeitar a proporcionalidade entre os direitos opostos ou entre direitos opostos e o interesse colectivo.

Contrariando o seu discurso de posse que privilegiava entre outros, atenção aos grupos de pressão, o PR não acolheu bem a crítica sobre a implementação do IVA, com um “Não gostei”, quando discursava no VII do seu partido.

 

Essa é uma demonstração clara que o PR oposto a crítica?

É possível que o Presidente não tivesse gostado da forma, ou do momento usado para essa crítica, tudo isso tem a ver com as circunstâncias não com o objecto da crítica que tinha a ver com a implementação do IVA. Que as críticas são feitas livremente e que até são ouvidas, resulta bem demonstrado pelo facto de esta implementação do IVA ter sido acerbamente criticada pelo menos por um grupo de pressão e pelo facto de o Presidente ter acolhido essa critica adiando a implementação do imposto.

 

É acertada a troca de magistrados dos tribunais superiores, ou seja, Tribunal Constitucional para Tribunal Supremo vice e versa?

O processo da escolha e nomeação dos nossos mais importantes magistrados judiciais devia por si só afastar a ideia que se insinua de um mero “trading places” com alguém mexendo os cordelinhos. O que é mais acertado é saber se as personalidades que agora ocupam esses lugares são as pessoas certas para o exercício das respectivas funções. Ora isso julga-se observando o trabalho produzido por esses dois tribunais superiores e não pela circunstância creio que irrepetível da troca de cadeiras. Aconteceu uma vez provavelmente nunca mais voltará a acontecer.

 

Há ou não separação de poderes em Angola. A nomeação de juízes pelo Presidente da República é um falso problema?

A separação de poderes estabelecida na nossa Constituição não é absoluta, ou como diz o seu artigo 106, deve respeitar o princípio da interdependência das funções de cada um dos poderes. Os três poderes não vivem isolados têm pontos de contacto de intersecção existem espaços de coordenação entre eles.


Também a nomeação de alguns Juízes pelo Presidente da República não quer dizer que eles sejam necessariamente escolhas suas ou suas escolhas exclusivas. Dependendo dos casos há um processo mais ou menos complexo de escolha que se inicia nas instituições onde as candidaturas se originam. Se o Presidente não nomeia um juiz que ele não quer não significa que o juiz que ele nomeia seja a sua primeira ou mesmo segunda escolha. Contudo, é o Presidente que fecha o processo, mas o processo que leva à nomeação também é importante.

 

A actual Constituição ainda se adequa as aspirações das populações e da nação angolana? Não estará chegada hora de se reverem os poderes no PR na CR e a eleição directa do Presidente da República?

As grandes aspirações em 1992 eram a democracia electiva e pluralista, a paz e finalmente o desenvolvimento. A Lei Constitucional deu-lhes corpo de letra mas se as coisas não correram como se esperava não foi com certeza por causa da lei fundamental. A Constituição de 2010 veio ampliar todas e essas expectativas incluindo os direitos sociais como o direito ao trabalho e à habitação. Não será uma nova Constituição que dará a todos os angolanos o que ainda hoje precisam e quem sou eu para estar aqui a enumerar o que todos sabem. Mas não será também um Presidente da República ainda com mais poderes que poderá realizar o sonho dos angolanos sem a ajuda diária e constantes dos sonhadores. Sozinho nunca nenhum Presidente o conseguirá, indistintamente de ser um independente dos Partidos ou da simples circunstância de ter sido eleito em separado da eleição dos Deputados.

 

Como foi concebida a Reforma da Justiça e do Direito, o que deverá melhorar na Justiça angolana?

A reforma em curso abrange não apenas os textos como as pessoas. Trata-se de uma reforma que já começara a ser estudada e preparada antes de eu ingressar no Tribunal Constitucional, já lá vão 11 anos. Este é um ano em que passos significativos foram dados e o ano judicial de 2019 que abriu no Lobito sob a presidência de JL é digno de realce.


A criação agora dos tribunais de comarca e dos tribunais da relação só peca porque ainda serão precisos vários anos, talvez apenas mais onze, para ter todos os lugares providos com magistrados.