Luanda - “Não somos responsáveis pelas emoções, mas sim do que fazemos com elas” - Jorge Bucay

Fonte: Club-k.net

O anúncio da privatização da Sonangol, gerou perplexidade em certos sectores da nossa sociedade.  Embora não tenha causado a mesma indignação colectiva que ocorreu com a notícia da construção do Bairro dos Ministérios, cuja pressão social contra, forçou a sua suspensão por parte do Executivo, nem teve o nível de reprovação social, havida com a compra de equipamentos para o Ginásio dos Deputados. Porém, na imprensa em geral e nas redes sociais, encontramos reações negativas, a respeito da alienação da maior empresa pública angolana.



Talvez porque a “doença “ da Sonangol já tivesse sido, suficientemente exposta no passado, ou porque muito de nós, percebemos que esta “galinha já não dá ovos de ouro” e, os poucos que dá, não chegam à mesa de todos. Ou é mesmo indiferença de muitos, outros estão perdidos no afã de suprir as necessidades do dia-dia, e esta notícia passou-lhes ao lado. Outras razões podem ser acrescidas, para justificar a falta de “comoção nacional”, pela possível entrega aos privados, do símbolo da nossa independência económica. Talvez a crença que o país já foi “vendido”, ou que tanto faz se a Sonangol fica com o Estado ou com qualquer privado, seja nacional ou estrangeiro, “não estamos nem aí”, como dizem os brasileiros. Há ainda o argumento de “vamos ver para crer”, ou, pura e simplesmente, não chegou aos ouvidos de muitos, por distração, ou porque não percebem se quer o que se passa.

Como podemos verificar, há um número infindável de razões que podem explicar a reação, de certo modo, “pacífica” da privatização da Sonangol e das restantes empresas públicas emblemáticas de Angola, como são os casos da Taag e da Endiama.


Todavia, há uma reação contra a privatização da Sonangol que me chamou a atenção e, é sobre esta, que vou demorar um pouco do meu tempo e atenção - a corrente que vai contra a privatização da Sonangol, com o argumento que está em causa a nossa soberania económica e que os recursos naturais pertencem ao povo.



Esta tese que é classificada por “nacionalismo irracional”. Esse “movimento” ocorre muito em países em que tiveram situações análogas à da Sonangol. Quando o Estado pretende, por razões especificas de tesouraria, ou por adesão às políticas neoliberais, ou pelas imposições das instituições de Bretton Woods ( FMI e BM), alienar empresas ligadas aos recursos naturais, surgem, com frequência, manifestações nacionalistas irracionais contra estas privatizações. O nacionalismo irracional caracteriza-se pelos argumentos irracionais: alegam que os recursos naturais são da nação e não podem ser colocados nas mãos de privados, porque estes visam apenas o lucro. É apelidado de irracional este nacionalismo, porque a base da sua argumentação, não tem qualquer sustentação científica, nem mesmo racional, baseia-se em emoções e num sentimento de pertença, que nega ou nem se quer enxergar o óbvio.

 

O nacionalismo irracional, traduz -se no amor e orgulho das riquezas da nação, pura e simplesmente, e na crença que, estando estas sob gestão pública, estão entregues ao povo soberano, e se for transferido para os privados, perde-se a soberania. Os militantes desta corrente, possuem a visão romântica de que as riquezas naturais traduzem-se em riqueza social ou bem-estar das populações, com a gestão pública. O nacionalismo irracional não discute o mérito da privatização em concreto, bastando a simples ideia de alienação da empresa pública de gestão dos recursos naturais, que é logo rejeitada, como acontece com um bebé, quando lhe trocam a amamentação da mãe, por uma mamadeira artificial ou por uma mãe substituta. O bebé quer a sua mãe biológica e pronto. Não lhe interessa se a mãe morreu, se não tem leite, se até, simplesmente, rejeitou-lhe ou abrandou-lhe. O bebé chora pela mãe, se ela volta, a criança cala-se, com a simples presença dos seios da mãe. Se a mãe volta a deixar de ter leite, ou vai-se embora, a criança volta a chorar e lá reinicia o ciclo ausência-choro e presença silêncio-satisfação.

 

O nacionalismo irracional obedece à mesma lógica, é um “estágio infantil do comportamento humano de grupo”, que move milhões de pessoas. Liderado, amiúde, por políticos hábeis, que não comungam de políticas neoliberais ou, por simples manipulação política, usam essa “ideologia de massas “ e apelam às emoções das pessoas para estarem contra práticas neoliberais. Esta manipulação política, protesta sem discutir o mérito da causa. Por exemplo, não levam em conta que, a transferência das empresas públicas para o privado, não implica perda de soberania, na medida em os recursos naturais continuam a pertencer ao Estado. Aliás, é uma falácia, uma vez que há outras empresas privadas no sector, explorando petróleo e nunca foi alegada a perda da soberania. E quem cai nesta manipulação, não lhe interessa saber, se a empresa pública está falida, se é mal gerida, se a gestão do privado vai gerar ganhos para empresa e para o país e, até se a empresa pública, já está sob gestão corporativa privada. O que interessa para o nacionalismo irracional, é saber se a titularidade da empresa gestora dos recursos naturais, é pública. Se a transferência ao privado, trouxer mais valias económicas, mais investimentos, mais emprego, melhores salários, maior arrecadação de receitas fiscais para o Estado, nada disso interessa aos fanáticos do nacionalismo irracional. Os benefícios para o Estado e bem-estar da população da gestão privada dos recursos naturais do país, não são cabíveis na equação dos nacionalistas irracionais.

 

O nacionalismo irracional está por aí, em artigos de jornais, em entrevistas nas rádios, nos debates televisivos, nos discursos políticos, em artigos de opinião especializada, jornalística ou académica, nas mensagens rápidas e apressadas nas redes sociais. E não pensem que o nacionalismo irracional é privativo de gente mal informada. Este contagia todas as franjas da sociedade: ricos, pobres, intelectuais e iletrados, quando “infectados”, comungam da mesma fé, como se de uma religião se tratasse. O nacionalismo irracional é, por vezes, promovido por intelectuais, que manipulam a informação e, de forma demagógica, vendem aos incautos, um evangelho contra a privatização de empresas estratégicas de recursos naturais, como se o Estado estivesse a vender a “alma ao diabo”. E muitos aderem, cegamente, a esses “cultos “ ou “missas” e, deixam-se seduzir pelas homilias pregadas. O sermão aqui apela à emoção, ao amor, às riquezas naturais, ao patriotismo e outros valores, que mexem com a alma e não com o intelecto. E como na religião, o nacionalismo irracional ganha fiéis bem doutrinados que vão envangelizando os outros. Com o aumento continuado de número de membros, pode-se chegar ao ponto de derrubar governos ou sancionar partidos em eleições.



A privatização da Sonangol é um assunto sério e não deve ser discutido na base do nacionalismo irracional. Deve-se colocar a Sonangol num “divã”: saber do diagnóstico completo para depois encontrar-se a cura ou o tratamento adequado.


Em boa verdade, é pública, parte deste diagnóstico. Num passado, não muito distante, foi tornado público, a difícil situação financeira do grupo Sonangol. Por isso, não deve ser novidade para ninguém que as contas da empresa, não são recomendáveis. Percebo que houve falência técnica e má gestão. Todos assistimos às mudanças sucessivas, ocorridas na direção da companhia nos últimos anos, com vista a sanear as contas da empresa e proceder a sua restruturação ( processo em curso). Se a solução é alienar parte ou toda a companhia, deve ser discutido com racionalidade. A proposta do Executivo, é moderada e vai no sentido do Estado não perder o controlo completo da companhia. Por isso, há aqui um freio, para o ímpeto emotivo habitual, dos nacionalistas irracionais. E mais: o grupo Sonangol não vai ser todo privatizado, há importantes subsidiárias e participadas que continuarão na esfera juridica do Estado, sem qualquer alteração, tais como a Sonangol Pesquisa e Produção, Sonangol Shipping, Sonip, Refinaria de Luanda, Sonagás, Angola LNG e Galp.

 

Há, contudo, um outro aspecto da privatização da Sonangol e de outras empresas estratégicas, que tem sido pouco abordado - a legitimidade. Embora a nova Lei de Bases das Privatizações, no seu artigo 6º, concede ao Titular do Poder Executivo, a competência de aprovar os programas de privatizações, porém, quem autorizou a Assembleia Nacional para conceder este poder ao Titular do Poder Executivo? O facto de não constar no Programa do MPLA, caucionado nas eleições gerais de 2017, este mega-programa de Privatizações, não torna o parlamento ilegítimo para autorizar o Executivo a aprovar o PROPRIV ? Será que o Executivo não deveria ter seguido o exemplo de países com democracia consolidada, que usam o referendo, quando se pretende tomar medidas supervenientes aos programas eleitorais, por causa da legitimidade?

Entre nós, o referendo nunca foi usado por, alegadamente, ser muito dispendioso e por não existir uma estrutura de escrutínio permanente. Em cada eleição geral, cria-se novas condições. Não sendo aqui a sede própria para abordar este tema, vale apenas questionar, se a não utilização do referendo, torna o PROPRIV um “programa sem atualização popular “ e constitui mesmo, uma “fraude política eleitoral”, pois estão a ser tomadas medidas de grande impacto social, que não foram sufragadas nas eleições, nem numa consulta democrática (referendo) ?

 

Outra questão diversa e importante, é saber se não há a possibilidade das acções da Sonangol, caírem nas mãos de uma oligarquia, que se quer combater ou serem colocadas, de bandeja, nas mãos de um nova oligarquia, que se quer formar? Essa dúvida já não é irracional. Aqui, a discussão deve centrar-se nos mecanismos legais, que impeçam que tais eventos ocorram.



Por último, alega-se ainda que a classe empresarial nacional, não tem capacidade financeira para dar conta do PROPRIV, e, por isso, temos assistido ao aceno sedutor do Executivo, ao capital externo. Neste capítulo, a preocupação vai, apenas, na possível “sangria “que o repatriamento de capitais, resultante dos investimentos externos na compra das empresas do Estado, vai provocar. O capital estrangeiro, vai aumentar a pressão nos cambias e agravar a dependência económica que Angola tem do exterior. Relego para segundo plano, questões ligadas a supostos perigos para a nossa soberania, com a entrada massiva do capital estrangeiro. Esta suposta perda de soberania é, facilmente, resolvida, com os instrumentos legais existentes e com mecanismo de “ golden shares”, usual nestes casos.


Com isso, não quero discordar ou dar a minha bênção, à privatização da Sonangol, nem da Endiama, por exemplo. Estou, apenas, contra discussões irracionais, porque para concordar ou discordar, preciso de mais informações. Não sou contra a medida em abstrato, mas em concreto, posso rejeitar, não por irracionalidade, mas por razões objectivas. Recordando o que nos disse, e bem, Albert Einstein, “ o irracional respeito à autoridade é o maior inimigo da verdade”. E mais não digo...