Luanda - Temos o Professor David Matsinhe (Universidade de Carleton, Canadá), e responsável pelos países de Língua Portuguesa, ao nível do escritório da Amnistia Internacional, sediado na África do Sul. David esteve envolvido na coordenação da “análise sobre a situação da seca e da fome no município do Gambos”, província da Huíla. Analisaram como a questão da apropriação das terras locais tem contribuído para o aprofundamento da miséria e da fome naquela região.

 

Fonte: Observatório da Imprensa


Domingos da Cruz - Qual é a síntese que se pode fazer do relatório publicado recentemente?
David Matsinhe – Fala-se de estiagem como causa da fome e desnutrição nos Gambos ou no Sul de Angola. O que nós verificamos não é bem assim, porque a estiagem não é nova na naquela zona. É um fenómeno natural cíclico, mas só desta vez é que há um problema grave e profundo de fome e desnutrição, e porquê? A única diferença entre os ciclos de estiagem e o seu impacto actualmente é a falta de terra; é a ocupação da terra dos pastores naquelas zonas, porque no passado quando eles tinham acesso às suas terras, às suas zonas de pastos, eles conseguiam superar o impacto da estiagem. Mas desta vez, a estiagem chegou, e eles já não têm as suas terras para pastar o gado e sustentarem as suas vidas. O que se pode esperar de uma situação dessas? Essa é a constatação do nosso estudo: 67% da Tunda dos Gambos, Vale dos Kimbuelela, foram ocupados pelos fazendeiros que praticamente não fazem nada. Estas são as melhores terras de pastagem que existem lá, e os pastores já não têm acesso a elas. O que é que esperamos quando assim ocorre? O que vemos é exactamente o efeito desta ocupação. Não é exactamente a estiagem.


É verdade que no passado tinham acesso à terra, e portanto, administravam e permitia enfrentar os períodos de seca com menor dificuldade porque tinham conhecimento tradicional e sabiam como sobreviver. Mas do ponto de vista daquilo que é são as exigências actuais sobre Direitos Humanos, faz sentido ter acesso somente à terra? Vamos supor que não houvesse problema em relação a terra mas, há falta de outros serviços básicos como educação, saúde e por ai além. Não acha que mesmo assim não seria suficiente somente o acesso à terra?
A verdade é que não há disponibilidade de serviços que o governo devia providenciar naquelas zonas. Por exemplo, não há acesso à escola, a transporte, à saúde, não há serviços comerciais disponíveis naquela zona, não há telecomunicações, não há vias de acesso. Tudo isso são os governos que criam. Não existe nada disso. Nestas condições, o único recurso que as pessoas têm para sustentar as suas vidas é a terra. E é a terra que lhes permite o acesso à água, é a terra que lhes permite o acesso a saúde mediante as plantas medicinais, o acesso a pastagem, alimentação, e mesmo o transporte porque eles dizem que “sem terra, sem gado a nossa vida praticamente não existe.” Com a falta dos serviços do governo, eles recorrem a terra, porque a interacção com a terra e o ecossistema local, com os animais é o que lhes garante a vida. Não faz sentido que um governo que não fornece nenhum serviço, ainda lhes retira o pouco que eles têm: a terra.

 

David, diante deste cenário, seria exagerado dizer que verdadeiramente o Estado não existe? De facto este povo está abandonado a sua sorte?
Segundo a sociedade civil em Angola, é o caso da ACC que trabalha naquela zona, 90% da população daquela região não está registada!
Domingos Da Cruz - Significa que nem sequer têm direito a cidadania mesmo tendo nascido em Angola, porque sem um registo, legalmente não são cidadãos.
David Matsinhe – Exactamente! E quem deve registar é o governo, e com base no registo o governo toma decisões políticas para providenciar todo e qualquer tipo de serviços. Esta situação questiona mesmo a presença do Estado naquela zona. O interessante e curioso é: quando chega o ciclo eleitoral, o governo tem capacidade de emitir documentos, cartão eleitoral, mas o que é curioso é que já não é possível emitir documento de identificação para as pessoas como cidadãos de Angola. Este dado também foi confirmado pela sociedade civil local.
Se você não tem identificação, praticamente você não existe para questões administrativas, questões de cidadania. Esses são os direitos que estão a ser negados a população daquela zona. A sociedade civil também fala que mais de 90% da população daquela zona é analfabeta. Isso não e aceitável num pais como Angola com tanta riqueza, com tantos recursos naturais. Isso não é aceitável!


David, houve alguma reacção dos fazendeiros logo após a publicação do relatório?
Bem, nós não tivemos o acesso directo a reacção dos fazendeiros. Mas eles negam. Alegam que a Amnistia Internacional publicou falsidades. Nós desafiamos os fazendeiros para que eles publiquem um estudo com evidências de que eles não ocuparam àquelas terras ilegalmente; com evidências de que eles seguiram todos os trâmites legais para terem acesso àquelas terras. Este é o nosso desafio aos fazendeiros: que publiquem evidências contraditórias do que nós publicamos no relatório.


Qual foi a reacção das autoridades oficiais em Angola?
Nós tivemos um encontro com o Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos, precisamente com a Secretária de Estado para os Direitos Humanos. Um encontro produtivo do nosso ponto de vista porque nós fizemos a apresentação do nosso estudo, da metodologias que usamos, os resultados e as constatações. Eles confirmaram que de facto existe a problemática da legalidade dos títulos de posse de terra naquela zona. É precária, mas não é só naquela zona. Também falaram que existem problemas das autoridades tradicionais que vendem as terras sem o consentimento nem o conhecimento dos membros das comunidades.
Isso é um problema que o Ministério da Justiça reconheceu que existe, e estão a envidar esforços para reverter a situação. O Ministério da Justiça não desafia e nem pôs em causa a nossa apresentação. Pelo contrário, eles fundamentaram ainda mais as nossas constatações e durante o encontro da sociedade civil estava lá presente o Deputado da Assembleia Nacional pela parte do MPLA, representante da província do Namibe, e que conhece muito bem o problema que os pastores naquela zona enfrentam. Também reconheceu, dizendo que “nós não estamos em posição de disputar os factos apresentados neste relatório. É verdade.” Pareceu-nos que iria levar a mensagem aos seus colegas na Assembleia Nacional.


Hoje não basta esse reconhecimento. É necessário que se tome as providências cabíeis com vista a ultrapassar o problema.Quanto maior for o grau de miséria de um povo, isso também tem influencia no exercício da liberdade de expressão e consequentemente no aprofundamento ou não da democracia de um país?
Para mim, o que nós temos verificado, pelo menos na África Austral, até mesmo no continente é que a falta de respeito aos direitos económicos, sociais e culturais está directamente ligado aos direitos políticos e civis. O que acontece é que as pessoas tentam protestar contra a sua miséria económica e social e quando o fazem são imediatamente reprimidas. Para mim, não vejo nenhuma dicotomia, se posso colocar a questão desta maneira, entre estes dois tipos de direitos. Neste continente está evidente que os dois estão directamente ligados, em particular quando as pessoas tentam expressar as suas insatisfações com a situação económica, social e cultural. Por exemplo, quando a juventude em Angola ou em Moçambique protesta contra o desemprego, contra a má administração dos recursos, vem a repressão contra os direitos políticos e civis. Essa é a minha visão. Em termos de quanto maior for o acesso aos direitos económicos políticos, isso significa que temos mais ou menos liberdade de expressão, para mim os dois estão directamente ligados. E temos visto quando a juventude ou outras pessoas se manifestam contra a violação dos direitos económicos e sociais, há sempre repressão.

 

Voltando aos Gambos, qual será o passo seguinte da parte da Amnistia? Termina por aqui o processo ou há outras acções a seguir?
Bem, o Estado angolano fez algumas promessas sobre o registo das terras comunitárias e nós vamos fazer a monitoria em parceria com a sociedade civil angolana. Não é suficiente aceitar as promessas que o governo faz. Temos que exigir que o governo cumpra com as suas promessas. Este é o trabalho que vamos fazer e vamos continuar a trabalhar com a sociedade civil angolana para aprofundarmos esta questão do acesso a terra porque é central. Vamos continuar com o trabalho de advocacia, vamos continuar a fazer campanhas, dentro e fora de Angola sobre esta questão. Esse é o trabalho que ainda virá.


Agradeço pela disponibilidade. Estivemos em conversa com David Matsinhe, especialista sobre os países de língua portuguesa da Amnistia Internacional, baseado na África do Sul e também professor na Universidade de Carleton, Canadá. Abordamos o problema do acesso a terra na região dos Gambos, a miséria e sua relação com o exercício da cidadania. E finalmente o David comentou o tópico sobre a relação entre direitos civis, políticos e o exercício da cidadania. 
Muito obrigado.