Luanda - A corrupção eleitoral é e será sempre ilegal. Ao longo dos anos, os Deputados do MPLA, incentivaram, apoiaram e aprovaram, directa e indirectamente, diversos casos de improbidade e corrupção praticados pela alta hierarquia do poder do Estado. O caso “Manico” é apenas mais um que os angolanos devem juntar ao Luanda Leaks para provar que nenhuma maioria parlamentar pode tornar legal a corrupção eleitoral porque ela será sempre ilegal.

Fonte: NJ

Os primeiros casos de corrupção envolvendo o Dr. Manuel Pereira da Silva de que tive conhecimento ocorreram nas eleições de 2012 e 2017, quando, na sua qualidade de Presidente da Comissão Provincial Eleitoral de Luanda, o Dr. Manico não procedeu à execução dos actos de apuramento provincial dos resultados eleitorais na província de Luanda com base nos originais das actas das operações eleitorais, com início “logo após o encerramento da votação” como estabelecem os artigos 123.o a 130.o da Lei Orgânica Sobre as Eleições Gerais (Lei n.o 36/11, de 21 de Dezembro).


A Lei manda, igualmente, registar em acta as reclamações apresentadas e as decisões que sobre elas tenham sido tomadas. Em 2012, por exemplo, uma colega sua, a Dra. Maria Luísa Andrade, hoje Deputada à Assembleia Nacional, apresentou uma reclamação escrita sobre a conduta ilegal do Presidente da reunião. O Dr. Manico violou a lei, recusando-se a receber, debater e registar em acta a reclamação. Escreveu: “Não houve reclamações”.


Além do seu envolvimento nos actos de improbidade e de corrupção eleitoral, o Dr. Manico também “terá metido a mão” indevidamente nos dinheiros alocados à instituição. Foi alvo de duas auditorias ordenadas pelo Presidente da CNE, uma em 2013 e outra em 2018. O que agora veio a público representa, portanto, “reincidência”. Ao avaliar se o candidato Manuel Pereira da Silva satisfaz ou não os requisitos para ser Presidente da CNE, o Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) errou porque não avaliou a sua idoneidade moral e cívica à luz desses actos registados e comprovados de corrupção.


Enganam-se aqueles que, pretendendo encobrir a falta de idoneidade do candidato corruptível e os erros e omissões do CSMJ, vêm a público atribuir à Assembleia Nacional um papel passivo, decorativo ou meramente instrumental. É um equívoco afirmar que “a Assembleia Nacional não pode contrariar a decisão do CSMJ. Tem de respeitar a decisão dos outros órgãos....A sua função é apenas conferir posse”. Estão completamente enganados porque não é esse o sentido constitucional das competências daquele órgão de soberania.


Porque é que o legislador ordinário não atribuiu ao Conselho Superior da Magistratura Judicial a competência de conferir posse ao candidato que escolheu? Porquê envolver a Assembleia Nacional? Qual é a função constitucional atribuída à Assembleia Nacional, que só ela pode exercer, e que está subjacente ao acto de conferir posse ao Presidente da CNE?


Nos regimes ditatoriais (não importa se o ditador é uma pessoa física ou um Partido), os órgãos do Estado podem exercer as suas competências sem nenhum controlo da parte de outros órgãos. A vontade do ditador é que determina a “legalidade” dos actos do Estado. Já nos Estados constitucionais, nenhum poder e nenhuma competência podem existir sem os correspondentes mecanismos de controlo e limitação. Foi este o fundamento doutrinário para o legislador constituinte atribuir à Assembleia Nacional funções políticas de controlo, para velar e fiscalizar o cumprimento da lei por outros órgãos do Estado, limitando, assim, os seus poderes.

Por exemplo, a Constituição atribui ao Presidente da República a competência para arrecadar e utilizar os fundos públicos e contrair empréstimos, mas tem de ser autorizado e fiscalizado pela Assembleia Nacional. A Assembleia Nacional pode ainda suspender, no todo ou em parte, a vigência de decretos legislativos produzidos pelo Presidente da República. E mais: se o Presidente da República cometer crimes, como o crime traição à Pátria, espionagem, suborno, peculato ou corrupção, cabe também à Assembleia Nacional, e não à PGR, tomar a iniciativa de organizar os respectivos processos de acusação.


Se a Assembleia Nacional tem poderes para suspender actos legislativos do PR e responsabilizar criminalmente o Presidente da República, não tem poderes para suspender a eficácia de actos ilegais do CSMJ e responsabilizar o Dr. Manico por actos de corrupção?


A Constituição confere também à Assembleia Nacional poderes para eleger juízes para o Tribunal Constitucional, juristas para o Conselho Superior da Magistratura Judicial, o Provedor de Justiça, eleger e conferir posse aos membros da CNE e de outros órgãos cuja designação seja cometida à Assembleia Nacional pela lei ordinária. Todas as entidades elegíveis devem ser eleitas “nos termos da lei”. Se uma pessoa for eleita “fora” dos termos da lei, a Constituição não autoriza a Assembleia Nacional a lhe conferir posse. Pelo contrário: obriga-a a impugnar tal acto.


De facto, a CRA atribui à Assembleia Nacional amplos poderes de controlo e fiscalização da aplicação da Constituição e da boa execução das leis por todos os órgãos da Administração em geral. Tais poderes são exercidos dos mais diversos modos e através de uma multiplicidade de instrumentos.


Ao estabelecer que o Presidente da CNE seja escolhido pelo CSMJ mas tome posse perante o Plenário da Assembleia Nacional, a Assembleia Nacional criou a oportunidade de velar, ela própria, pela boa execução da Lei Orgânica Sobre a Organização e Funcionamento da CNE pelo CSMJ. Estabeleceu, assim, um instrumento de controlo para se assegurar ex ante que aquele órgão não soberano que administra o desempenho dos juízes observe sempre nas suas escolhas os requisitos “idoneidade cívica e moral” e “probidade” que ela estabeleceu para orientar os Partidos Políticos e o CSMJ na designação dos membros da Comissão Nacional Eleitoral, a todos os níveis (Artigos 7.o, 21.o, 34.o e 37.o da Lei n.o 12/12).


No nosso quadro jurídico-constitucional, “conferir posse” ao Presidente da Comissão Nacional Eleitoral constitui, para a Assembleia Nacional, não um simples acto instrumental ou acessório, mas um verdadeiro acto de controlo e fiscalização ex ante da boa execução das leis, sujeito à deliberação do Plenário. Por essa razão, o acto de tomada de posse do Dr. Manico foi precedido de um processo deliberativo que envolveu um longo e informado debate à volta de um projecto de Resolução cuja aprovação ou rejeição confirmaria ou não a decisão ilegal do CSMJ.


Curiosamente, embora já se soubesse que o processo decisório do CSMJ não avaliou os critérios “idoneidade” e “probidade” do candidato, no dia da tomada de posse os Deputados tomaram conhecimento de um dado novo: uma carta endereçada pelo Dr. André da Silva Neto, Presidente da Comissão Nacional Eleitoral e então superior hierárquico do Dr. Manico, cujo conteúdo confirma a falta de idoneidade do candidato para o cargo. Não importavam mais as reclamações anteriores, pendentes ou já resolvidas por outros órgãos. A partir daquele momento, os Deputados deixaram de ter legitimidade para conferir posse ao Dr. Manuel Pereira das Silva porque ficara provado, ali mesmo na Assembleia, que o mesmo não havia sido eleito “nos termos da lei”.

Importa recordar ainda que é também à Assembleia Nacional que o legislador constituinte atribuiu a competência de eleger e conferir posse aos demais 16 membros que compõem o órgão máximo da CNE, o Plenário, sendo também a ela que a CNE deve prestar contas, remetendo-lhe anualmente o seu relatório de actividades. Por maioria de razão, o membro do Plenário da CNE que ela não elege – e que actua como seu único gestor orçamental - não deve escapar ao seu “controlo” ex ante.


Repito: a Assembleia Nacional só tem legitimidade para conferir posse ao Presidente da CNE ou a qualquer outro membro do seu Plenário se estes forem designados ou eleitos “nos termos da lei”.


Não tendo o Dr. Manico sido “eleito nos termos da lei” pelo CSMJ, os 111 Deputados que votaram a favor da corrupção eleitoral e da improbidade, praticaram um acto inválido, violador da Constituição e da Lei. Podem até constituir 50% mais um (a maioria, portanto) dos 220 representantes do povo “eleitos pela CNE” em 2017, mas não exprimiram nem representaram o sentimento geral nem a vontade soberana e actual do povo angolano. Os 111 Deputados praticaram um acto nulo, porque “as leis, os tratados e os demais actos do Estado, dos órgãos do poder local e dos entes públicos em geral só são válidos se forem conformes à Constituição”. De facto, os 111 votos a favor da corrupção no Parlamento são nulos, porque nenhuma maioria parlamentar pode tornar legal o que é ilegal.


A forma mais eficaz de chamarmos a atenção dos angolanos para tamanha gravidade foi aquele acto de protesto dramático, o abandono da sala, que protagonizamos em defesa da Constituição e da legalidade.

Mihaela Webba