Lisboa  - Foi a primeira mulher africana a pilotar o imponente Boeing 777-300, o maior avião bimotor do mundo. Recusa o papel de heroína - “apenas faço o meu trabalho” - mas sabe que é um exemplo para as mulheres angolanas. Para toda a gente.

Fonte: Público

Quem ouve Alexandra Lima pode pensar que o seu percurso foi fácil, tal a simpatia e leveza com que fala, mas não foi. “Houve fases em que manter a minha carreia foi uma luta titânica. Porque quando comecei era muito nova, porque sou mulher e porque fui e sou mãe. Tinha que ficar muito tempo ausente, fazer inúmeras viagens e sem ajuda era impossível. E eu tive muita, felizmente. Da minha mãe, da minha avó... houve muita gente que me ajudou”.

 

Agradecer o trabalho e a ajuda dos outros é sempre um bom principio, mas comecemos precisamente por aí, pelo início como convém a qualquer história. Se é verdade que está no mundo da aviação há quase 38 anos (tem 55), o seu começo de vida profissional apontava para algo bem mais terreno: o ensino. “Tinha apenas 17 anos, frequentava o curso de pedagogia no Instituto Normal de Educação, em Luanda, mas aquilo não tinha muito a ver comigo”. Podia ter ficado por ali, como tanta gente, que por necessidade ou comodismo é incapaz de mudar de vida ou direcção, mas não o fez. Inscreveu-se num curso para comissários de bordos e, “ainda que não soubesse ao certo ao que ia e se era aquilo que queria”, rapidamente percebeu que tinha feito a escolha certa. “Quando fiz 18 anos já estava na TAAG, de onde nunca mais saí”.

Houve fases em que manter a minha carreia foi uma luta titânica. Porque quando comecei era muito nova, porque sou mulher e porque fui e sou mãe.


Nunca mais deixaria a companhia nem o mundo da aviação, se bem que ainda não tinha encontrado a rota certa. Apenas três anos depois de se ter estabelecido como assistente de bordo, inscreveu-se num novo curso, desta feita para piloto. Era um passo enorme - além disso o curso teria lugar bem longe de casa, na ex-Jugoslávia. Ainda assim, estava disposta a arriscar. “Há uma certa inquietação. Sempre fez parte da minha personalidade”, admite.

Dos livros e simuladores de voo até aos comandos de um avião (numa primeira fase, apenas de voos domésticos) foi um passo. “Fui co-piloto durante cerca de duas décadas. O país estava em guerra civil, a companhia tinha dificuldades em crescer, por isso era difícil evoluir na carreira”. Limitações e condicionantes que faz questão de não esconder e que a formaram como piloto e como pessoa.

A voz fica ligeiramente embargada quando fala de muitos dos voos domésticos que faziam nessa altura, nos anos 80 e 90. As pessoas queriam fugir ou voltar às suas casas, havia situações muito difíceis e constrangedoras. Saíamos com o coração nas mãos. Tivemos várias descidas em espiral e voos que afectavam a nossa saúde. Por outro lado, acabou por ser uma honra, um orgulho e extremamente enriquecedor ter feito parte disto tudo.”


“O nosso escritório muda todos os dias”

Angola mudou, a companhia cresceu exponencialmente nas duas últimas décadas - com o aumento de ligações nacionais e internacionais e uma grande renovação da sua frota - e Alexandra cresceu com ela. Há cerca de dez anos ou um pouco mais - “talvez doze, treze ou quinze, não sou muito boa com datas” - e após vários voos intercontinentais em aeronaves de grande porte passou, finalmente, a comandante.

E não fez a coisa por menos: depois de mais um curso, desta feita nos Estados Unidos, nas instalações da Boeing - porque “no mundo da aviação temos que estar sempre a aprender e evoluir” -, ficou aos comandos do gigante Boeing 777-300, ainda hoje o maior bimotor do mundo, com capacidade para transportar quase 300 passageiros. “É um avião que temos de tratar com a maior segurança e responsabilidade, mas é também um modelo fascinante. O conforto do passageiro, a tecnologia e os sistemas de navegação… A aviação nos últimos 30 anos evoluiu de uma forma meteórica, não tem nada a ver com a altura em que comecei”.


É mãe de dois filhos e avó de um rapaz


Mais uma vez a voz muda. Quase quatro décadas depois, o encantamento ainda não  desapareceu. “Costumamos dizer que o nosso escritório muda todos os dias. Todos os dias tem uma fotografia diferente, uma paisagem diferente, pessoas diferentes e cada voo é um voo. Tenho momentos que nunca esquecerei. Muitos!”. Não hesita, contudo, em destacar alguns deles. As chegadas a Salvador da Bahía ou ao Rio de Janeiro, por exemplo, a Cidade do Cabo, a rota para a China, sobrevoar os Himalaias, que é “qualquer coisa impressionante”, os Alpes, especialmente no Verão de 2006, “quando Angola foi participar no Mundial da Alemanha, o único mundial de futebol em que participou. E o Porto. Adoro o Porto, fico contente sempre que voo para lá”.

Se é verdade que o encantamento pela aviação se mantém vivo, o mesmo se pode dizer pelas viagens. Mais do que um trabalho, as viagens são um prazer e aproveita sempre para conhecer os destinos para onde voa. “O que mais detesto é o quarto de hotel” diz, soltando uma gargalhada. “Durmo o quanto baste, que o descanso é muito importante na minha profissão, depois pego na roupa de passeio e vou pela rua fora a conhecer o mundo. E sempre que tenho possibilidade vou de férias, se possível para uma ilha. Levo três ou quatro bons livros - gosto muito de ler e nos períodos de trabalho tenho pouco tempo - ponho a minha música e faço o que me apetece. De vez em quando é bom estarmos apenas sozinhos, até porque agora os meus filhos já não querem tanto viajar comigo”.

Não é um lamento - “é a vida!” -, até porque sempre fez questão de “andar com eles atrás”. Avó há dois anos e meio (os filhos têm 24 e 28 anos), levava-os muitas vezes consigo. “Sou uma privilegiada. Com a companhia deles conheci o mundo de uma forma mais bonita. Tinha reunidas uma série de coisas que me davam prazer: o trabalho que amo e os filhos que idolatro, o que só aumentava a minha sede de conhecer”.


Bom dia, senhoras e senhores passageiros...

Quantas vezes se ouve a voz de uma mulher aos comandos de um avião comercial? Poucas, muito poucas. É inevitável terminarmos por onde começámos: pelo facto de a Alexandra ser mulher. Se na infância e juventude assume que tinha algumas características de “maria-rapaz”, declara, sem rodeios, que sempre foi uma mulher muito feminina, “vaidosa”, sem necessidade de adaptar ou “masculinizar” o seu comportamento num mundo que ainda continua a estar muito ligado aos homens.

Além da difícil gestão da família, Alexandra confessa que teve que enfrentar algum machismo - “o homem africano ainda é muito machista e há 30 anos era muito pior” -, mas faz questão de realçar que sempre sentiu mais apoio do que entraves e mais críticas do que elogios. “Ainda hoje, não há voo em que não venham ter comigo a dizer que adoram viajar comigo, dar um abraço, um beijo, tirar uma fotografia. O meu sentimento é, sobretudo, de agradecimento, de realização”.

É por tudo isto que, sempre que pode e lhe pedem, não enjeita a possibilidade de dar uma aula ou falar perante uma plateia, mais ainda se for uma plateia constituída por jovens do seu país. “Sou uma pessoa um bocado tímida, mas sempre que alguém me pede para dar uma palestra, conversar com as pessoas acerca desta luta diária, participo com muito prazer. Quero incentivar a juventude do meu país, porque em Angola e em África precisamos de gente que estimule a lutar e a puxar a vida para cima”. É que de sonhos e grandes voos percebe ela.