Luanda - Saltou-me à vista a inusitada, frenética e clamorosa (não recomendável) polémica desencadeada nas redes sociais sobre o natural e legal processo de jubilação do Dr. Manuel da Costa Aragão enquanto Juiz Conselheiro do Tribunal Supremo. No entanto, o assunto não teria tomado contornos obtusos não fosse a tremenda confusão, mal-intencionada, que alguns protagonistas encapuzados estão a fazer ligando a atribuição, pelo Plenário do Conselho Superior da Magistratura Judicial, do estatuto de “Juiz Conselheiro Jubilado” ao Dr. Manuel da Costa Aragão com a cessação do exercício da função de Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Constitucional, aliás, função que tem vindo a exercer desde finais de 2017.

Fonte: Club-k.net

“Ignorantia legis non excusat”

Para compreendermos a situação supostamente criada pela atribuição do merecido e legítimo estatuto àquele magistrado, urge dissecar aqui e agora, três questões fracturantes que não se querem calar, cujas respostas poderão ajudar a trazer alguma luz ao enigma: O Conselho Superior da Magistratura Judicial tem, à luz da Constituição angolana, legitimidade e competência para jubilar o Presidente do Tribunal Constitucional? Aquele órgão pode jubilar o Manuel da Costa Aragão enquanto Juiz Conselheiro do Tribunal Supremo? O Dr. Manuel da Costa Aragão, poderá, depois de jubilado, continuar a presidir aquele órgão de soberania Tribunal Constitucional?


Quanto a primeira questão, a resposta é literalmente NÃO. A luz do n.o1 do artigo 184.oda Constituição angolana, o Conselho Superior da Magistratura Judicial “é o órgão superior de gestão e disciplina da magistratura judicial”, entenda-se, dos juízes dos Tribunais da jurisdição comum, ou seja, dos Juízes de Direito, dos Juízes Desembargadores e dos Juízes Conselheiros do Tribunal Supremo. Ensina-nos os princípios da hermenêutica constitucional que aquele Conselho só tem jurisdição em termos de organização/gestão e disciplina sobre estes Juízes e não sobre os do Tribunal Constitucional.


Dito de modo diferente: O Conselho Superior tem legitimidade e competência apenas para decidir sobre a jubilação dos Juízes de Direito, Desembargadores e Juízes Conselheiros da Jurisdição comum e nunca sobre os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional que, sobre esta matéria, encontramos respaldo na Lei n.o 2/08, de 17 de Junho – Lei Orgânica do do Tribunal Constitucional e no seu Regulamento Geral aprovada em Plenário pela Resolução n.o21/14, de 28 de Julho, com um ritualismo próprio e com fundamentação específica, enquanto Tribunal Superior com competência suprema de administrar a justiça em matéria de natureza jurídico-constitucional, nos termos do que dispõe o n.o1 do artigo 180.o da CRA.


Porém, para uma maior e melhor elucidação sobre o assunto sub judice (jubilação), convém olharmos antes para o que estabelece a citada Lei Orgânica sobre o início e cessação de funções dos Juízes do Tribunal Constitucional, para em seguida analisar-se o que estatui o Regulamento Interno sobre a matéria da jubilação propriamente dita.


Assim, dispõe o artigo 40.o da referida Lei Orgânica que os juízes do Tribunal Constitucional iniciam o seu mandato após o respectivo empossamento e cessam funções no termo do mandato e após a tomada de posse dos juízes que os substituem. Por outro lado, estabelece ainda aquele diploma as situações que, uma vez observadas, podem levar a cessação do mandato dos Juízes do Tribunal Constitucional, como sejam: “a) morte ou

impossibilidade física permanente; b) renúncia; c) aceitação de cargo legalmente incompatível com o exercício das suas funções; d) demissão ou aposentação compulsiva, em consequência de processo disciplinar ou criminal. “ Para além das situações já mencionadas, resulta também do n.o 7 do mesmo artigo uma outra que é esta: e) aposentação voluntária que acontece quando o subscritor tiver exercido o cargo de Juiz do Tribunal Constitucional até ao termo do respectivo mandato e tenha mais de 65 anos de idade.


No entanto, em todas essas situações, o processo é sempre suscitado junto do Presidente do órgão que, cumpridas com todas as formalidades que a lei prescreve, emitirá uma declaração sobre a cessação de funções do subscritor que a mandará publicar na 1.a Série do Diário da República, após comunicação aos seus pares. Por outro lado, o referido Regulamento Geral do Tribunal estabelece, nos artigos 50.o à 52.o, um regime aplicável a Reforma e a jubilação para os Juízes do Tribunal Constitucional completamente diferente dos Juízes da magistratura da jurisdição comum, incluindo os mecanismos procedimentais observáveis pelos Juízes para a sua concretização.


Desde logo, os Juízes daquele órgão judicial podem ser reformados por incapacidade provocada por razões de saúde grave e duradoura e que comprometam sobremaneira a continuação das suas funções, competindo ao Plenário do Tribunal atribuir ou não o referido estatuto após avaliação do relatório médico competente, nos termos do artigo 51.o do RG.


Aqui chegados, podemos tratar do regime aplicável ao processo de jubilação dos Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional e aferir se o mesmo tem ou não alguma dependência do Conselho Superior da Magistratura judicial.

Entretanto, para efeito de aquisição do estatuto de Juiz Conselheiro jubilado, basta que o Juiz “tenha exercido um mandato completo”, conforme dispõe o n.o1 do artigo 52.o do RG do órgão, combinado com o artigo 43.o da Lei n.o2/08, de 17 de Junho – Lei orgânica do Tribunal Constitucional.


Todavia, o mesmo RG estabelece uma excepção quanto a exigência do cumprimento do mandato completo por parte do juiz interessado para a atribuição do estatuto de “Jubilado “, ao estatuir no seu n.o 2 do artigo que vimos citando, que o “Juiz Conselheiro que tenha cumprido dois terços do mandato e atinja a idade de 70 anos pode, querendo, requerer a sua jubilação”. Ora, mesmo que o Juiz Conselheiro Presidente em análise quisesse, por mera hipótese acadêmica, jubilar-se a partir do dia 04 de Abril último quando atingiu os 70 anos de idade, não o teria conseguido pelo facto dele ainda não ter sequer cumprido dois terços do seu mandato de sete anos não renovável como Juiz Conselheiro daquele Tribunal, competindo em todas as situações aqui analisadas ao Plenário do tribunal Constitucional deliberar a atribuição, a suspenção e a eventual renúncia à jubilação, em homenagem ao disposto no n.o9 do mesmo artigo que vimos citando.


Deste modo, fica claro que o Conselho Superior da Magistratura Judicial não tem e nunca teve legitimidade nem competência formal e material em relação aos Juízes do Tribunal Constitucional, não só em relação ao instituto de sua jubilação e de reforma, como também em relação a todas as outras matérias, pelo simples facto deste órgão de judicatura não fazer parte do sistema organizatório e funcional da Magistratura da jurisdição comum.


Daí ser de lei, concluir-se, que aquele órgão de gestão e disciplina dos magistrados da jurisdição comum não ter qualquer competência para decidir da jubilação do Juiz Presidente do Tribunal Constitucional, órgão de jurisdição especial ou, como sói dizer-se também nos meios acadêmicos e não só, tratar-se de um Tribunal de especialidade ao lado do Tribunal de Contas, com princípios e regras específicas sobre a sua organização e funcionamento no que a reforma e a jubilação dizem respeito.


Quanto a segunda questão, a de se saber se o Conselho Superior da Magistratura Judicial pode ou não jubilar o Dr. Manuel da Costa Aragão enquanto Juiz Conselheiro do Tribunal Supremo, a resposta a mesma é SIM. Aquele órgão é o único com legitimidade e competência constitucional e legal para o fazer, Explico-me: Não é por demais recordar que, nos termos do n.o1 do artigo 184.o da Constituição da República, aquele “é o órgão superior de gestão e disciplina da magistratura judicial” com legitimidade e competência para deliberar sobre a cessação de funções dos Magistrados Judiciais, conforme dispõe, no caso em análise, a al. a) do artigo 56.o da Lei n.o 7/94, de 29 de Abril, conjugado com os artigos 23.o e 26.o da Lei n.o 14/11, de 18 de Março.


Neste sentido, o Conselho Superior da Magistratura Judicial esteve bem quando deliberou no passado dia 16 de Abril do corrente ano a jubilação do Dr. Manuel da Costa Aragão enquanto Juiz Conselheiro do Tribunal Supremo, (somente nesta função e não noutra inerente a jurisdição constitucional). Por essa razão, é pacífica o deliberado por aquele órgão de gestão e disciplina da Magistratura Judicial, porquanto o limite de idade para o exercício da judicatura nesta magistratura de jurisdição comum é, efectivamente, de 70 anos e opera por força da própria lei.



Ou seja, este limite de idade só é aplicável aos princípios, regras e valores do sistema de organização e funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum, como coluna vertebral do Poder Judicial em nosso embrionário Estado democrático e de direito e nada mais, sendo, por isso, constitucional e legalmente fundada, a deliberação que atribui o estatuto de Juiz Conselheiro Jubilado do Tribunal Supremo ao referido Magistrado.


Quanto a terceira questão, a de saber se o Dr. Manuel da Costa Aragão poderá, depois de jubilado, continuar a presidir aquele órgão de soberania Tribunal Constitucional? A resposta a esta questão é, sem sombra a dúvidas, SIM. Explico-me: Quando foi convidado em Dezembro de 2017 a assumir as funções de Presidente do Tribunal Constitucional, quem o convidou fê-lo consciente não tanto pelo facto de ser já naquela altura Juiz Conselheiro do Tribunal Supremo, mas sim nas vestes de Jurista que é, aliás, a única qualidade técnica necessária para o exercício da referida função. Note-se, a propósito, que o convite para o exercício da referida função não foi dirigido ao Conselho Superior da Magistratura Judicial, muito pelo contrário, foi-lhe pessoalmente endereçado e para um mandato de sete anos não renovável, nos termos do n.o 4 do artigo 180.o da Constituição da República, conjugado com o artigo 15 da Lei n.o2/08, de 17 de Junho – Lei Orgânica do Tribunal Constitucional.


E mais: se alguém, ao tempo, ardilosamente o convenceu a deixar o Tribunal Supremo e partir para o Tribunal Constitucional a fim de não cumprir um mandato previsto na Constituição e na Lei, mas apenas cumprir para o tempo igual que lhe restava a frente do Tribunal Supremo que presidia, a fim de abrir supostamente vaga para acomodar um outro jurista, enganou- se, uma vez que aquele órgão está organizado e funciona com princípios e regras completamente diferentes quanto ao regime de reforma e de jubilação diz respeito.


A jurisdição constitucional em Angola tal como na maioria dos países aonde está institucionalizado, enquadra-se nos chamados tribunais de jurisdição de especialidade e, por tal razão, diferente da comum, na medida em que ele (TC) tem, repita-se, no mandato único, a forma de designação e reforçada por garantias de inamovibilidade, isto é, não pode a entidade que o tiver indicado para aquela função pôr termo ao exercício da mesma no decurso do mandato único, conforme consagrado no n.o4 do artigo 180.o da CRA, combinado com o artigo 34 da Lei n.o 2/08, de 17 de Junho – Lei Orgânica do Tribunal Constitucional.


Neste sentido, só as situações previstas nos números 3 e 7 do artigo 40 da Lei Orgânica do Tribunal constitucional já acima referidos, podem levar a cessação de funções do Juiz deste órgão do Poder Judicial.


Pretende dizer-se por outras palavras, que nada obsta do ponto vista constitucional e legal que o Dr. Manuel da Costa Aragão continue exercendo a função de Presidente do Tribunal Constitucional, a exemplo de muitos outros que já o fizeram e ainda o fazem, como são os casos (i) do Juiz Conselheiro Dr. Onofre dos Santos que foi jubilado do Tribunal constitucional apenas aos 74 anos com base no facto de se tratar de um órgão de especialidade cujos juízes devem cumprir um mandato único não renovável de sete anos com fundamento garantístico no principio da inamovibilidade durante o exercício da sua função; (ii) do Juiz Conselheiro Augusto Carneiro que mesmo depois de jubilar-se continua a dar a sua inestimável contribuição primeiro como Inspector-Chefe e depois na função de Vogal, ambos do Conselho Superior da Magistratura Judicial; (iii) do Juiz Conselheiro Presidente do tribunal de Contas Dr. Julião António jubilado a seu pedido aos 73 anos de idade com fundamento na especialização daquele Tribunal e na garantia do principio da inamovibilidade constitucional e legalmente tutelado; etc., etc.


Encurtando argumentos em matéria de facto e de direito sobre o assunto, foi muito feliz a Resolução de 16 de Abril de 2020, quando separa, por um lado, a atribuição do estatuto de juiz Conselheiro Jubilado ao Dr. Manuel da Costa Aragão enquanto

Juiz Conselheiro do Tribunal Supremo e, por outro, do Juiz conselheiro Presidente do Tribunal Constitucional, asseverando mesmo na parte final do primeiro parágrafo da resolução supra a respeito desta última jurisdição:“... e sendo que este Órgão no exercício das suas funções deve a obediência à Constituição e à Lei, nos termos do disposto no n.o1 do artigo 2.o, da Constituição da República de Angola”.


Esta resolução do Plenário do conselho Superior da magistratura judicial está alinhada com o princípio conceptual das linhas divisórias existentes entre as duas jurisdições, demarcando de forma clara aonde começa e termina a sua competência no âmbito da gestão e disciplina dos Magistrados Judiciais da jurisdição comum e aonde inicia a competência dos demais Tribunais de jurisdição especializada, no caso, o Constitucional.


Todavia, este órgão (Tribunal Constitucional) que no cumprimento dos seus deveres e obrigações institucionais deve obediência as normas constitucionais e legais aplicáveis ao seu sistema organizatório e funcional, aliás, outra não seria a interpretação do parágrafo em análise, sob pena dele ser considerado ferido de vícios de inconstitucionalidade material e orgânica, o que seria gravíssimo até pela natureza do órgão em presença – O Conselho Superior da Magistratura Judicial da Jurisdição Comum.


Por outras palavras, como é do cumprimento da Constituição e das leis aplicáveis de que se trata, e em homenagem a estas, e somente a estas, não resta, ao Conselho Superior da Magistratura Judicial, outra solução ou posição senão a de respeitar a CRA e as leis aplicáveis, as quais não só distinguem claramente Jurisdição Comum e Jurisdição Especial (Tribunal Constitucional), como estabelece princípios e normas diferentes quanto ao regime de jubilação diz respeito. Neste sentido, o CSMJ não deve, mesmo querendo, imiscuir-se em matéria reservada pelas referidas leis ao Tribunal Constitucional, sob pena, repita-se, incorrer num vicio de inconstitucionalidade material e orgânica, o que não dignificaria aquele órgão.

Concluindo,

Afinal, à luz da Constituição e da Lei do nosso jovem Estado democrático e de direito, o Dr. Manuel da Costa Aragão, pode, querendo, continuar a presidir o órgão de soberania Tribunal Constitucional até ao fim do seu mandato único de sete anos não renovável, fundado na garantia do principio da inamovibilidade constitucionalmente tutelado. Portanto, é falsa a ideia de que Manuel Aragão não deve continuar na Presidência do Tribunal Constitucional.

POR: S. KABOLOCA (SK)


Luanda, 18 de Abril de 2020