Luanda - O tão mediatizado caso “500 milhões de dólares do BNA”, em julgamento na Câmara Criminal do Tribunal Supremo, em Luanda, no qual são réus José Filomeno dos Santos “Zenu”, filho do ex-Presidente da República, Valter Filipe, ex-governador do Banco Central, Jorge Gaudens e António Manuel está na recta final.

Fonte: JA
As alegações orais, fase do processo em que a defesa e a assistência apresentam os seus últimos argumentos de razão sobre o caso, começam amanhã. Nesta fase do processo, os advogados de defesa procuram, a todo custo, convencer o juiz da causa de que os seus constituintes são inocentes.

A dúvida se a carta de José Eduardo dos Santos, enviada ao Tribunal, através da qual assume a autoria da ordem para a transferência dos 500 milhões de dólares para Londres, vai ou não ajudar a ilibar os réus dos crimes de que são acusados, continua a dividir a opinião pública nacional.

Outra dúvida que paira no ar é se, assumindo a autoria da ordem para transferir o dinheiro, José Eduardo dos Santos poderá ou não ser responsabilizado criminalmente, tão logo terminem as suas imunidades constitucionais. Para desfazer estes enigmas, o Jornal de Angola ouviu juristas. Os argumentos por eles apresentados sobre essas incógnitas desvendam pistas que podem surpreender o leitor.

Um dos juristas ouvidos é Albano Pedro. No entender do académico, o facto de o ex-Presidente da República ter admitido, por via da carta enviada ao Tribunal, que autorizou a operação não iliba, de todo, Valter Filipe das acusações que pesam sobre ele. Terá, também, de provar, com documento, que recebeu tal orientação. “Caso contrário, o acto não existe”, frisou.

Albano Pedro esclareceu que os actos administrativos, regra geral, têm de ser formais, de acordo com o Direito Administrativo, ramo do Direito que se ocupa do estudo da Administração Pública e das actividades dos seus integrantes. A mesma exigência, prosseguiu, aplica-se a José Eduardo dos Santos, que terá de apresentar, além da carta, outro documento que prove que, realmente, deu orientação a Valter Filipe para executar o acto.

No entender de Albano Pedro, enquanto não se apurar a veracidade e a existência desse documento, a posição do ex-Presidente da República será considerada não formalizada ou ordem não dada. Agora que já se sabe que a ordem para transferir os 500 milhões de dólares partiu de José Eduardo dos Santos, o passo a seguir, segundo o jurista, é saber se a ordem é lícita ou ilícita e se está no âmbito das atribuições do Banco Nacional de Angola fazer as coisas do jeito que foram feitas.

“Porque, como se sabe, o gestor das finanças públicas é o Ministério das Finanças, que é o representante das finanças do Estado”, salientou o académico, tendo acrescentado que o BNA é apenas a autoridade de depósito bancário do Estado. “Coloco-me a dúvida e até acho que nenhuma norma me vai responder positivamente, se o BNA tinha, efectivamente, essa competência para o fazer”, vaticinou. A autoridade que devia intervir neste acto, havendo licitude, na óptica de Albano Pedro, seria o ministro das Finanças.

Em rigor, continua o jurista, os actos praticados pelo Presidente da República, não importando a sua natureza, quando formais, devem ser publicados em Diário da República. “Terá de se procurar por este Diário da República, onde está registada a orientação dada pelo ex-Presidente da República ao ex-governador do BNA. Aqui reside a grande dor de cabeça do processo”, avalia.

Em caso de a ordem dada por José Eduardo dos Santos ser ilícita, sustenta, para Valter Filipe ser inocentado, terá de provar em Tribunal, também com documento, que antes de a executar alertou o ex-Presidente da República sobre a ilicitude do acto. Albano Pedro explicou que o Código Penal em vigor no país, para essa situação, determina que, sempre que uma ordem dada por um superior hierárquico for ilícita, o subordinado tem o dever de o alertar e só deverá executá-la se o mesmo insistir.

“O Direito Penal diz que, em matéria de responsabilidade penal, em relações hierárquicas, o subordinado não responde se o superior hierárquico tiver insistido na execução de uma ordem ilícita, mesmo depois de ser alertado”, salientou. De acordo com Albano Pedro, se se provar que o acto praticado não foi formal e nem esteve revestido de fundamentos legais e, ao invés disso, tratou-se de uma ordem ilícita, significará, então, que houve uma comparticipação, pois partir-se-á do princípio que o ex-governador sabia e ainda assim o executou.

Perante tal cenário, prosseguiu, os dois passam a ser cúmplices e, com isso, responsabilizáveis. Mas, por estar blindado de imunidades constitucionais, José Eduardo dos Santos acabará impune, deixando Valter Filipe com o ónus da culpa, por ter sido a pessoa que executou o acto ilícito. “As pessoas questionam-se se essa imunidade do ex-Presidente da República é permanente.

É evidente que sim. A CRA estipula que o Presidente da República não responde pelos actos praticados no exercício das funções. Nem que passem anos. Ele não responde”, aclarou. Albano Pedro disse que a análise que faz em relação a Valter Filipe é extensiva aos demais réus envolvidos no processo, com destaque para Zenu dos Santos.

Pena prevista

No caso de ficar provado que os réus cometeram os crimes de que são acusados, vaticina o jurista Albano Pedro, poderão apanhar penas superiores a 12 anos. Esclareceu que, em princípio, os valores em causa, por si só, já indiciam as penas. “Valores que estão à volta de 500 milhões de dólares implicam sempre penas acima de 12 anos de prisão. Tenho dúvida de que haverá pena menor do que essa”, frisou.

Para o jurista Inglês Pinto, é fundamental que se crie, na sociedade angolana, a cultura de se dizer não ao cumprimento de ordens superiores que violem grosseiramente a lei e põem em causa direitos fundamentais. No caso de insistência do superior hierárquico, para que a ordem seja cumprida, defende o antigo bastonário da Ordem dos Advogados de Angola, o gestor tem de ter a coragem de colocar o cargo à disposição, com todas as consequências inerentes a essa posição.

“Temos de ter essa coragem política. Tem o seu preço, um preço pesado, mas é sempre melhor, porque fica-se à vontade e com a consciência tranquila”, salientou. Em relação à legalidade ou não do acto praticado por Valter Filipe, Inglês Pinto disse ser da competência do juiz da causa avaliar e ver se o mesmo foi praticado de boa fé.

Disse que quando a orientação tem toda a legitimidade e legalidade afasta a responsabilidade do acusado, mas quando há violação grosseira da lei, é difícil afastar responsabilidade. “Não acredito que o ex-Presidente da República tivesse a intenção grosseira e dolosa de violar as normas e as leis. Mas é possível, pois, como homem, está sujeito a falhas. Nenhum santo, apesar de o seu nome ser Santos, nem um Deus, está isento de errar”, disse.

“Não é fim do BNA constituir fundos”

O consultor jurídico do Banco Nacional de Angola Hernâni Santana Freire, 65 anos, ouvido neste processo, na condição de declarante, por o seu nome ter sido várias vezes citado por outros declarantes, esclareceu, em Tribunal, que compete, nos termos da CRA, como atribuição principal do BNA, a preservação da moeda nacional e de participar na definição da política monetária, cambial e outras.

Para atingir este mandato ou função, prosseguiu, o legislador ordinário densificou, no regime jurídico do Banco Central, múltiplas e complexas funções, com vista a alcançar tal desiderato. “E uma das questões é que o Banco Central, de facto, não pode promover, participar ou constituir fundos, seja de que natureza for”, explicou.

O consultor jurídico disse que, se o que estava previsto no contrato de consultoria técnica tinha em vista esse objecto, o BNA não poderia fazer, excepto a constituição de fundos de previdência complementar, no âmbito da política social do banco, isto é, fundo de pensões. Acrescentou que, da leitura do contrato, se constata que o BNA iria ter uma intervenção neste fundo. “Se assim fosse, haveria que esclarecer que o Banco não pode participar na constituição de fundos”, salientou em Tribunal.

Hernâni Freire ressaltou que o Banco Central, no exercício das suas funções de gestor cambial do Estado, faz operações de investimento no mercado internacional de capitais, com vista a rentabilizar as reservas do Estado, mas o Banco não cria e nem participa em fundos. O que o Banco Central faz, continua, é um contrato e não a criação de fundos para o efeito no exterior.

O consultor jurídico do BNA sublinhou que o que o BNA faz é uma aplicação junto de instituições financeiras, sendo que, para o efeito, são realizáveis através de intermediários dos referidos mercados, comummente conhecidas como sociedades correctoras. “E, daí, se o BNA entender que a sociedade correctora aplique em fundos, que podem ser de investimentos, essa é outra questão e quem a aplica e se relaciona com este fundo não é o Banco Central, mas sim a sociedade correctora”, disse.

Jurista sugere alteração à CRA

Para que os actos negativos praticados pelos gestores públicos não continuem a vincular o Presidente da República, na qualidade de Titular do Poder Executivo, o jurista Albano Pedro sugere que se faça a alteração da Constituição neste quesito. “Todos os actos praticados por qualquer governante, no âmbito da CRA, responsabilizam o Presidente da República, enquanto Titular do Poder Executivo”, alertou.

Na opinião de Albano Pedro, essa é daquelas situações que compromete o Presidente da República perante os actos praticados por todo e qualquer gestor público, incluindo os administradores municipais. Para o jurista, o facto de se estar a chamar, hoje, o ex-Presidente da República neste caso dos “500 milhões de dólares” deve alertar o actual Presidente da República, para que tenha cautela, uma vez que os actos podem repetir-se na sua governação.

“Quanto mais cedo se alterar a CRA, no sentido de fazer que cada gestor público responda pelos seus actos, sem que sejam transmitidos ao Titular do Poder Executivo, melhor. Com isso, cada um vai responder pelos actos que praticar e não haverá mais partilha de responsabilidade, como se está a assistir neste caso dos 500 milhões”, concluiu.

Na base do processo em julgamento está uma transferência de 500 milhões de dólares de uma conta do Banco Nacional de Angola, no Standard Chattered de Londres, Reino Unido, para a conta da empresa Perfectbit, do holandês Hugo Onderwater, no HSBC, também de Londres.

A transferência era uma espécie de pagamento avançado para uma empresa criada pelos arguidos, a fim de montar uma operação de financiamento para Angola, no valor de 30 mil milhões de dólares. O plano assentava na constituição de um suposto fundo de investimento estratégico e na utilização da empresa Mais Financial Services como instrumento de actuação.