Luanda - A velha máxima que nos ensina que “não há fumo sem fogo” — provérbio que expressa a enunciação segundo a qual “não há indícios sem fundamentos” — é uma boa rampa de lançamento para se compreender o conflito que opõe a Associação de Camponeses Ana-Ndengue e a Cooperativa Lar do Patriota há década e meia.
Fonte: Club-k.net
Gen MATROSS: DE MEDIADOR A “CARRASCO DE CAMPONESES”
Nos últimos três meses, o assunto voltou a aparecer no espaço mediático em grande destaque, qual um vulcão que esteve adormecido durante décadas, mas que agora a lava desce terra abaixo e vai destruindo tudo que encontra, sem que, no entanto, as populações atingidas percebam qual a força “extra-natural” que o impulsiona para aquela direcção.
Na ordem deste destaque mediático estão novas vítimas, que na verdade continuam a ser as mesmas de sempre do processo, sendo a última das quais Sebastião Assurreira, o advogado da Associação Ana-Ndengue, que recebeu ordem de prisão quando testemunhava mais um capítulo da já longa novela envolvendo o Lar do Patriota e os camponeses da Associação Ana-Ndengue.
Contudo, para se compreender a origem do problema mais recente e o porquê deste agigantar do conflito quase 15 anos, é preciso recuar-se ao ano de 2008, quando, numa das salas nobres do Governo Provincial de Luanda — sob a presidência do então vice-governador da província para a Esfera Técnica e Comunitária — se sentaram à mesa de negociações vários actores, com o objectivo único de solucionarem os conflitos de terra entre o Lar do Patriota e Camponeses da Ana-Ndengue.
Nesta mesma reunião, além dos membros afectos à Cooperativa do Lar do Patriota e dos Camponeses, estiveram também representantes e promotores do projecto social Lingueno Samanhonga Wpite Wakunbumge, S.A., o CPPPN, o Comando de Guarnição Militar de Luanda, a Polícia Judiciária Militar e o então administrador comunal da Camama, em representação do então administrador municipal do Kilamba Kiaxi.
De acordo com a acta lavrada no dia 22 de Outubro de 2008 — que reporta a referida reunião — durante o encontro, o então vice-governador da província para a Esfera Técnica e Comunitária deu “prioridade aos direitos adquiridos pelo Lar do Patriota”, porém, não deixou de ouvir as lamúrias e reclamações dos camponeses em situação de conflito com a Cooperativa Lar do Patriota, o que, de resto, levou à seguinte conclusão:
“Os camponeses devem beneficiar-se de residências, atendendo o tempo de ocupação cuja indemnização não foi feita pelo Lar do Patriota, e, para se evitar conflitos, foi indicado o senhor general Pepexa para o efeito”.
Mas as conclusões não se ficaram por aí, porque no encontro foi também recomendado que os camponeses iriam beneficiar de um projecto habitacional cujas casas seriam construídas no local, sendo que o Lar do Patriota ficou com a incumbência de “fazer o levantamento adequado da população que compõe a Cooperativa dos Camponeses para o senhor governador aprovar o mesmo projecto”.
Pelo desenrolar dos acontecimentos que têm lugar até à data, é escusado afirmar que nada do que saiu daquele encontro produziu os efeitos almejados, o que veio a dar lugar a outros vários capítulos que, não só envolveram outros actores improváveis, como também viriam a permitir uma reviravolta na ordem dos 360 graus em toda a essa história.
Entrada em cena de Dino Matrosse
Em 2009, um outro actor de peso entra em cena e a sua intervenção será fundamental para se compreender os capítulos seguintes desta trama envolvendo os camponeses da Associação Ana-Ndengue e a Cooperativa Lar do Patriota. Afinal, à época vários conflitos eram assim dirimidos pela mesma “chave-mestra”: com a intervenção de uma “voz autorizada do Partido”, mesmo quando em causa estivessem direitos e garantias fundamentais, que mereciam simplesmente um posicionamento justo dos órgãos de justiça. E neste conflito, em particular, não se fugiu à “regra”.
Por conseguinte, foi na qualidade de então secretário-geral do MPLA que Julião Mateus Paulo “Dino Matrosse”, após reunir, na sede do Comité Central do seu partido, cria uma “Comissão de Observação e Mediação entre o Lar do Patriota e os Camponeses”.
Na reunião estiveram o primeiro secretário e também administrador municipal do Kilamba Kiaxi, o administrador da Samba, o então vice-presidente do Lar do Patriota, em representação do general Dinguanza (ex-presidente da cooperativa), já falecido; o engenheiro Mozinho, responsável pela área técnico da Cooperativa Lar do Patriota, e, por último, o general Pepexa.
O encontro, com as referidas figuras, tinha como objectivo “ultrapassar o conflito reinante na zona de expansão do projecto Lar do Patriota com os Camponeses que não tinham sido indemnizados”, e pretendia, igualmente, “dissipar todas as dúvidas em relação ao verdadeiro proprietário da superfície em questão”.
Uma das recomendações saídas do encontro foi que o general Pepexa deveria retirar as suas tropas em definitivo do local, deixando o Lar do Patriota evidenciar o seu trabalho e negociar directamente com os camponeses sob observação e mediação do Comité Provincial do Partido através do Comité Municipal do MPLA no Kilamba Kiaxi.
Ficou ainda definido que a Cooperativa Lar do Patriota construiria casas para os camponeses, sendo que tinha de negociar o modelo das mesmas. Contudo, as conclusões do encontro não se ficaram no conflito em si, já que Dino Matrosse baixou também orientações para o depurar da imagem do partido MPLA na zona em litígio.
“Retirar todo o material de propaganda do MPLA na zona desabitada, incluindo casotas de chapas pintadas com as cores do partido, construídas pelos aproveitadores, que impedia o curso normal dos trabalhos”, pode ler-se no documento lavrado pela Comissão de Observação e Mediação entre o Lar do Patriota e dos Camponeses.
O Comité Municipal do MPLA do Kilamba Kiaxi, por sua vez, ficou com a incumbência de promover um encontro entre os Camponeses, a Administração Municipal e a Cooperativa Lar do Patriota, encontro este que teria lugar na sede do Comité Municipal do Partido no Kilamba Kiaxi.
Lar do Patriota abandona as negociações
Em Abril de 2009, em sede do primeiro encontro, após as orientações saídas da reunião com Dino Matrosse, o responsável para área técnica do Lar do Patriota, engenheiro Mozinho, ficou com o compromisso de apresentar no encontro seguinte a maquete com os modelos das casas que seriam construídas para os camponeses, tendo, nessa altura, os associados da Ana-Ndengue indicado uma direcção com indivíduos capazes de acompanhar o processo.
Em Maio de 2009, em sede do segundo encontro, os representantes do Lar do Patriota, nomeadamente o engenheiro Mozinho e a arquitecta Raquel, procederam à apresentação da tipologia das casas, designadamente T3 e T4, e comprometeram-se em dar início à construção das mesmas na primeira semana do mês de Setembro daquele ano.
Porém, nada do que ficou acordado avançou, como se pode ler no informe da referida Comissão de Observadores, porque os representantes do Lar do Patriota abandonaram unilateralmente as negociações com os camponeses, e optaram por proceder à vedação do espaço, tendo feito deslocar no terreno de conflito comandos militares, polícia especial e efectivos de uma empresa privada de segurança, para intimidar os camponeses.
Não se fazendo de regados, os associados da Ana-Ndengue partiram para o contra-ataque e destruíram os muros de vedação. Na sequência destes últimos acontecimentos, o Comité Municipal do MPLA no Kilamba Kiaxi convocou as partes envolvidas no processo, isto é, a Cooperativa Lar do Patriota, os Camponeses e a Administração Municipal, para um encontro que estava a agendado para o dia 9 de Outubro de 2009, pelas 15h30, nas instalações do Lar do Patriota.
“Lamentavelmente, notou-se a ausência dos primeiros interlocutores do processo, [situação que] a Comissão [de Observação e Mediação entre o Lar do Patriota e os Camponeses] considera ser uma desobediência total e falta de respeito [para com as] orientações superiores do Partido”, pode ler-se no documento lavrado pela referida Comissão.
A reacção da Comissão deveu-se, sobretudo, ao facto de o Lar do Patriota ter indicado para aquela reunião, não o engenheiro Mozinho e a arquitecta Raquel, mas Fernando Pedro, então administração da Cooperativa, que, de acordo com o documento, revelava muitas imprecisões no seu discurso, com o objectivo de dilatar a solução do problema.
Sob alegação de que o Lar do Patriota não tinha condições financeiras para a construção das residências do tipo T3 e T4, tal como tinha ficado acordado, Fernando Pedro apresenta uma contraproposta, em como a Cooperativa reverteria a construção dos fogos habitacionais numa indemnização no valor de USD 13.500 por cada hectare.
No entanto, a referida contraproposta foi prontamente recusada pelos camponeses, que se reportaram às conclusões da reunião do dia 21 de Maio de 2009, quando se concordou que o Lar do Patriota haveria de construir casas do tipo T3 e T4 para os camponeses.
Foi precisamente este facto de que foi protagonista o Lar do Patriota que levou a Comissão de Observação e Mediação entre o Lar do Patriota e os Camponeses a produzir o informe no sentido de informar o primeiro secretário do Comité Provincial do Partido MPLA em Luanda, para que este, junto do então secretário-geral “Dino Matrosse” e do Governo Provincial de Luanda, dessem devido tratamento ao assunto.
Mas, o mesmo informe também deixava o seguinte alerta às figuras acima citadas: “A Administração Municipal do Kilamba Kiaxi está ocorrente dos factos e envia-se este informe para a tomada de medidas que melhor achar conveniente”.
No entanto, uma outra reunião vai ter lugar no dia 9 de Outubro de 2009, nas instalações do Lar do Patriota, e da qual saiu a conclusão de que a Administração Municipal do Kilamba Kiaxi e a Cooperativa Lar do Patriota assumissem o seu papel “para cumprimento da orientação superior do Partido, tendo estas últimas duas semanas para reporem a legalidade e informarem ao Partido e aos Camponeses”.
Administrador questiona cooperativa Lar do Patriota
A 29 de Abril de 2010, um documento expedido pelo gabinete do então administrador do município do Kilamba Kiaxi dava conta de um pedido de esclarecimento enviado à Cooperativa Lar do Patriota, por “presumível violação dos acordos estabelecidos, em relação à atribuição de casa aos camponeses organizados na Associação Ana-Ndengue”.
Reportando-se a relatos decorrentes de encontros anteriores, o então administrador municipal do Kilamba Kiaxi José Francisco Correia, contextualiza o conteúdo do expediente enviado ao Patriota nos seguintes termos:
“Conforme reuniões anteriores, nas quais o camarada secretário-geral do MPLA encarregou o Comité Provincial do Partido através do Comité Municipal do Kilamba Kiaxi de intermediar as partes, sob supervisão da Administração Municipal na solução do conflito, que passava necessariamente pela construção, pelo Lar do Patriota, de uma urbanização com casas unifamiliares, entendimento que foi alcançado nos encontros dos dias 21 de Abril e 21 de Maio, ficando por se definir somente em concreto a tipologia das casas (T3 e T4), bem como a data de início e término das obras”.
Posto isso, José Francisco Correia requeria: “A Administração Municipal do Kilamba Kiaxi vem por este solicitar à Cooperativa Lar do Patriota esclarecimentos sobre o referido assunto, em virtude dos camponeses terem reclamado junto desta Entidade Estatal, que tem estado a acompanhar esta problemática, considerando que a indemnização para os camponeses com valores pecuniários calculados por hectares se opõe à construção das habitações”, lê-se no documento Nº.º20/GAB.ADMKK/04/2010.
Um silêncio desafiador
Facto é que, mesmo depois desta intervenção do administrador do Kilamba Kiaxi, o assunto não ficou resolvido. O que deu lugar a outros expedientes de parte a parte. Entre os vários que se seguiram, salta à vista uma “nota de remessa” enviada pela Comissão dos Camponeses e assinada por Ana Manuel da Gama Ferraz.
No referido documento, os camponeses apresentam um dossier composto por fotografias que reportavam os actos repressivos conduzidos por uma força armada instalada no local. Através da referida nota, os camponeses lançavam, a 21 de Outubro de 2015, um grito de socorro a Dino Matrosse, referindo-se às “atrocidades que têm sido desenvolvidas pelo Lar do Patriota, no que concerne à ocupação de terreno pertencente à Associação de Camponeses Ana-Ndengue”.
O despacho de Dino Matrosse, em reacção à referida carta, foi expedido no dia seguinte à entrada da carta, a 22 de Outubro de 2015. O antigo secretário-geral do MPLA orienta que fosse convocado o general Dinguanza, para um encontro ou reunião, para a qual devia se fazer acompanhar por um ou dois técnicos conhecedores da problemática do Lar do Patriota, assim como mandava convocar igualmente três elementos da Associação Ana-Ndengue.
A reunião, de acordo com despacho de Dino Matrosse de 22 de Outubro de 2015, teria lugar numa quinta-feira, 29 de Outubro de 2015. Porém, e pode verificar-se no documento, o mesmo despacho chamava a atenção para o seguinte: “A convocatória deverá fazer referência deste memorando expedido pela Associação Ana-Ndengue”. Contudo, o referido encontro só acontece a 4 de Novembro de 2015. E as conclusões do mesmo não são conhecidas.
A inversão de papéis
Tendo havido uma intervenção política de alto nível, seja a nível da hierarquia do partido no poder, seja a nível das instâncias administrativas, no entanto o assunto continuou a não conhecer até à data um desfecho que satisfizesse os camponeses ou as partes. E, nesse intervalo entre a não resolução, a indefinição do processo e a recusa por parte do Lar do Patriota em cumprir e fazer cumprir o acordado entre as partes, muitos foram os episódios que tiveram lugar.
Entre os vários incidentes e situações ocorridas no espaço em disputa, uma das notas em destaque vai para os sucessivos actos de agressão física de que foram vítimas os camponeses, sendo que alguns deles chegaram mesmo a ser detidos, e outros — no caso as camponesas — violações sexualmente, acto protagonizado por indivíduos alegadamente contratados para o efeito, de acordo com declarações recolhidas no local onde os camponeses têm estado acampado, enquanto aguardam pelo desfecho do processo.
Nos últimos três anos, e para a surpresa dos associados, não bastaram os actos protagonizados por efectivos das Forças Armadas, da Polícia Nacional e de uma empresa privada de segurança cujo nome não foi possível apurar junto dos camponeses. A grande surpresa foi ver a Cooperativa Lar do Patriota a ganhar um aliado de peso político, aliás, uma figura que dominava o referido dossier como nenhum outro dirigente político terá dominado!
E esta figura é nada mais nada menos que o ex-secretário-geral do MPLA Julião Mateus Paulo “Dino Matrosse”, rotulado como o “carrasco” da Associação Ana-Ndengue. Em causa, está o facto de Dino Matrosse ter feito uma aproximação ao Lar do Patriota, o que enfureceu os camponeses que hoje o vêem como um traidor.
Se os camponeses têm sido diligentes nas acusações contra Dino Matrosse, o ex-secretário-geral do MPLA também tem usado da mesma estratégia, respondendo pela mesma moeda, tendo vindo já a público desmentir a informação posta a circular pelos camponeses da Ana-Ndengue e do “Bairro Honga” — uma outra zona adjacente — a quem chamou de “difamadores”.
“As pessoas que me conhecem sabem que não sou e nunca fui bandido, nem educado para estas situações. Tenho sido vítima destas falsidades. Ora queimei dinheiro, ora sou o culpado da falta de combustível no país, ora eu e o camarada Roberto de Almeida queremos matar o filho do Nito Alves e agora sou o vendedor de terrenos dos camponeses no Lar do Patriota… Todos estes são uma cambada de bandidos aproveitadores de circunstâncias e de oportunismos”, reagiu recentemente Dino Matrosse.
No princípio deste mês, Dino Matrosse — cuja residência oficial situa-se também no Lar do Patriota — foi visto por camponeses a liderar várias operações que resultaram na demolição de perto de 30 quintais na zona do Patriota. A referida acção resultou ainda na detenção de alguns camponeses, bem como do advogado da Associação Ana-Ndengue, Sebastião Assurreira.
A Manobra de diversão
Uma tese largamente defendida pelos camponeses aponta as demolições como uma “manobra de diversão” usada por Dino Matrosse para encobrir o principal objectivo: a defesa de um espaço que é sua pertença, situada na zona onde foi erguido o Lar do Patriota.
Segundo os camponeses, a decisão de ter destruído vários quintais naquela zona justificava-se para que as acusações não se ficassem apenas pela defesa do espaço que é pertença do ex-dirigente do MPLA e que tinha sido tomado por um indivíduo conhecido simplesmente por Paixão.
“Para justificar que a acção não tinha como único objectivo destruir as obras que foram feitas no seu terreno, o camarada Dino Matrosse teve de ordenar outras demolições, como uma forma de evitar que o seu nome aparecesse. Destruindo outros espaços, para todos, a ideia que ficaria na cabeça das pessoas era a de que foi o Lar do Patriota a destruir os quintais, com a Administração Municipal, e não o camarada Dino Matrosse. Mas, não: ele liderou a operação e seguiu de perto todo o trabalho nesse dia”, acusou um membro da Associação Ana-Ndengue.
De realçar que o processo judicial que opõe a Associação Ana-Ndengue e o Lar do Patriota encontra-se no tribunal e o início do julgamento, segundo apurámos, foi marcado para o mês de Setembro ou Outubro.
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