Luanda - Relatório da Human Rights Watch alerta para abusos das forças de segurança em Moçambique e perseguições a jornalistas. Apesar de progressos, Angola manteve uso excessivo da força contra civis.

Fonte: DW

De acordo com o relatório anual da organização sobre a situação dos direitos humanos no mundo, divulgado esta quarta-feira (13.01) a partir dos Estados Unidos, Moçambique registou, em 2020, uma degradação dos direitos humanos, sobretudo em resultado do conflito em curso na província de Cabo Delgado, no norte do país.


"A situação humanitária na província de Cabo Delgado agravou-se devido à insegurança e violência", refere-se no documento, que analisou a situação dos direitos humanos em quase 100 países e territórios.


No relatório assinala-se que o grupo armado islamita Al-Sunna wa Jama'a continuou os seus ataques contra várias aldeias, "matando civis, raptando mulheres e crianças e queimando e destruindo propriedades".

Em entrevista à agência de notícias Lusa, o diretor da HRW para a África Austral admitiu que o conflito em Cabo Delgado tem potencial para "engolir" toda a região, considerando que não "está a ser feito o suficiente" para o travar. "A instabilidade em Cabo Delgado é uma grande preocupação, não apenas para a região, mas porque há um risco de a crise alastrar a outros países e, eventualmente, engolir toda a região da África Austral", disse Dewa Mavhinga.


"A Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) e a União Africana (UA) não estão a fazer o suficiente para assegurar que há apoio suficiente para acabar com a insurgência e defender os direitos das populações", acrescentou.


A HRW aponta, por outro lado, "abusos graves" das forças de segurança, incluindo "detenções arbitrárias, raptos, tortura, uso de força excessiva contra civis desarmados, intimidação, e execuções extrajudiciais".


Falta de atenção internacional


No documento, a organização assinala a falta de atenção dos atores regionais e internacionais ao conflito naquela província moçambicana, onde se desenvolve o maior investimento multinacional de exploração de gás, e que está a provocar uma crise humanitária com mais de duas mil mortes e 560 mil pessoas deslocadas.
"Embora a violência tivesse vindo a aumentar há mais de um ano em Cabo Delgado, a União Africana apenas notou pela primeira vez, em fevereiro, um nível sem precedentes de violência contra os civis", refere a HRW.


No centro de Moçambique, a organização de defesa dos direitos humanos denuncia o que considera uma "campanha" de alegados dissidentes do maior partido da oposição, a Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), que se está a desenvolver no centro do país.


"Continuam os ataques contra veículos privados e públicos que circulam em Manica e Sofala, perto de Gorongosa, no centro de Moçambique, por homens armados que se acredita fazerem parte de um grupo dissidente de guerrilheiros da Renamo que rejeitaram o Acordo de Paz", adianta-se no relatório, citando relatos dos media locais que apontam para pelo menos 24 pessoas mortas desde agosto de 2019.



A HRW destaca ainda os ataques contra jornalistas no país, considerando que, no ano passado, "continuaram a ser perseguidos, intimidados e detidos arbitrariamente por forças de segurança do Estado", sem que tenha havido uma "investigação séria" das autoridades a esses abusos contra a liberdade de imprensa.


O relatório regista detenções arbitrárias, desaparecimentos forçados e ataques a pelo menos seis jornalistas em 2020. O relatório denuncia ainda que se mantém a "discriminação e a violência contra pessoas com albinismo", uma comunidade estimada entre 20.000 e 30.000 pessoas.


Angola regista progressos

Segundo o mesmo relatório da HRW, Angola registou, em 2020, progressos no respeito pelas liberdades civis, mas o país manteve o uso excessivo da força contra civis, bem como a repressão aos ativistas de Cabinda.


De acordo o documento, as autoridades de Luanda "mostraram dificuldades" para conter o uso excessivo da força e os abusos policiais contra civis. "Durante 2020, as autoridades angolanas debateram-se para conter os abusos das forças de segurança do Estado implicadas em mortes e uso excessivo da força contra pessoas desarmadas que alegadamente violaram as restrições impostas pela Covid-19", adianta-se no documento.


No contexto da pandemia da Covid-19, a HRW considera que "as forças governamentais [em Angola] reagiram com o uso excessivo da força, que em alguns casos resultou na morte de pessoas inocentes desarmadas"


Segundo a HRW, durante o confinamento parcial decretado em março, no contexto da luta contra a pandemia de Covid-19 no país, "as forças governamentais reagiram com o uso excessivo da força, que em alguns casos resultou na morte de pessoas inocentes desarmadas" em resposta a muitos angolanos, especialmente comerciantes de rua, que quebraram as regras para procurar ganhar algum dinheiro.


"As forças de segurança do Estado foram implicadas por grupos de direitos humanos e meios de comunicação social em graves violações dos direitos humanos, incluindo assassínios, perseguições e detenções arbitrárias, enquanto tentavam impor regras e restrições", aponta-se no relatório.


Continua por esclarecer morte de médico sob custódia policial


A HRW assinalou a morte, em setembro, de um médico sob custódia policial depois de ter sido detido por não usar uma máscara facial dentro do seu carro, uma morte que suscitou protestos da população, que se manifestou nas ruas de Luanda.


As autoridades abriram um inquérito sobre as circunstâncias da morte do médico, mas, de acordo com a HRW, até início de dezembro os resultados da investigação não tinham ainda sido divulgados.


Os abusos policiais foram considerados pela hierarquia como "más ações" de “alguns agentes" que não devem pôr em causa a confiança na polícia.
O relatório denuncia ainda que, mesmo no contexto da pandemia de Covid-19, as autoridades continuam a deter preventivamente "centenas de pessoas" por delitos menores, levando a uma elevada afluência diária de novos detidos às cadeias.


Numa nota positiva, no documento assinalam-se os "progressos no respeito pelos direitos à liberdade de expressão e à manifestação", recordando-se que o país "permitiu várias manifestações e marchas por todo o país".


Ainda assim, ressalva a HRW, a repressão contra manifestantes e ativistas pacíficos no enclave rico em petróleo de Cabinda continuou.


"Em violação da Convenção Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, de que Angola é parte, as autoridades recusaram todos os pedidos dos ativistas pró-independência de Cabinda para se manifestarem pacificamente. A polícia interrompeu violentamente os protestos e marchas e deteve ilegalmente os participantes", refere.


Política de expropriações mantém-se

As autoridades angolanas mantiveram também, segundo a organização de defesa de direitos humanos, a política de desalojamento e demolições forçadas sem "alternativas adequadas habitação, mesmo durante o período de confinamento".


A HRW destacou também a adoção, em fevereiro, da "aguardada" estratégia de direitos humanos do país, que os torna numa questão de segurança do Estado.
O documento, que foi redigido pela primeira vez em 2017, estabelece que a situação dos direitos humanos do país é sujeita a uma avaliação periódica pelo Conselho de Segurança do Estado, a introdução de um prémio para distinguir ativistas e ensino dos direitos humanos como disciplina nas escolas, entre outras questões.


As autoridades angolanas começaram também em 2020 a implementar medidas de combate ao tráfico de seres humanos que, segundo o Governo, está a atingir "níveis alarmantes" no país.