Luanda - O Serviço Penitenciário registou, de 2018 a 2020, 94 evasões de presos nas cadeias do país, dos quais 43 foram capturados e 20 agentes penitenciários expulsos do órgão por estarem envolvidos nessas ilicitudes. Os dados foram revelados pelo director geral do Serviço Penitenciário, Comissário Prisional Principal Bernardo Pereira do Amaral Gourgel, em entrevista exclusiva à ANGOP, no quadro dos 42 anos de existência do órgão que se assinalam este sábado (20).

Fonte: Angop
O órgão, afecto ao Ministério do Interior (MININT), regista, diariamente, a entrada de 90 a 100 presos nos 40 estabelecimentos prisionais do país, que contam com um universo de 24.828 reclusos, sendo 10.365 em prisão preventiva e 14.463 condenados.

Na entrevista, a alta patente prisional faz uma incursão sobre as questões relacionadas com a compartimentação dos reclusos, seus direitos e deveres que “são devidamente salvaguardados e executados", os desafios do sector e os projectos em curso para a elevação da qualidade dos quadros e melhoria das condições de habitabilidade dos reclusos.

Siga a entrevista na íntegra:

Senhor director, qual é o quadro real da situação do sistema prisional do país?
O quadro actual dos estabelecimentos penitenciários do país caracteriza-se pela superlotação, degradação das infraestruturas, insuficiente abastecimento de água potável e técnico material, défice na frota de viaturas para a condução dos reclusos aos tribunais e hospitais, inexistência do “sistema STTV”, inibidores de telefone e Raio X, insumos agrícolas, entre outros.

Quais são os números actualizados da população penal no país?
O país conta, actualmente, com 24 mil 828 reclusos, sendo 10 mil 365 em prisão preventiva e 14 mil 463 condenados.

Quanto é que o Estado gasta por ano, ou mensalmente, para manter esse universo de presos nas cadeias do país?
Temos um cálculo estimativo de custo diário de um recluso, que é de 30 dólares, e mensal, que dá cerca de 900 dólares por recluso.

Quantas unidades prisionais temos e qual é o número de agentes penitenciários?
Temos 40 estabelecimentos penitenciários ao nível do país e cerca de 11 mil e 171 efectivos

Qual é a maior unidade prisional do país? Será que temos alguma de segurança máxima?
O maior estabelecimento do país é o de Viana, em Luanda, com uma capacidade instalada de dois mil 384 reclusos e, neste momento, alberga cerca de três mil e 500 reclusos.

Como estamos em termos de lotação das cadeias e qual é a faixa etária da população penal do país e os principais delitos cometidos?
Actualmente estamos com três mil 855 reclusos acima da capacidade instalada nos estabelecimentos penitenciários do país. Em relação à faixa etária, temos dos 16 aos 18 anos dois mil 359 reclusos, dos 18 aos 21 anos seis mil 049 reclusos e com mais de 21 anos 16 mil 455 reclusos.

Que alterações foram feitas nas estratégias de controlo dos presos, em termos de biossegurança, desde o surgimento da Covid-19 no país?
A nível dos estabelecimentos prisionais do país foram criadas zonas de quarentena onde os reclusos recém internados ficam sob observação por um período de 15 a 20 dias. Outras medidas foram tomadas, incluindo a lavagem das mãos com água e sabão, distribuição de máscaras faciais e álcool em gel aos reclusos e efectivos.

Quais são as principais prioridades/preocupações do órgão? São as infra-estruturas, recursos humanos ou a absorção da mão-de-obra, sobretudo para presos condenados?
As grandes preocupações do órgão abarcam fundamentalmente as infra-estruturas e o défice de efectivos.

Quantos efectivos o órgão precisa actualmente para colmatar esse défice?
Neste momento temos cerca de 11 mil e necessitaríamos cerca de 18 mil efectivos para poder satisfazer a demanda.

Há perspectiva de um concurso público para o recrutamento de novos efectivos?
Ainda não há nenhuma perspectiva em curso, mas tudo está a ser feito ao nível do Ministério de tutela para que isso venha a acontecer.

Como avalia o sistema de reeducação dos serviços do órgão que dirige?
O sistema de reeducação ainda não é o desejado, por duas razões: primeiro a sobrelotação que inviabiliza a compartimentação e organização dos reclusos e, segundo, a falta de oficinas de artes e ofícios e outras ferramentas que permitam a sua incorporação nos vários programas de reabilitação.

Quais são as cadeias mais problemáticas do país, em termos do seu controlo?
A cadeia mais problemática em termos do seu controlo é a de Viana. É a maior cadeia do país em termos de reclusos internados e em termos de complexidade, mas temos tido competências necessárias para podermos geri-la, principalmente do ponto de vista operativo.

Como evitar a reincidência penal? Será fragilidade dos próprios serviços? Pode avançar números?
Levamos a cabo um estudo e concluímos que, em cada 10 reclusos, um é reincidente do ponto de vista penitenciário. Evitar a reincidência passa por um trabalho aturado de reabilitação, que ainda não tem sido o ideal no actual contexto que vivemos. Mas esse trabalho não depende apenas do Serviço Penitenciário, que tem feito a sua parte, de acordo com a Lei Penitenciária.
Há outras estruturas ou departamentos ministeriais que fazem parte desse trabalho de reabilitação após a liberdade do indivíduo. Portanto, o trabalho de reabilitação não pára na cadeia. Tem sequência fora dela.

Quais são as linhas de força do órgão para a concretização do binómio reabilitação e produção? Já há sinais de reabilitação dos grandes pólos agro-pecuários, em especial na Damba, no Bentiaba, em Benguela, no Peu Peu e Bengo?
Temos algumas linhas de força, nomeadamente promover a formação e o desenvolvimento do servidor penitenciário, estender a rede dos estabelecimentos penitenciários/versos compartimentação dos reclusos e, por último, ocupar o recluso na base do binómio reabilitação/formação. Por outro lado, é necessário termos em conta que antes de pormos o preso no trabalho produtivo propriamente dito há uma formação antecipada.
É nessa ordem de ideias que estamos a dinamizar a actividade agropecuária em todos os estabelecimentos penitenciários do país, com destaque para o Bentiaba (Namibe), Peu Peu (Cunene), Damba (Malanje), Caboxa (Bengo), Cambiote (Huambo), Capolo (Bié), onde iremos produzir, em grande escala, algumas culturas como o milho, mandioca, batatas doce e rena, feijão, banana e hortaliças.
Este trabalho enquadra-se no programa do Executivo de substituição de produtos importados por locais. Iremos, com efeito, criar mais de quatro mil postos de trabalho para os reclusos.

Já há recursos financeiros para essa empreitada?
Estamos a criar as bases e a fazer uma digressão pelas províncias onde serão dinamizadas essas actividades. Há promessas sérias na injecção de alguns valores para o reforço desta dinamização da actividade agropecuária.

Qual é o perfil do recluso quando lhe é restituída a liberdade?
Alguns reclusos saiem em liberdade com alguma aptidão técnica ou profissional e prontos para serem inseridos no mercado de trabalho, outros nem por isso, por falta de oficinas de arte e ofícios e outras ferramentas que permitem a sua incorporação nos diversos programas de reabilitação.

Essas debilidades a que se refere não faz com que o número de reincidência penal aumente?
Naturalmente, a falta de oficinas de artes e ofícios para potenciar o preso com alguma aptidão técnico-profissional faz com que ele saia da cadeia com alguma deficiência. Mas é necessário que, a par do que se faz nas cadeias, outros departamentos ministeriais como o Ministério do Trabalho, através do INEFOP, dos Desportos, entre outros, façam parte do sistema para acompanharmos esse indivíduo e criarmos condições para a sua inserção no mercado do trabalho.

Como estão os recursos humanos do órgão e quais os próximos passos nesse aspecto particular?
Temos uma escola específica para o Serviço Penitenciário, onde temos programado várias formações no âmbito da actividade penitenciária. Este ano arrancamos com quatro cursos e outros virão, sempre na perspectiva de valorizar e qualificar os servidores penitenciários.

Vários sectores da sociedade entendem que uma mudança nas normas de execução penal (métodos alternativos às penas) e a sua fiscalização efectiva evitariam a sobrelotação. Qual a posição do órgão a esse respeito?
Não evitaria, mas diminuiria a sobrelotação. A sobrelotação tem uma origem e há uma certa relação entre as condições sociais da população fundamentalmente no que se refere ao emprego e às famílias desestruturadas. Os estabelecimentos penitenciários hoje estão em número reduzido, em comparação com a demanda de presos que temos. Se olharmos para alguns países como Portugal e Brasil, onde fizeram mudanças profundas das normas de execução penal e apresentaram métodos alternativos às penas, também estão sobrelotados.

Porque que não se aplica, por exemplo, a prisão domiciliária?
Aplicamos a prisão domiciliária, mas de forma muito tímida porque ainda não temos as condições criadas para o efeito, como as pulseiras electrónicas, o que facilita não só a prisão domiciliária, mas o trabalho comunitário para melhor controlo dos presos.

Qual a média diária de presos que entram nas cadeias do país. E quantos beneficiam neste momento de liberdade condicional?
Temos uma média diária de 90 a 100 reclusos. Mil e 21 reclusos beneficiam neste momento de liberdade condicional.

Pode avançar o número de evasões de presos e motins registados nos últimos dois anos, mais precisamente de 2018 a 2020? Quantos foram capturados? Houve funcionários envolvidos e responsabilizados?
Desde 2018 a 2020 não registamos nenhum motim no sistema. Temos apenas registos de evasões. Em 2018 houve 42 evasões e 17 capturas, em 2019 houve 30 evasões e 10 capturas e no ano 2020 houve 22 invasões e 16 capturas.
Naturalmente, no sistema penitenciário, uma invasão tem sempre uma implicação directa ou indirecta do nosso efectivo e, quando isso se regista, levanta-se um inquérito e responsabilizamos disciplinar ou criminalmente, dependendo do envolvimento do agente na fuga. Temos um número de cerca de 20 agentes expulsos do órgão por esse tipo de prática e outros punidos com outras sanções como despromoção e multas.

Quantas tentativas de entrada de substâncias proibidas (drogas) foram registadas nos últimos 12 meses nas cadeias do país?
É difícil precisar (risos), mas tem-se registado alguma entrada de meios proibidos e temos levado a cabo um trabalho de sensibilização quer a nível dos reclusos, dos visitantes dos reclusos como dos nossos efectivos.

Há funcionários envolvidos?
Naturalmente, porque o preso não sai. Só pode haver conivência do funcionário ou do familiar do recluso que o visita ou leva alimentação.

Quais são os estabelecimentos prisionais onde se verifica actos do género com maior frequência?
Essas práticas se verificam com maior frequência nos estabelecimentos prisionais de Viana, em Luanda, e do Cavaco, em Benguela.

A biometria nas cadeias angolanas já é uma realidade? Quantas cadeias beneficiam desta tecnologia?
É uma realidade no sistema penitenciário, mas apenas a cadeia de Viana beneficia desta tecnologia. Temos uma parceria com a empresa RDCOM, neste domínio, e outras estão na forja. Também temos contactos com o Centro Integrado de Segurança Pública e estamos a equacionar a melhor forma de podermos, a partir deste centro, vermos o controlo não só biométrico, mas também dos próprios estabelecimentos penitenciários através de meios dispositivos próprios.

Mas esse défice não tem implicação no controlo dos presos?
Para nós seria o ideal todas as cadeias terem essa tecnologia (biometria), mas esse sistema implica altos valores. A direcção do Ministério está a trabalhar neste sentido para aplicarmos este sistema pelo menos nos grandes estabelecimentos prisionais do país.

Em relação aos parlatórios íntimos, os que possuem companheiras (os) e esposas (os) estão cadastrados para o efeito, para se evitar a duplicidade de actos? Quantas cadeias registam essa actividade?
Temos dois grandes problemas no que se refere aos pavilhões conjugais. Nas cadeias então construídas não estão concebidos pavilhões conjugais. Pensamos, sim, nas futuras construções, contemplar esses pavilhões conjugais. Por outro lado, ainda não temos um regulamento para essa actividade nos estabelecimentos penitenciários do país.

Em relação aos parlatórios virtuais, quando pensam estender essa tecnologia para outras cadeias do país, a par de Viana?
Nos próximos dias vamos inaugurar também essa tecnologia na Cadeia Central, no Hospital Prisão de São Paulo (Luanda), Calomboloca, Kakila e Caboxa (Bengo). Mas ainda não se fez um trabalho de sensibilização das valências deste sistema, não só no seio dos presos, como também nos magistrados judiciais e advogados.

Quantos reclusos frequentam as aulas de alfabetização nas cadeias do país?
Através do programa de alfabetização e aceleração escolar, frequentam as aulas de alfabetização mil 224 reclusos nos módulos I, II e III, respectivamente. No primeiro ciclo do ensino secundário temos 505 reclusos, dos quais 331 na sétima classe, 114 na oitava classe e 60 na nona classe. No segundo ciclo do ensino secundário temos 19 reclusos, sendo nove na décima classe, cinco na décima primeira classe e outros cinco na décima segunda classe.

Os advogados reclamam da falta de celeridade na requisição dos presos. De quem é a competência nesta matéria?
Com a entrada em funcionamento da compartimentação dos reclusos por família de crime, o trabalho de identificação do recluso tornou-se mais facilitado e viável. O que falta é termos um pouco de paciência porque esta situação dos advogados não se regista em todo país, mas apenas em Viana.
Em Viana, até certo ponto, justifica-se, como disse anteriormente é uma cadeia extremamente complexa, a maior e com mais de três mil e 500 presos. Os presos, aí, têm muitas artimanhas e às vezes quando são chamados pensam que é para serem transferidos, e não respondem. Se chegar a hora do almoço e do matabicho, por exemplo, ele não responde à chamada e fá-lo apenas no fim do dia. Todas essas vicissitudes fazem com que o preso não responda em tempo útil, mas é nossa competência apresentar o preso assim que ele é requisitado.

Os direitos e deveres dos presos são devidamente assegurados e executados?
São sim, porquanto não há relatos de violação dos direitos dos reclusos, uma vez que o órgão cumpre rigorosamente com as regras mínimas de tratamento dos reclusos: regra de Nelson Mandela.

Mas há muitas reclamações da sociedade nesse aspecto particular. O que tem a dizer sobre isso?
Bom, se há essas reclamações não nos chegam. Em anos anteriores chegavam algumas reclamações e, no momento oportuno, tomávamos as medidas que se impunham. Mas já há uns bons anos que nunca ouvimos esses relatos e nunca se registou maus tratos nas nossas cadeias.

O recluso tem beneficiado das três refeições ao dia?
Efectivamente, tem direito ao matabicho (pequeno almoço), almoço e jantar.

Mas ainda se regista muita frequência de familiares de reclusos a levar refeições nas cadeias. A que se deve isso?
Não diríamos tantas. Fizemos um estudo e porque houve uma altura que pensávamos proibir a entrada de alimentos nos estabelecimentos penitenciários e chegamos a conclusão que apenas 30 por cento dos reclusos são beneficiados com alimentação de fora, 70 por cento o Estado dá o matabicho (pequeno almoço), almoço e jantar.

As igrejas têm cooperado na actividade espiritual dos reclusos?
Até agora as igrejas têm sido dos maiores parceiros do Serviço Penitenciário na pacificação dos espíritos dos reclusos.

Como avalia a cooperação com os outros órgãos da administração da justiça, tendo em vista maior celeridade nos julgamentos?
A nossa cooperação com outros órgãos da administração da justiça é a mais fluida possível. Agora a questão da tramitação processual tem muito a ver também com as condições de trabalho dos órgãos e isso tem alguma implicação na tramitação processual do recluso.

Em que pé se encontra o projecto para a construção da cadeia de máxima segurança no país?
Localizamos agora um espaço na província do Cuanza Norte, onde uma comissão do órgão e uma das empresas interessadas na construção fizeram o levantamento preliminar. As negociações decorrem no sentido de se concretizar esse desiderato.

Para terminar, quer deixar uma mensagem aos funcionários da instituição?
Estamos no mês de Março. O Serviço Penitenciário comemora, dia 20, 42 anos de existência. Queremos agradecer a todos os que trilharam e trilham esse caminho connosco nos bons e nos maus momentos. Na prosperidade e nas dificuldades, fazêmo-lo com humildade e com consciência de que nada se constrói sozinho. Que haja muita saúde e, acima de tudo, trabalho para dignificarmos o bom nome da instituição.

Perfil

Bernardo do Amaral Gourgel, Comissário Prisional Principal, nasceu no Rangel, em Luanda, a 19 de Maio de 1965. Ao nível dos Serviços Prisionais exerceu funções de chefe do Sector Nacional, de Repartição Fabril, director nacional de Informação e Análise, inspector do órgão, director da Escola de Técnica Penitenciária e director do Serviço Penitenciário de Luanda.

Casado e pai de três filhos. Tem como hobbie a leitura e estar com a família. Prato preferido é massa com todos. Cidade predilecta Joanesburgo (África do Sul).