Luanda - A entrega das primeiras certidões de óbito e a identificação das primeiras valas comuns onde se encontram as ossadas de algumas das vítimas da chacina que se abateu sobre Angola em maio de 1977 (ver texto ao lado) poderá inaugurar nova página no processo de cicatrização das feridas abertas no seio do MPLA e de reconciliação dos angolanos.

*Gustavo Costa
Fonte: Expresso

Foram 44 anos de longo e tenebroso silêncio. Durante esse tempo, muitas famílias angolanas tinham gavetas de armários cheias de fotografias a preto e branco, trancadas, ao abrigo de crianças curiosas e inquietas que pudessem perguntar: “Este quem é, o meu pai? Onde está o meu pai”?


Perguntas destas atravessaram várias casas e famílias e tocaram fundo, de forma dramática, em Malange, onde o velho Kitumba foi confrontado com o assassínio de quatro filhos. Em Benguela, a irracionalidade dos agentes da DISA — polícia política do regime do MPLA que Agostinho Neto desmantelaria em junho de 1979 — não poupou a vida de três irmãos Rasgado. Já em Luanda, as famílias Van Dunem, Baptista e Vales continuam à espera de ver identificado o local onde estão sepultados os restos mortais de Bernardo Alves Baptista, conhecido por Nito Alves, tido como líder da alegada tentativa de golpe de Estado, José Van Dunem e Sita Vales.



As respostas foram sempre mudas, os olhos apresentavam-se sempre embaciados e os conciliábulos da família, sussurrados, não fossem os mais novos, perdidos numa orfandade desconhecida, entender o que de tão misterioso ensombrava o ambiente em que viviam e cresceram.


O Presidente João Lourenço decidiu fazer a travessia do Rubicão. Ao pedir perdão em nome do Estado angolano, no 44º aniversário do massacre, expressando “sincero arrependimento” pelas execuções sumárias, começou a fechar um dos ciclos mais negros na vida dos angolanos, surpreendendo tudo e todos.



Não espanta que a sua decisão, gerida com serenidade e expectativa pela população, tenha provocado ondas de choque nos círculos mais nacionalistas do MPLA. Mário Pinto de Andrade, secretário dos assuntos eleitorais do partido que governa desde a independência, é um dos altos dirigentes da CIVICOP — Comissão para a Implementação do Plano da Reconciliação das Vitimas dos Conflitos Políticos — que garantiam, nas vésperas da declaração de Lourenço: “Jamais haverá pedido de perdão.” A seu ver essa era uma reivindicação “imposta por gente de fora”. Passadas menos de 24 horas, engolia em seco.

NÃO APAGAR A HISTÓRIA

Para a Fundação 27 de Maio a comunicação do Presidente “descredibiliza a CIVICOP, deixando entender, nas entrelinhas, que só uma Comissão da Verdade poderá impedir que se apague a História”. Para esta entidade, afeta às vítimas, isso irá “permitir que juntos possamos comungar princípios civilizacionais, verdade histórica, dignidade e justiça”. A Fundação considera que Lourenço ignorou o radicalismo dos que julgavam que o regime deveria continuar a comportar-se como a avestruz, metendo a cabeça na areia.



O homem-forte de Angola desde 2017 fez o oposto, abrindo-se à sociedade e dando o peito às balas. Proferiu um discurso tido unanimemente como “corajoso”, quer pelos seus aliados no MPLA quer por antigos opositores de Neto. Um deles era o médico Manuel Vidigal, de 70 anos, chefe dos serviços de urgência do antigo Hospital de S. Paulo, detido, em casa dos pais, na madrugada do dia 11 de junho de 1977, faz hoje 44 anos. Professor reformado da faculdade de Medicina da Universidade Agostinho Neto, reconhece que o Presidente angolano fez “um discurso surpreendente”. E acrescenta: “Ao dignificar a memória das vítimas e ao assumir em nome do Estado a responsabilidade pelo genocídio do pós-27 de Maio, coloca-se definitivamente na História.”



Apesar de não haver respostas a inúmeras perguntas que permanecem no ar, converge na maioria dos meios próximos do regime como da oposição o reconhecimento de que a atitude autocrítica de Lourenço em nome do regime é decisiva para começar a sarar feridas e quebrar silêncios pungentes, que pesavam como âncoras nas águas paradas da história de Angola.


Quatro décadas volvidas, o 27 de maio de 2021 destapa a existência de milhares de órfãos da tragédia de 1977, que cedo aprenderam a pedagogia do medo, e mães que depressa começaram a engolir as palavras sempre que lhes perguntavam pelo paradeiro dos filhos. Havendo mais dúvidas do que respostas, ninguém ignora que será muito difícil usar uma simetria de consenso geral que agrade as vítimas de todos os horizontes.

Longe da guerra civil, o analista político Amável Fernandes diz ao Expresso que “a repressão que se seguiu ao dia 27 de maio de 1977 não pode deixar de configurar uma purga que quase não tem paralelo na história colonial”. Perdoada a purga, mas sem esquecer os crimes, o ativista social Rafael Marques defende a criação de “uma narrativa histórica sobre como cada uma das vítimas foi morta, para que a História seja escrita com mais verdade e sentimento de responsabilidade política, cívica e patriótica”.


Inconformado com a prevalência de zonas cinzentas neste processo e socorrendo-se das palavras de Lopo do Nascimento em entrevista ao Expresso em novembro de 2015 (não houve tentativa de golpe de Estado, mas de mudança de regime), Manuel Vidigal considera ter sido “assassinado o veredicto da Comissão de Inquérito ao Fracionismo e falseada a História, ao terem imputado responsabilidade pelos assassínios dos comandantes aos militantes apoiantes de Nito Alves”.


Presidindo à Comissão de Inquérito durante todo o seu consulado (1979-2017) e mantendo silêncio tumular sobre os seus misteriosos contornos, o antigo Presidente José Eduardo dos Santos conseguiu promover a reabilitação e integração de algumas figuras na vida pública. Destacam-se entre elas Ana Dias Lourenço, ex-ministra do Planeamento e mulher do atual Presidente, presa no Lubango; Aguinaldo Jaime, ex-ministro das Finanças, preso nas instalações da Rádio Nacional de Angola; José Van-Dunem, ex-ministro da Saúde, preso no quartel comandante Gika; e Manuel Aragão, preso como comissário político.

DISTINGUIR VÍTIMAS E VERDUGOS

Lourenço quebrou um tabu ao assumir os pecados capitais do regime dirigido pelo MPLA na mortandade ocorrida em Angola entre maio de 1977 e abril de 1979. Vidigal entende que isso abre caminho “ao reconhecimento de graves violações dos direitos humanos, localização das vítimas e devolução dos corpos às famílias”. Para este membro da Fundação 27 de Maio, é preciso ir mais longe. “É preciso que as certidões de óbito deixem claro os motivos da morte das vítimas.”

Afastada qualquer tentativa de vingança pelas barbaridades cometidas por muitos dos agentes da DISA, o médico afirma ao Expresso que a verdade histórica “exige clara demarcação entre vítimas e verdugos”. Na sua ótica, estes devem seguir o exemplo do Presidente e apresentar um pedido público de desculpas. “Ajudaria a exorcizar os fantasmas que há dezenas de anos perseguem milhares de pessoas como eu, que andei desesperadamente em Angola e no estrangeiro à procura do paradeiro do meu marido”, defende, em declarações ao Expresso, Deolinda Chitala, viúva de Ernesto Chitala, morto na cadeia do Bié.