Luanda - No ano em que o Presidente angolano pediu perdão, em nome do Estado, pelas “execuções sumárias” que se seguiram ao 27 de Maio de 1977, “o medo de falar ainda persiste”. Para o investigador Andrade Nzagi, os jovens já debatem sobre o assunto, mas os mais velhos receiam fazê-lo. O investigador vê o 27 de Maio como uma tentativa de “limpar antigos heróis da luta anti-colonial” e que mancha a imagem do primeiro Presidente de Angola, Agostinho Neto.

Fonte: RFI

O investigador Andrade Nzagi considera, também, que "a reconciliação nacional vai depender do processo da reconciliação política" porque acontece no ano pré-eleitoral, pelo que se vai ter de aguardar pelo resultado das eleições.


RFI: Como analisa os avanços do processo de reconciliação nacional, nomeadamente depois do discurso deste ano do Presidente João Lourenço que pediu perdão pelo 27 de Maio de 1977?

Andrade Nzagi, Investigador: “Sobre este passo que o Presidente da República deu, ainda este ano, neste processo de reconciliação nacional, eu encaro em duas vertentes.

Por um lado, penso que o Presidente João Lourenço procurou fazer uma reconciliação nacional com as vítimas do 27 de Maio, neste caso com os seus familiares, pese embora que, neste mesmo acto, também se fez uma reconciliação nacional com a sociedade civil porque muitos perderam os seus parentes durante a guerra civil de Angola.

Por outro lado, esta reconciliação nacional acontece numa altura em que havia praticamente uma espécie de conflitos políticos entre o MPLA, que é o partido que está no poder, e o maior partido da oposição, que é a UNITA, porque foi numa altura em que surgiam várias entrevistas de pessoas ou antigos políticos da UNITA que se rebelavam ou estavam a contradizer as ideias do Adalberto da Costa Júnior. Então, para uma sociedade ou um Estado que diz que está a proclamar ou a festejar a reconciliação nacional, não seria benéfico para a imagem do país surgir uma imagem em que parece que o partido no poder ainda está em conflitos políticos com o maior partido da oposição.”

 

Que peso é que este processo da reconciliação nacional pode ter nas eleições gerais do próximo ano?

“Este processo ou esta actividade de reconciliação nacional claramente pode ter um peso enorme, pese embora que em função da situação socioeconómica que o país vive, há muita população que está na descrença pelo partido no poder, pelo MPLA. Mas, claro que este processo vai ter um certo peso, uma vez que as pessoas que perderam os seus familiares no 27 de Maio e a população que perdeu os seus familiares na guerra civil claro que agora vão encarar o MPLA, particularmente o Presidente João Lourenço como uma pessoa do bem, uma vez que o 27 de Maio ocorreu em 1977, entrou o José Eduardo dos Santos e nunca tocou essa questão de fornecer os boletins de óbito e chega o João Lourenço e consegue fazer isto. Então, é um certo peso político para um lado da população.”

 

Ou seja, pode haver alguma vantagem em termos políticos?

“Pode haver sim, uma vantagem, mas não digo uma vantagem enorme. Uma vantagem para aquele lado que fez as pazes com o partido no poder. Uma vez que agora o partido no poder aceitou que errou com o massacre do 27 de Maio, procurou fazer as pazes com este lado da população e vai ter sim uma vantagem.

Mas, por outro lado, para aqueles que são mais apologistas da UNITA, claro que vão encarar essa actividade de forma diferente uma vez que a reconciliação nacional não seria só com as vítimas do 27 de Maio mas também seria com aqueles que estavam do lado da UNITA.”

 

Mas a Comissão para a Reconciliação engloba o período que vai da independência até 4 de Abril de 2002. Também abarca, portanto, a guerra civil. Temos noção de quantas pessoas morreram na guerra civil angolana?

“O número estatístico seria difícil, mas é claro que muita gente perdeu a vida com a guerra civil angolana, uma vez que foram 27 anos de guerra civil.”

 

Teria havido 500.000 vítimas, ou seja, meio milhão de mortos nestes 27 anos de guerra civil. É assim?

“Pode ser um número, mas mesmo até agora que se fez este processo de reconciliação nacional, praticamente até agora não se apresenta um número aproximado, não sei se é por questões de política.

Mas é claro que com a guerra civil perderam-se muitas vidas e também são poucos os autores nacionais que escrevem mesmo sobre o conflito civil de Angola, que apresentam o número de vítimas da guerra civil, uma vez que ainda há aquela questão política de quando se apresenta um número quer-se apontar mais um lado como se fosse o lado que mais matou ou prejudicou durante a guerra civil.”

 

Mas aproximadamente, temos uma noção?

“Vamos falar acima de 300.000 vítimas.”

E na sequência do 27 de Maio de 1977, quantas vítimas é que houve? A Amnistia Internacional falou em 30.000, mas há quem fale em mais.

“A Amnistia Internacional fala em 30.000, há quem fale mais - até os autores que escreveram sobre isso vão apontando mais, como a Dalila Cabrita [Mateus]. Eu penso que com o 27 de Maio fica até difícil apresentar os números de vítimas porque uns ficaram desaparecidos até à data de hoje, não aparecendo mesmo ao público qual foi o seu destino.”

 

O historiador inglês David Birmingham chama “insurreição desarmada de massas” aquilo que aconteceu no 27 de Maio de 1977. A versão oficial, retomada pelo Presidente João Lourenço este ano, é de tentativa de golpe de Estado. O que é que aconteceu?

“Na verdade, o 27 de Maio apresenta dois pontos de vista. Por um lado, para a população, foi visto como uma grande manifestação a favor do Nito Alves que, nessa altura, tinha muita popularidade. O governo encara aquilo como uma tentativa de golpe de Estado.

Quanto a mim, como historiador, eu penso que aí estava bem patente a tentativa de uma usurpação do poder. Porquê? Porque vamos ver que nessa altura o Nito Alves já tinha tomado a base militar da PM lá no Grafanil, tinha tomado a Rádio Nacional. Se olharmos para a história das revoluções, normalmente para um regime ou para um grupo que quer tomar o poder em forma de revolução, toma primeiramente esses pontos: a rádio, a televisão, o aeroporto, então para alguém que já tinha tomado esses sectores…”

 

Só tinha sido tomada a Rádio e a Cadeia de São Paulo, não foi tomado o aeroporto…

“Não foi tomado o aeroporto. É claro que é um processo, eu penso que o objectivo ali, se calhar, era mesmo o golpe de Estado. Então, não podemos tapar aqui o sol com a peneira porque para alguém que só queria fazer uma manifestação, não teria necessidade de tomar a rádio ou a cadeia. Agora, é claro que foram vários motivos que motivaram a tomar esse tipo de atitude, uma vez que o Nito Alves foi um dos grandes combatentes da 1ª Região Militar do MPLA durante a luta anticolonial.”

 

Justamente, os protagonistas do 27 de Maio tinham sido também protagonistas da luta pela independência. No entanto, foram varridos da história e ficaram como os protagonistas de uma alegada tentativa de golpe de Estado. É preciso reabilitar a sua imagem?

“É necessário, é preciso reabilitar esta imagem sim, porque, na verdade, apesar dessa tentativa do golpe de Estado, muitas das vítimas do 27 de Maio contribuíram bastante na luta anticolonial e não deveriam ser apagadas da história ou serem tratados como os vilões da história.”

 

Há quem sustente que o próprio Presidente disse, no dia 28 de Maio: “Não haverá contemplações. Não vamos perder tempo com julgamentos”. Quando ele declara isto nos jornais e na rádio, permitiu que as forças de segurança exercessem a repressão. Isto não ensombra o seu papel enquanto Presidente?

“Claro que assombra, mas vamos olhar para o contexto que se vivia naquela época. Era o contexto do socialismo e, praticamente, estava mesmo instalada a ditadura comunista. Aquilo que aconteceu no 27 de Maio, como às vezes até aponto, é uma forma de tentar limpar os antigos heróis da luta anti-colonial. É claro que aquilo assombrou o seu papel como Presidente.

Muitos dos nacionalistas que participaram com muita garra durante a luta anticolonial foram eliminados durante o 27 de Maio e, diga-se de passagem, muitos inocentes também que só por estarem associados a estas pessoas também perderam a sua vida. Claro que o 27 de Maio assombra a imagem do Agostinho Neto como Presidente na altura.”

Mais de 40 anos depois, foi quebrado o tabu. O novo Presidente deu um passo histórico no sentido de pedir perdão e de falar em erro. Qual deve ser a estratégia para a reconciliação, esta que o governo está a fazer com a Comissão de Reconciliação e do Perdão ou é preciso uma profunda investigação histórica, como pedem muitas vítimas, para esclarecer o que aconteceu no 27 de Maio?

“Eu penso que a estratégia seria mesmo muita investigação histórica porque, na verdade, ainda é um tema que merecia. Vivia-se de vários tabus, até nas universidades se o estudante tenta fazer uma pesquisa do género para um trabalho de fim de curso havia barreiras.”

 

Ainda há barreiras?

“Neste momento, não posso confirmar, mas conheço estudantes anteriores, não é desde que o Presidente fez o pedido de desculpas ao público, não sei se a barreira vai continuar. Mas, na verdade, eu penso que não seria só por parte dos estudantes, assim como de historiadores individuais, penso que seria necessária uma investigação profunda porque alguns apontam que não havia intenção de golpe de Estado - talvez por estarem contra o governo - e os que estão a favor do governo afirmam que havia necessidade ou intenção de golpe de Estado.

Eu penso que ali pede-se o papel do historiador que é para fazer uma profunda investigação porque mesmo que fosse uma tentativa de golpe de Estado, não tinha que se fazer aqueles julgamentos sumários. Muitos foram mortos sem necessariamente serem julgados. Então, é necessário dar a abertura aos historiadores que é para fazerem essa pesquisa mais aprofundada sobre o 27 de Maio uma vez que até o Nito Alves, nas suas “13 Teses” demonstra algum descontentamento com a política do Presidente da República na altura, António Agostinho Neto.”

 

Havia, ou não, fraccionismo dentro do MPLA antes do 27 de Maio?

“Fraccionismo… Eu diria antes crise dentro do MPLA. Havia sempre. Vamos dizer, desde os anos 60, quando o Viriato da Cruz saiu já havia uma espécie de crise dentro do MPLA e esta crise também era muitas vezes fomentada pelo seu adversário político na altura, a UPA, actualmente a FNLA, porque dizia que o MPLA era um partido que dava muitos cargos aos brancos. E, por esse motivo, quando o Agostinho Neto substitui o Mário Pinto de Andrade na presidência do MPLA começa a cisão ou a crise dentro do MPLA. Em 74, vamos ver uma outra crise que é com a ala do Chipenda. Então, cisão dentro do MPLA ou crise havia sempre.

Com o 27 de Maio não foi diferente. Claro que antes do 27 de Maio havia uma espécie de fraccionismo porque existiam muitos militantes que não estavam de acordo com as políticas do Presidente da República na altura, o Agostinho Neto. Então, havia, sim, esta cisão ou esta crise dentro do MPLA antes do 27 de Maio.”

 

Disse que os estudantes até têm dificuldade para investigar esta questão. Em termos de memória colectiva, que efeitos é que todos estes conflitos políticos tiveram sobre a sociedade angolana e que ainda se fazem sentir. O medo de falar?

“O medo de falar ainda persiste porque, na verdade, os que têm até mais coragem de debater sobre este assunto são jovens que não presenciaram este massacre do 27 de Maio. Já os mais velhos, muitos que vivenciaram o partido único ou a primeira República de Angola, ainda vigora aquele medo de falarem sobre este assunto. Se for para falar, falam de forma restrita, em casa, mas falam mais em forma de conselho, aconselhando os jovens a não falarem sobre este assunto. Mas os jovens, por não fazerem parte deste período, claro que procuram debater de forma normal. É nesta vertente que alguns jovens procuram agora investigar sobre este assunto.”