Luanda - O Presidente de Angola, João Lourenço, devolveu à Assembleia Nacional a Lei Orgânica sobre as Eleições Gerais, justificando com a necessidade de reforçar uma "sã concorrência, lisura e verdade eleitoral". A decisão é “positiva” para o politólogo Olívio Kilumbo que vê o “recuo” como uma resposta à pressão dos partidos da oposição e da sociedade civil, mas não exclui a possibilidade de um “recuo estratégico” do Presidente, mesmo que desautorizando o próprio MPLA.

Fonte: RFI

RFI: Como é que vê o facto de o Presidente ter mandado de volta para o Parlamento a Lei Orgânica sobre as Eleições Gerais?

Olívio Kilumbo, Politólogo: A priori, é positivo porque há um recuo, há um veto do documento que deveria ser promulgado pelo senhor Presidente da República. Entendemos que o Presidente da República pode ter recuado em função da pressão que sofreu dos parlamentares da oposição e também da pressão que sofreu da sociedade civil porque a sociedade civil fez petições para melhorar o documento, a sociedade civil fez manifestações para a não aprovação.

O documento foi aprovado, foi ao Presidente da República, ele tinha a missão de promulgá-lo e não o fez. Pode significar isso: a não promulgação pressupõe o recuo do documento ao Parlamento. O veto pode ser fundamentado. Por uma questão de Estado, o Presidente da República poderia ter fundamentado no veto, o que é que ele acha que poderia ser melhorado, alterado ou acrescentado. E assim os parlamentares teriam a missão de em função dessa orientação trabalharem. Mas isso não aconteceu.

 

O que aconteceu foi que o Presidente justificou com a necessidade de reforçar a "sã concorrência, lisura e verdade eleitoral". Ora, o MPLA tinha aprovado no Parlamento. Isto é um sinal que há alguma ruptura entre o Presidente e o MPLA?

Isso é um aspecto e não menos importante. Também é preciso dizer que isso não é uma fundamentação. Uma fundamentação vai muito para além disso. Agora, do ponto de vista geral, isto é uma análise positiva para a sociedade civil e para os partidos da oposição que trabalharam para a não homologação.

Agora, se o Presidente da República cedeu a esse apelo, cria uma ruptura entre o MPLA porque o MPLA aprovou esse documento no Parlamento sob duras críticas, sob debates acérrimos, sob pressão da sociedade civil mas o Presidente acha que não e recua. Ora, esse recuo pode significar uma desautorização aos seus ou uma ruptura, por um lado, como pode significar também um recuo estratégico porque, ao não fundamentar, cabe aos parlamentares manterem ou seguirem essa pequena orientação não fundamentada pelo Presidente da República.

Se o Presidente quisesse resolver o problema tem que dizer ‘Temos que mudar aqui ou ali ou então atender à oposição” porque se não for atendido, ele vai à votação novamente e vai ser aprovado e, portanto, será um recuo apenas com a perspectiva de descomprimir a pressão que veio da oposição e da sociedade civil e o documento será na mesma aprovado. Portanto, é no meu entender que deveria ter sido fundamentado e, não acontecendo, pode ser um recuo estratégico.

 

Está a falar de estratégia. No fundo, a sociedade civil e a oposição protestaram e o Presidente da República ouviu. Pode haver aqui uma “estratégia”, a um ano das eleições gerais, de tentar reconciliar-se com o eleitorado?

Absolutamente porque a imagem do Presidente e do MPLA está muito ofuscada, está muito desgastada na sociedade angolana. A Frente Patriótica fez um documento onde alegava falta de legitimidade do governo angolano e do MPLA em governar Angola. A legitimidade ganha-se nas urnas. Perde-se legitimidade quando não se consegue resolver os problemas das populações, quando as populações se manifestam, protestam, em função do desarranjo político e social. Este elemento faz desgastar a imagem, faz perder popularidade e é o que está a acontecer. Estamos a um ano das eleições, há um desarranjo significativo e esse desarranjo significativo não se resolve em um ano. Logo, entendo também que João Lourenço pode estar a jogar com esse elemento.

 

Mas ao mesmo tempo não é uma humilhação política para o MPLA? Isso não seria uma espada de dois gumes?

Sim, sabe que o MPLA é um regime autocrático, as orientações vêm do Presidente da República. Eu tenho muitas dúvidas que este documento não tenha sido observado pelo Presidente da República. Ou seja, para o MPLA nada é feito sem a autorização do Presidente da República. Houve aqui uma situação muito anedótica. Como é possível o Presidente da República mandar recuar um documento e no dia seguinte há uma reunião ordinária do MPLA em que saúdam o recuo do documento?

Portanto, são situações que devem levar a perceber o que realmente se passa com o MPLA. Há aqui algum sinal de crise interna muito profunda e algumas pessoas que deram a cara sobre este documento sentem-se um tanto quanto, digamos, chamuscadas diante do recuo do Presidente da República. Portanto, essas pessoas que deram a cara saem humilhadas obviamente e isto demonstra que internamente o MPLA não está bem.

 

Este recuo da Lei Orgânica sobre as Eleições Gerais acaba por ser uma vitória para a UNITA e para os partidos da oposição?

Ela só será uma vitória de facto se as alegações, o desejo, os elementos que o partido na oposição e na sociedade civil acham que devem ser melhorados, retirados e acrescentados na Lei Orgânica das Eleiçoes Gerais forem um facto. Se não acontecer isto, se aquilo que a sociedade civil chama de ‘elementos fracturantes’ e os partidos da oposição chamam de ‘linhas vermelhas’ – por exemplo, a independência da CNE, o apuramento municipal e outros elementos – se esses elementos não forem retirados, não valeu a pena o veto. O veto só valerá a pena se esses elementos, de facto, forem retirados. Porque se assim não acontecer consagra-se a fraude na lei.

 

Até que ponto é fundamentada essa crítica de que a Lei Orgânica sobre as Eleições Gerais abre as portas à fraude? 

Nós temos quatro pleitos eleitorais já realizados. Começou em 92 com o multipartidarismo e a abertura democrática. Nós temos crises pré-eleitorais que têm que ver com o início do processo. Há sempre discussões pré-eleitorais. Nós estamos desajustados do ponto de vista dos princípios da SADC sobre órgãos e princípios que regem as eleições. Estamos desajustados sob o ponto de vista da Carta Africana sobre eleições, democracia e governação.

Angola é o único país na África Austral, sob o meu entendimento, que não tem uma comissão eleitoral independente. Na CNE quem tem maioria tem maior controlo sobre ela e o presidente da CNE é nomeado pelo Presidente da República. Normalmente são pessoas ligadas ao MPLA. Ou seja, o MPLA tem um controlo político sobre a CNE. É preciso afastar esse controlo. É preciso que esse controlo seja em função dos princípios da SADC. A sociedade civil fala, por exemplo, da entrada de tecnocratas de religiosos.

O Congo Democrático tem uma comissão eleitoral independente, a Zâmbia, o Malaui, que são países que fizeram transições, porque a comissão eleitoral como é independente não há grande influência política. A nossa comissão eleitoral tem grande influência política e o ambiente que se vive hoje em termos de espírito é idêntico ao de 1992. As pessoas estão muito eufóricas, as pessoas estão cansadas. Então, evitemos ser uma antecâmara ao que aconteceu em 1992. E mais: todo o processo eleitoral é um aprendizado porque é preciso melhorarmos, conformarmos as leis em função do contexto. É preciso melhorarmos os elementos de controlo e monitoria eleitoral.

 

Dentro das críticas dos partidos da oposição e da sociedade civil, uma das principais é que esta lei centraliza a contagem dos votos e que é necessária a contagem dos votos nos municípios...

Este sim é um elemento fundamental. Se a vida se faz nos municípios, como alguém disse um dia, porque é que não se pode fazer o apuramento municipal? O apuramento é a contagem dos votos das comunas no município. Sabe-se a partir do município quem ganhou. Depois temos o apuramento provincial que é a contagem dos votos nos municípios na província. Esses elementos são fundamentais para as pessoas terem a noção que quem ganho no município X é o partido Y, quem ganhou no município Y é o partido X. Quando não temos esses dados e temos apenas dados gerais, pode haver alteração de dados. Isto é possível, nós temos histórias de não contagem de votos, de desvio de urnas.

Portanto, a proposta de lei do MPLA é completamente antidemocrática, fere os princípios da monitoria eleitoral e se cada processo eleitoral é um aprendizado, é preciso que os erros do passado não se tornem a repetir.

 

Este recuo na Lei Orgânica sobre as Eleições Gerais não pode perturbar as autárquicas que já deveriam ter sido realizadas este ano, e que agora supostamente são em 2022, ano em que também há eleições gerais?

O pacote eleitoral também está em discussão. Houve alguns avanços sim mas os pontos fracturantes não foram ainda discutidos, os partidos divergem. A questão das autarquias é uma questão mais séria. A questão das autarquias é um fenómeno que há na África Austral. Os partidos dominantes, os partidos independentistas, estão a perder peso político a partir das autarquias. Aconteceu na África do Sul, aconteceu em Moçambique, aconteceu agora na Namíbia.

O MPLA tem medo disso. O que se passa é que as autarquias vão diminuir a influência dos partidos lá no município, lá na autarquia e vão fazer com que surjam novas elites locais. E há neste momento em Angola uma revolução cívica. Há grupos de sociedade civil preparados para discutir do poder nos municípios. Estes grupos estão organizados e os partidos têm medo disso.

Logo, o MPLA sabe que se avançar para as autarquias agora perde espaço, perde influência política local. Então, vai criar as condições para não acontecer. O Presidente João Lourenço deu um tiro nos próprios pés ao assumir que as eleições se iriam realizar, deu essa garantia, houve um debate, as pessoas prepararam-se, mas depois disse que nunca convocou as eleições. Portanto, embarcou numa situação muito difícil, está a viver apenas os seus fantasmas, só pode reclamar de si porque teve todas as oportunidades do mundo. Estamos há quase vinte anos sem guerra, vinte anos sem Jonas Savimbi que é tido como o senhor da guerra, vinte anos de governação só do MPLA. O país falhou, as culpas só podem ser do MPLA.

 

O ex-Presidente José Eduardo dos Santos regressou a Angola numa altura em que há protestos contra o MPLA. Há quem questione este “timing”....

Ele tem uma agenda particular, de família, veio apenas para um mês e o MPLA tem um congresso em Dezembro. José Eduardo dos Santos é uma peça fundamental porque é o líder do grupo dos “eduardistas”, como o Joao Lourenço pode ser considerado líder do grupo dos “lourencistas”. O MPLA está dividido.

Se Eduardo dos Santos vem apenas para um mês significa que não vem para o partido, vem para uma agenda familiar. Se ele viesse na época do congresso, poderia significar ou a reunificação do MPLA ou o agudizar do desarranjo porque supunhamos que no congresso de Dezembro exista mais do que um candidato e que esse tal candidato seja apoiado pelo Eduardo dos Santos. João Lourenço começaria a ter menos hipóteses de controlo do partido e, portanto, eu acho que se avizinha uma ruptura muito forte no MPLA. Os protestos são contra o MPLA, Eduardo dos Santos foi um dos presidentes do MPLA, está desavindo com o actual Presidente do MPLA, então as coisas não estão bem para o MPLA.