Luanda - O programa radiofónico Angola Combatente, que era transmitido a partir de Brazzaville, durante a Luta de Libertação Nacional que conduziu o país à Independência, teve uma grande influência na consciencialização e mobilização dos angolanos para a luta. O nacionalista Adolfo Maria, que durante algum período assumiu a direcção do programa, fala deste importante instrumento, do processo de luta, dos problemas internos nos movimentos de libertação, do 25 de Abril e da Independência.

Fonte: JA

"Discordo da ideia de que o 25 de Abril
salvou os movimentos de libertação"

O senhor é conhecido pela sua participação na luta pela Independência de Angola. Em 1959, foi preso pela PIDE por actividades anti-coloniais. Fale um pouco da sua trajectória política.

A minha participação no combate cultural, político e armado do povo angolano contra a dominação colonial em Angola e pela independência do país passou, na década de 1950 e início da de 60, pela Sociedade Cultural de Angola (pertenci à sua direcção) e ao jornal Cultura (fiz parte da redacção, com Luandino Vieira, António Cardoso e Henrique Guerra, entre outros). Militava nos grupos políticos clandestinos PCA e MLNA, que, como várias outras organizações nacionalistas, foram desmanteladas pela polícia política fascista portuguesa, a PIDE, através de prisões maciças de nacionalistas, iniciadas em Março de 1959 e que duraram todo esse ano. Em 1962, parti para o exterior para integrar a luta nacionalista que passara à fase armada. Estive em Argel, a partir de 1963, e participei na formação do Centro de Estudos Angolanos de que era um dos dirigentes, a par de Henrique Abranches, João Vieira Lopes, Mário de Almeida (Kasessa) e Artur Pestana (futuro Pepetela).


E o que é que se fazia nesse centro?

Este Centro produziu muitas publicações destinadas à guerrilha, manuais escolares, uma História de Angola, Manual de Alfabetização e Guia do Alfabetizador, propaganda da luta de libertação. Em 1969, fui transferido para a Segunda Região Político-militar do MPLA, onde assumi a direcção do programa Angola Combatente. Nessa Região, também colaborei na educação e na formação política. Em 1973, participei no movimento de reajustamento nas bases Esperança e Kalunga, que era a maior base guerrilheira da Segunda Região. Actuei como militante activo, ou seja animador-coordenador, fazendo parte da equipa constituída por três camaradas: Lúcio Lara, Condesse (Joka-Toka) e eu. Em início de 1974, participei com outros militantes na criação de uma tendência, apelidada de Revolta Activa, que propunha uma discussão profunda e alargada da grave situação em que se encontrava o MPLA e procurando soluções. Entre os elementos que assinaram o manifesto que lançou a Revolta Activa estavam Gentil Viana (o seu impulsionador), comandante Monimambo, reverendo Domingos da Silva (vice-presidente do MPLA), Ana Wilson, Amélia Mingas, Jota Carmelino, Céu Reis, Manuel Videira, João Vieira Lopes, António Menezes, Toi-Toy, Kivuvu, Helena Maria, Mário de Andrade, Eduardo Macedo Santos, Hugo de Menezes e eu. A partir dos acordos de Alvor, essa tendência deixou de existir. Cinco meses após a Independência, em Abril de 1976, a direcção do MPLA mandou prender vários elementos da Revolta Activa e consegui esconder-me da DISA, a polícia política do regime implantado com a Independência. Estive nessa situação mais de dois anos e meio. Após a amnistia de Setembro de 1978, revelei, em Novembro, que estava vivo e tuberculoso. A DISA colocou-me dois meses preso no domicílio e depois transferiu-me para a prisão da Casa da Reclusão. Finalmente expulsou-me do país, em fins de Janeiro de 1979. Em Portugal, em meados da década de 1980, juntamente com Gentil Viana e Mário de Andrade formámos um Grupo de Reflexão que procurou contribuir para o fim da guerra civil em Angola. Depois dos Acordos de Bicesse entre os dois contendores, acompanhei Gentil Viana em viagens a Angola, em Novembro de 1991 e Maio de 1992, para apresentar um plano de convivência nacional concebido por Viana. Recomeçada a guerra civil, não voltei a Angola, mas estou sempre em contacto estreito com a informação, a situação do país e vários angolanos. No exílio, em Portugal, além de publicar livros e alguns artigos na imprensa angolana, participo em conferências sobre África e Angola e sou comentador residente do programa Debate Africano da RDP África.

 


Durante algum tempo dirigiu o programa radiofónico do MPLA Angola Combatente e o Departamento de Informação e Propaganda. Fale um pouco deste período. Com quem trabalhou directamente e em que circunstâncias dirigiu o programa?

O presidente do MPLA, Agostinho Neto, que ordenara a minha transferência para a Segunda Região Político-Militar, explicou-me que, a partir de Outubro de 1969, o governo congolês tinha concedido emissões diárias e com maior duração do programa Angola Combatente, que era emitido pela Rádio Nacional do Congo. Neto falou da importância da propaganda na nossa luta e disse que eu iria dirigir o programa Angola Combatente. A rádio fazia parte do DIP (Departamento de Informação Propaganda), que era dirigido por um membro cooptado do Comité Director, Roque Tchiendo. O período em que dirigi a Rádio foi muito exaltante. Traçou-se uma estratégia, de que eram pontos fundamentais: a propaganda dirigida às populações angolanas e sua mobilização para a luta pela Independência, programas de formação militante para elevar o nível político dos guerrilheiros nas bases e dos militantes no interior, combate à poderosa propaganda radiofónica do regime colonial. Para ser eficaz, a Rádio tinha de emitir no maior número possível de línguas nacionais, além da língua portuguesa. Por isso, vários camaradas, mesmo com pouca instrução, aprenderam a dactilografar e redigir. Além das emissões radiofónicas foram publicadas brochuras com os programas emitidos de formação política. Também fui responsável pelo jornal Vitória ou Morte, uma publicação de periodicidade irregular. Em Maio de 1972, uma revolta de militantes em Brazzaville, invocando razões de ordem racial, exigiu o meu afastamento da rádio Angola Combatente. Perante a pressão, a direcção do MPLA aceitou as exigências dos revoltosos.


Na rádio Angola Combatente, as mensagens eram codificadas. Como por exemplo."Atenção Luanda, a galinha chegou bem". Tem conhecimento de algumas mensagens que foram descodificadas pelas autoridades coloniais?

Para as emissões diárias de Angola Combatente, além do que redigíamos, eram emitidos de vez em quando comunicados de guerra e mensagens que o Comando da Região nos enviava para lermos. Só o Comando e a quem era dirigida é que sabiam o que significava cada mensagem. Umas certamente eram dirigidas para camaradas que estavam em trabalho clandestino no Congo-Kinshasa ou para a Primeira Região. Não sei se alguma vez as nossas mensagens foram descodificadas pelas autoridades coloniais. A partir de 1970, o MPLA passou a ter transmissões telegráficas através dos SRT (Serviços de Rádio e Telecomunicações) que permitiam comunicações entre Brazzaville e Lusaka. Estes serviços funcionavam com códigos muito secretos e certamente que as autoridades coloniais gostariam de os decifrar. Mas não há notícia de o terem conseguido. Como curiosidade, direi que estes Serviços começaram a funcionar numa sala das instalações do MPLA no distante bairro do Mpila, de Brazzaville, onde também estava o DIP. Por isso, durante certo tempo convivi com José Eduardo dos Santos, vice-responsável dos SRT ali, sendo o responsável o falecido Fernando Paiva.



O 25 de Abril dá-se numa altura em que os movimentos de libertação estavam numa situação difícil do ponto de vista logístico e de material de guerra. Há quem diga que o 25 de Abril salvou os movimentos de libertação. Qual era a real situação na altura?

Quando se deu o 25 de Abril de 1974, os movimentos de libertação não estavam numa difícil situação logística, nem de carência de material de guerra. Estavam, sim, em muito má situação organizacional. As estruturas eram débeis e o seu funcionamento era precário. Estratégias erradas tinham levado a opções militares e políticas menos adequadas que se reflectiam na desorganização quase generalizada; no descontentamento de militantes, quadros e populações; no êxito das ofensivas do exército colonial; no desânimo que atingia muitos militantes e quadros; e, ainda, em actos de revolta. Em 1972 tinha havido uma revolta do Estado-Maior da FNLA, que foi afogada em sangue. Também nesse ano houve a revolta de militantes do MPLA em Brazzaville, que já referi. Outras tinham sucedido anteriormente na Frente Leste, a do Gibóia, por exemplo. Nesta frente, foram mandados fuzilar pela direcção do MPLA comandantes como o famoso Paganini. Em início de 1973, rebentou a revolta de militantes e populações de que Chipenda viria a assumir a chefia dando-lhe o nome de Revolta do Leste. Em 1974, nasce na Segunda Região um movimento de contestação que se chamou Revolta Activa.


Dito isto, discordo completamente da ideia de que o 25 de Abril em Portugal salvou os movimentos de libertação. Porquê? Porque o exército português, que se batia em três colónias, estava no limite da sua capacidade logística e anímica. Já tinha perdido a guerra na Guiné-Bissau, frente ao PAIGC. Em Moçambique, fracassara a operação militar portuguesa chamada Nó Górdio contra a Frelimo e esta conseguira instalar-se a Sul do rio Zambeze.


No que respeita à situação em Angola, é verdade que as forças nacionalistas estavam em grande refluxo e as forças colonialistas tinham a iniciativa. Mas essa situação seria temporária. Porquê? Porque além da situação geral do exército português, que referi, a guerrilha seria relançada em Angola logo que os movimentos nacionalistas se reorganizassem. Relançada a guerrilha com nova estratégia, as forças repressivas coloniais passariam a uma situação defensiva que não poderiam sustentar durante muito tempo. Aliás, não foi por acaso que quem virou a situação política em Portugal foram os militares portugueses que fizeram as guerras coloniais e muitos deles até tinham sido condecorados por acções em combate. Eles sabiam, por experiência própria, que a saída para o problema colonial não podia ser militar, teria de ser política.


Quais foram os piores momentos que viveu naquela altura?

O primeiro foi ver como se degradava a situação no MPLA e o colocava numa situação difícil para enfrentar a possibilidade, então bem patente nos dias que se seguiram ao 25 de Abril, de as novas autoridades portuguesas, especialmente Spínola, tudo fazerem para deixar de fora o MPLA. Depois foi ver a Direcção do MPLA recusar obstinadamente discutir os graves problemas do Movimento, impor a sua vontade e ter como único objectivo tomar o poder em Angola e dele ser dona absoluta.


Durante a luta de Libertação Nacional o MPLA enfrentou muitos problemas. Revolta Activa, de que o senhor participou, Revolta do Leste... O MPLA chegou às cidades dividido. Como se pode explicar isso?

Parte do que relatei nas respostas às perguntas anteriores já esclarece o essencial. Recordo apenas que o MPLA teve várias crises: a primeira foi a de 1962 que levou à ruptura entre Agostinho Neto e Viriato da Cruz (o fundador do MPLA, juntamente com Mário de Andrade). Há várias razões para essa crise: forte incompatibilidade de personalidades, estratégias diferentes, conjuntura externa muito pressionante (UPA-FNLA e Congo-Kinshasa). Depois desta crise, a demasiada centralização dos poderes no presidente contribuiu para que muitos problemas não fossem discutidos e favoreceu o aparecimento de outras crises. Essa centralização viria a dar origem a uma deriva autoritária que se reflectiu duramente no país já independente.


Hoje já está reconciliado com o partido que ajudou a erguer?

Nunca estive «zangado» com o MPLA. Identificava-me plenamente com os seus princípios progressistas e dei-me inteiramente à luta de libertação nacional e ao engrandecimento do Movimento. Por amarga experiência fui vendo como a prática estava longe dos princípios. Fiquei desiludido com alguns dirigentes. Tentei, com outros camaradas, discutir os problemas e ajudar a encontrar soluções. Em vão. A última resposta da direcção veio já depois da independência de forma despropositada, meramente vingativa, que nos infligiu muito sofrimento. Descrevi o meu caso no livro Angola – sonho e pesadelo e em livro de poemas feitos quando estava escondido da DISA. Mas superei a mágoa porque sempre fui e sou um patriota. Acima de tudo interessa-me o progresso de Angola e do seu povo.
Desde 1979, quando fui expulso, deixei de fazer militância política. Não pertenço a qualquer partido, nem estou empenhado em fazer oposição política. Apenas faço análises, exponho as minhas ideias e procuro contribuir para que se aprofunde o conhecimento sobre Angola e se reforce a cidadania no país.


Onde esteve exactamente no momento da proclamação da Independência?

Estava em Luanda, em casa com a minha mulher, a Helena Maria (que tanto tinha participado na luta) e os meus filhos Mário Jorge e Tonica. Claro que vivemos com muita emoção esse momento da proclamação da Independência de Angola, pela qual eu me dera desde muito jovem.


Angola tem tudo para ser um país de prosperidade

46 anos depois da proclamação da Independência, o que gostaria de ver realizado?

O fundamental e patriótico objectivo que era a conquista da independência foi conseguido pelo povo angolano, em 1975. Ficou liberto da dominação colonial portuguesa. Depois, era necessário fazer de Angola um país próspero, um Estado de justiça social e garantindo os direitos e liberdades dos cidadãos. Isso ainda não foi conseguido.


Respondendo directamente à pergunta, eu gostaria que, hoje, Angola fosse um país onde não houvesse a desigualdade social que há; um país onde as populações usufruíssem plenamente de bens sociais como a saúde, a educação, a protecção social; onde fosse pleno o funcionamento da democracia; um país de forte economia que a todos aproveitasse. Portanto, um país bem diferente do que, infelizmente, é actualmente. E Angola tem as riquezas naturais, a resiliência das suas populações e gente capacitada para ser um país de prosperidade e justiça social num quadro de pleno usufruto de direitos e liberdades pelos seus cidadãos.


Angola realiza, no próximo ano, eleições gerais. Qual é a sua expectativa?

A situação económica, social e política é complexa. Há quatro anos, o presidente do país, João Lourenço, iniciou de forma auspiciosa o seu mandato, traçando orientações políticas que indicavam mudanças significativas no estilo e conteúdo da governação. Hoje, os resultados estão aquém das expectativas então criadas. O chefe do Executivo recebeu uma pesada herança do consulado anterior: desde a endémica corrupção a erros governativos que impediram melhor aproveitamento das enormes receitas do petróleo ao longo de tantos anos. Por outro lado, a conjuntura económica tem sido desfavorável: baixa de cotação do petróleo e as gravosas consequências da pandemia da Covid-19. Há uma nítida degradação das condições de vida das populações, o que faz subir o descontentamento. Por outro lado, o crescimento galopante da população deu nova fisionomia sociológica ao país, onde, hoje, a grande maioria da população é constituída por jovens, os quais enfrentam graves problemas; muitos desses jovens estão desencantados com o poder. É neste quadro que se vão realizar as eleições gerais de 2022. O MPLA, habituado ao controlo da vida económica, social, cultural e política do país, tudo fará para manter o seu poder (e tem grandes meios para o fazer). A oposição, concretamente a UNITA, tem capitalizado vários descontentamentos e aspira fortemente ao poder. Penso que o combate político, que já está vivíssimo, vai endurecer muito mais. Prever resultados eleitorais não é possível, mas fica o meu desejo de que o combate político, que é legítimo, não degenere em actos atentatórios da segurança das pessoas e das liberdades individuais, aliás consagradas na Constituição.


Como tem acompanhado os últimos desenvolvimentos em Angola?

Na questão anterior já descrevi alguns aspectos do contexto actual. No combate político estão envolvidos o MPLA, a UNITA e partidos menores e, ainda, vários movimentos inorgânicos. Neste combate, têm sido ignoradas ou atropeladas algumas normas democráticas, o que é bem evidente na comunicação social estatal (pelo menos em alguns órgãos) e na actuação de algumas instituições. Isto é consequência da concepção do poder que prevalece no partido governamental e da sua prática desde a Independência; também das lacunas ou omissões existentes na Constituição, onde não está suficientemente definida a separação dos três poderes: executivo, legislativo e judicial. O resultado é a existência de uma zona cinzenta que permite vários equívocos e protestos mais ou menos agressivos que podem criar situações complexas. Apesar da efervescência política (e sobretudo por isso) é necessário que haja serena reflexão, debates esclarecedores. Reputadas personalidades da sociedade civil podem dar valiosa contribuição nesse sentido. É bom que aqueles que estão empenhados na luta política saibam ouvir essas personalidades