Rio de Janeiro - Iraque e Suécia, Filipinas e Uruguai, Paquistão e Canadá: o governo dos EUA não seguiu uma regra rígida ao definir os 110 países convidados para a sua Cúpula pela Democracia, e mesclou entre os participantes democracias vigorosas com governos de características bastante autoritárias.

*André Duchiade
Fonte: O Globo

Ao escolher quem chamar para a cúpula, uma promessa de campanha de Joe Biden, a ser realizada de modo virtual nas próximas quinta e sexta-feira, outro problema acabou sendo posto em evidência: as dificuldades para se definir o que é um regime autoritário hoje, para além das ditaduras clássicas, e o que constitui uma democracia sólida.

— No século XX, eram mais comuns os Estados e as ditaduras de partido único. Agora, muitas vezes os autocratas chegam ao poder através de eleições, e a transformação de uma democracia em uma autocracia é gradual — afirmou Ruth Ben-Ghiat, historiadora da Universidade Nova York e autora de “Strongmen: Mussolini to the Present”. — As pessoas não estão preparadas para isso. Elas ainda esperam um evento, como um golpe de Estado, para entender que as coisas não vão bem. Mas não há um critério único.

Segundo o relatório de 2021 da Freedom House, que mede a qualidade das democracias globalmente — há 15 anos, a situação global piora sem interrupção —, dos convidados, 76 países classificam-se como “livres” ou “totalmente democráticos”. Trinta e um recebem o rótulo de “parcialmente livres”. Outros três estão no campo “não livre”.

Há uma diferença expressiva na avaliação dos países que foram ou não convidados: a média da pontuação no ranking dos chamados é de 78 (o máximo é 100), enquanto, entre os que ficaram de fora, é de 32,8.

Essa média, no entanto, obscurece que, entre os classificados, há tanto Finlândia, Noruega e Suécia, que tiraram 100, quanto a República Democrática do Congo, que obteve 20, o Iraque, com 29, e Angola, com 31 (o Brasil perdeu pontos nos últimos anos, e a média brasileira é de 74).

É possível apontar casos óbvios entre os excluídos: monarquias absolutistas não foram chamadas; os principais rivais americanos no campo antidemocrático China, Coreia do Norte, Irã e Rússia não foram convidados; Cuba, Nicarágua e Venezuela tampouco; ditaduras militares, recentes ou antigas, do Egito a Mianmar, também não foram chamadas.

Casos mais ambivalentes, porém, chamam a atenção. Rodrigo Duterte, o presidente filipino que se elegeu e pôs em prática uma política de extermínio extrajudicial de suspeitos de crimes, está entre os convidados — o país realiza eleições em 2022, e, segundo Steven Feldstein, pesquisador do Fundo Carnegie para a Paz Internacional, Biden entende que chamá-lo pode “gerar incentivos para eleições justas”.


O líder húngaro Viktor Orbán, por sua vez, não está na lista de convidados — Orbán também enfrenta eleições no ano que vem, e, segundo o pesquisador, um convite para ele poderia emitir um sinal contrário, de legitimidade. É também este o caso de Recep Tayyip Erdogan, na Turquia. Já o governo polonês do Lei e Justiça (PiS), de deriva autoritária mais recente, foi incluído.

— A deterioração democrática na Polônia não é tão significativa e longa quanto na Hungria. Ano que vem, Orbán concorre em eleições contestadas, e convidá-lo seria como legitimá-lo — afirmou Feldstein.

 

Sem critério único

Mas como, afinal, classificar quando um regime é autoritário? Na falta de um critério único, muitos pesquisadores defendem ser necessário pensar em políticas específicas, sem marcos definitivos:

— É um espectro, sem distinções duras. Na maioria dos casos, os países estão entre os extremos, entre serem regimes autoritários e democracias plenas — afirmou Luke Turner, pesquisador do instituto Ideas da London School of Economics. — São distinções fluidas, e os países mudam constantemente para se tornarem mais ou menos autoritários. Agora, vemos em toda parte uma tendência de crescimento do autoritarismo. Mas são algumas características, não todas.


Turner cita critérios comuns para a avaliação da qualidade democrática: liberdade de imprensa e expressão, direito de manifestação, direito de organização política, eleições livres. Seu entendimento, porém, vai além, e nota características antidemocráticas em lugares pouco comentados, como o Japão. O pesquisador considera o país asiático como sendo semiautoritário, e não democrático de fato:

— Praticamente nenhuma pessoa que é formalmente acusada em um processo judicial no Japão é inocentada. Este é um Judiciário totalmente distante do que entendemos ser um Estado de direito. Não se pode dizer que haja Estado de direito de fato no Japão — afirmou.

Em vistas da falta de definições estanques, a cientista política Marlies Glasius, da Universidade de Amsterdã, propõe que o foco da pesquisa mude do que constitui um regime autoritário para priorizar em vez disso como acontecem práticas autoritárias.

 

Uma prática autoritária, segundo ela, é algo que “sabota a prestação de contas e a responsabilização”. Esta mudança permite pensar tanto o autoritarismo em regimes duros quanto no âmbito de democracias liberais, "para além das eleições, que geralmente são entendidas como o momento onde tudo se define, sem que de fato seja assim".


— Muitas formas de autoritarismo hoje acontecem disfarçadas sob a noção de interesse nacional. Qualquer questão ligada à segurança envolve muito segredo e não é claro o que acontece neste caso. Muitos abusos acontecem em nome disso — afirmou Glasius.

Ela cita a desinformação propagada por líderes populistas de direita como Donald Trump e Jair Bolsonaro — também convidado à Cúpula para a Democracia de Biden, e que já confirmou sua participação — como outra prática antidemocrática muito característica ao nosso tempo.

Práticas que ferem a dignidade e a liberdade dos indivíduos, que Glasius conceitua como “práticas iliberais”, são apontadas como outra enorme ameaça à liberdade. Entre os casos estão práticas que violam a liberdade de expressão, o direito à integridade física, direitos a um julgamento justo, liberdade de religião e direito à privacidade.

— Há práticas que violam os direitos humanos que têm muito apoio de populações locais. Este é um problema ainda maior, porque parte de uma concepção de democracia que equivale à vontade da maioria. Parte da ideia de que a democracia deve seguir a vontade majoritária, sem respeitar direitos fundamentais das minorias.