Lisboa - É de forma desassombrada que Sebastiana Valadas se orgulha de ter sido agente secreta da PIDE (polícia política) no auge da guerra colonial. “Se não fossemos nós, os “turras” (terroristas) teriam matado muita gente! Nós conseguimos destruir a 4.ª Região Militar do MPLA!! Não ficou nem um – fugiram.”

Fonte: Expresso

“Não tivemos escolha. Mandavam-nos para o Tarrafal”

Sebastiana e o marido eram comerciantes em Cassai-Gare, uma povoação isolada no Leste de Angola, a mais de 1000 quilómetros de Luanda. Em 1968, quando a guerrilha se instalou na zona, passaram a fornecer-lhes mantimentos. Sal, tabaco, óleo, sabão e gasóleo eram essenciais para quem vivia no mato. Quando a PIDE descobriu que o casal ajudava o inimigo, forçou-os a tornarem-se informadores. “Não tivemos escolha. Ameaçaram-nos que nos mandavam presos para o Tarrafal.”


Atribuíram a Avelino Durães – marido de Sebastiana – um nome secreto: “Ferro”; e combinaram os códigos para o envio de mensagens cifradas. Os relatórios da PIDE revelam que passava informações pormenorizadas sobre a localização de acampamentos (que tinham nomes como “Venceremos”, “Vingança” ou “Ho Chi Minh”), armamento, rotas de abastecimento e os nomes dos guerrilheiros – “Metralhadora”, “Limpa tudo”, “Longa Marcha” eram algumas das alcunhas.


Cassai-Gare, situada dentro da reserva extensa de caça da Cameia, resumia-se à estação de comboio e quatro casas – todas de familiares de Sebastiana. Quando os guerrilheiros pretendiam abastecer-se, enviavam recado por um emissário. No dia e hora combinado (sempre de noite) apareciam, em grupos de seis ou sete. Se a luz da casa de banho estivesse acesa, era o sinal de que o caminho estava livre. “Jantavam connosco! E muitas vezes ficavam por lá a beber e a jogar às cartas com o meu marido. Só que a PIDE entregava-nos comprimidos para colocarmos nas garrafas de vinho e eles, ao fim de um bocado, ficavam a dormir como se estivessem mortos, horas a fio. Vinham os militares, carregavam-nos ao ombro, metiam-nos no comboio e só acordavam na cadeia!”


Ninguém desconfiava porque Sebastiana e o marido escolhiam criteriosamente a cadência e a altura certas para as capturas e faziam também jogo duplo. Por vezes ajudavam guerrilheiros, escondendo-os em sua casa ou iam à PIDE pedir a libertação de algum deles. “Nós não queríamos que morresse ninguém. Tinham de ser presos, não tinham que ser mortos!” Mas não conseguiam evitar o que se passava na cadeia. “Davam-lhes lavagens ao cérebro, que eu sei lá. Queimavam-lhes as unhas, a outros tiravam-lhe um dedo, picavam-nos, torturavam-nos mesmo. A um rapaz marcaram-lhe a fogo o mapa de Angola nas costas!”


A PIDE angolana, dirigida por São José Lopes, que tinha uma eficaz rede de informadores, reconheceu que o colaborador “Ferro” era “astuto” e Sebastiana considerada “não menos esclarecida e agressiva na obtenção de notícias”. O casal passou então a receber cerca de 4 contos de ordenado mensal, uma soma assinalável à época. De cada vez que uma operação resultasse em cheio, obtinham ainda gratificações que podiam ir de garrafas de whisky até montantes elevados, como sucedeu, em 1972, com a operação “Fina Flor”, em que receberam 30 contos. Nesse dia, morreram 3 guerrilheiros e 6 foram capturados. Entre eles estava João Saraiva de Carvalho – o “Tetembwa” -, hoje general angolano reformado. Foi um valioso trofeu de guerra. Era estudante universitário em Coimbra e quando foi mobilizado para a guerra, desertou, aderindo à guerrilha. Quando o prenderam, na loja de Sebastiana, estava a pôr tabaco para dentro de um saco e não teve tempo de reagir. “Queria levar tudo para a mata, como se fosse um senhor muito fino: pasta de dentes, papel higiénico, queria tudo.” A operação “Fina Flôr” foi uma machadada importante para o MPLA, que ficou de sobreaviso, ao ponto da PIDE ter avisado o casal: “correm perigo, pelo que convém que se acautelem ao máximo”.

 

Tetembwa ficou preso na cadeia de Luanda até à descolonização. Em 1975, quando descobriu que Sebastiana e o marido tinham permanecido em Angola, mandou prendê-los. “A mim não me fizeram mal, mas o meu marido foi muito martirizado: tortura do sono, da estátua, esbofeteado… Queriam que ele confessasse…”.


Cinquenta anos depois, são estas duras memórias que Sebastiana não se cansa de contar. Tinha 8 anos quando os pais a levaram do Alentejo para Angola, terra pela qual ainda morre de amores. “Gostava mais de ser angolana.” O regresso a Portugal, como “retornada”, fez-se de trabalhos em restaurantes, minimercados e limpezas domésticas. Entre as maleitas da velhice, a quase cegueira e a solidão da viuvez, o que a magoa mais é a miséria. Por vezes não tem dinheiro para pagar a água, nem a luz. E não tem pejo em afirmar que o país a devia ter apoiado. “Só servimos de carne para canhão, lá. Mais nada. Quem é que estava a arriscar a pele? A nossa casa era no mato, sem defesa! A PIDE estava no Luso, na cidade. Portanto, eu devia até ter uma pensão pelo trabalho que eu fiz sempre com o meu marido, porque não foi o meu marido sozinho.”