Lisboa -  A poesia não costuma fazer manchetes, mas por estes dias muitos foram os que repetiram o nome desta poeta (e não poetisa, como a própria sublinha): Alice Neto de Sousa. Tem 28 anos e é no palco, onde pode ser lida e ouvida, que mais gosta da poesia.


*Catarina Reis
Fonte: Amensagem.pt


Não se apercebeu do fenómeno até ele ser maior do que ela própria. “De repente, começo a receber mensagens de amigos, a responder a pedidos de entrevistas.” Um pequeno caos instalou-se, por estes dias, na vida pacata de Alice Neto de Sousa. Não é a primeira poeta a dar uma entrevista, mas poderá ter sido a única capaz de pôr todos a falar de poesia, aquela que diz ser habitualmente “a prima afastada da qual ninguém quer saber, senão os poetas”.

 

É possível que já lhe tenha passado este vídeo pela frente: uma emissão do programa “Bem-vindos”, da RTP África, onde uma mulher de 28 anos declama um poema de cor e salteado, escrito por ela, sobre o momento em que uma criança descobre que os lápis com que se prepara para pintar têm uma cor chamada “cor de pele”.

 

Bege, quase branco, uma cor pálida. “Olhava para o lápis, olhava para a [minha] pele / Olhava fixamente para aquele lápis cor de pele / Naquele dia desisti de falar de unicórnios e fazer citações”, recita a mulher de cor negra. “Podia ser menos uma poeta a falar sobre racismo.”

 

E não são os versos antirracistas que definem a arte que produz, mas foi com estes que o nome de Alice passou a ser conhecido, partilhado por milhares nas redes sociais.


“Nem imaginam quantas vezes repeti estes versos, em casa, até saírem como vocês os ouviram”, conta. De tanto repetir, acertou no tom e o poema saltou fronteiras até Angola, onde Alice tem raízes (apesar de nunca lá ter estado). Os familiares, lá longe, não ficaram indiferentes. “Apresentei-me como poeta à família de Angola.”

Quem conhece esta mulher, nascida em 1993 na antiga freguesia lisboeta de São Sebastião da Pedreira, sabe que sempre escreveu poemas, mas nem sempre se definiu como uma poeta. Poeta, sim, poetisa não, como prefere não ser chamada, acreditando no caráter “pejorativo” com quem tantas vezes o termo é utilizado. Aliás, a primeira vez que falou em público e acabou aplaudida foi como aluna de mestrado de Psicomotricidade, convidada pelo professor e escritor Gonçalo M. Tavares a ler um trecho do seu livro “Uma Menina Está Perdida no Seu Século à Procura do Pai”.

A estreia em palco aconteceu apenas há poucos meses, quando Alice Neto de Sousa declamou versos que escreveu sobre as prostitutas do Martim Moniz.


Combinámos encontro no Jardim da Cerca da Graça. Avisto Alice e tiro a máscara que tenho no rosto para que ela me reconheça. “Agora, já uso lentes”, justifica, para lembrar que as pessoas e as coisas nem sempre foram nítidas para ela. O que viríamos a saber minutos depois é que a miopia e o astigmatismo com que lida desde criança – tardiamente diagnosticados – fizeram de Alice a poeta que é hoje, mais atenta a outros sentidos além do olhar.

Conta como quando, “na escola primária, não conseguia ver as pessoas” e teve que encontrar alternativas para se orientar e distingui-las. “Era pelas formas, pelos andares. Tive ali aquele espaço de tempo a criar esta minha perceção do mundo e, às vezes, penso que isso também tem alguma influência na minha parte mais criativa. Sem querer romantizar o ver mal.”


Por isso é que quase não guarda memórias visuais desses tempos, turvos à vista. O que ficou são “coisas tão banais” e “até estranhas” como “estes barulhos das folhas” que ouvíamos atrás de nós durante a entrevista. “Há vários lados da poesia em mim e um deles é o da contemplação, de sentir o mundo, que eu devo ter ganho aí.”

 

Também por isso diz que se tornou uma poeta “mais para dentro do que para fora”, centrada nas suas questões pessoais internas, naquilo que lhe ia na cabeça. E que, por vezes, assustava até os adultos, quando no final das aulas, surpreendia os professores com poemas para lerem, onde jaziam versos como: “as unhas cravadas no corpo”. “Perguntavam-me logo se estava tudo bem. E estava, mas era assim que eu pensava. Pensava muito sobre tudo.”

E quando ainda não sabia escrever sobre o que pensava, abria o Livro de Mágoas, de Florbela Espanca, e “via ali tudo o que sentia”. “Porque é como se fosse sobre mim. O poema ‘Eu’ é sobre mim.” Foi a primeira autora de quem leu poemas. Leu-os tanto que hoje sabe-os de cor.


Desde criança, “a poesia foi a forma de lidar com os problemas e inquietações”. “Não tenho problemas em dizer que venho de raízes humildes”. Nem que partilhou casa com mais três irmãs, que houve dias em que falhou aulas para poder cuidar das mais novas e que, em pequena, negou entrar no Planetário porque sabia que a mãe não tinha dinheiro para pagar aquela visita de estudo.

Ainda assim, nunca viu as asas cortadas e procurou ensinar às irmãs a importância de seguir sonhos, como o de ser poeta. “Sempre as incentivei. Podem procurar uma área em que querem trabalhar, mas qual é a vossa identidade quando saem do trabalho? Porque a vida é muito mais do que isto. Além de trabalhar em psicomotricidade, eu sou a Alice, a poeta.”

E se há exemplo que lhes deu nos últimos meses é que, mesmo quando parece que não se abrem portas para esses sonhos, nós podemos criar uma nova porta. Foi com isto em mente que redigiu um e-mail para a RTP África (além de outros meios, rádio e TV, dos quais nunca teve resposta) e foi chamada para criar um espaço na televisão onde recita poesia mensalmente.

Alice não só escreve, ela vai a batalhas com os poemas

Já tinha estado no estúdio da RTP, em visita de estudo, quando era aluna do secundário, onde lhe fizeram crer que poderia ser jornalista. Não teve média nem “alguém que dissesse que alcançar determinadas notas ajudariam a chegar a um determinado curso”. Esteve até quase para ser, então, contabilista, trocar os versos pelas folhas de Excel, mas rapidamente desistiu da ideia.


Chegou a ser incentivada para o teatro, mas sentiu que não tinha recursos para sequer se apresentar “como eles queriam”. “Não tinha dinheiro para ir até lá, onde era a audição, não podia ir comprar uma roupa nova nem maquilhagem.”

Pensou na área da saúde, mas não tinha os exames para enfermagem ou medicina, e na da educação, “talvez por causa das irmãs”, de quem se habituou a cuidar. Juntou estes dois últimos e acabou por se formar em Psicomotricidade. Hoje, trabalha na área da surdo-cegueira numa instituição (que Alice prefere não mencionar). Nunca quis o trabalho de clínica, “sempre foi mais aliar a área a uma vertente social”. Não será de estranhar, por isso, que o mestrado fosse feito sobre delinquência juvenil. É com os jovens adultos que mais gosta de trabalhar.

Mas, olhando agora para trás, lembra que tudo o que lhe passou pela cabeça exercer quando fosse adulta vinha de valências que ela tinha e que, anos mais tarde, a puseram no palco, a ler os poemas que antes só tinham morada no papel.

O primeiro a incentivá-la a ler o que escrevia em voz alta foi Gonçalo M. Tavares, professor de mestrado, na disciplina “Corpo, cultura e pensamento contemporâneo”. “Uma daquelas de que alguns não gostavam, mas que eu adorava, porque estava ligada à literatura”, lembra. O escritor lançou aos alunos um desafio: escreverem qualquer coisa, apresentarem e, se fossem os melhores, iriam ler na apresentação do mais recente livro que estava para publicar. “Foi a primeira vez que recebi palmas.”

 

Gonçalo M. Tavares viu ali algo e, quando Alice finalizou o mestrado, o autor escreveu nas suas fitas de estudante que “ia fazer coisas grandes e fortes”.

Terá sido premonitório, porque foi só o espoletar do que viria a ser a Alice de hoje, já habituada às palmas. Entretanto, embrenhou-se no mundo popular da poesia e descobriu o que chamam de Poetry Slam, um concurso que põe poetas frente a frente, num palco, a recitar os poemas que escreveram, para depois serem avaliados por um júri.


“Se acham que o que eu faço na RTP é bom, nem imaginam a qualidade do que aparece ali”, diz. Acredita que teve apenas a sorte de ter um palco ainda maior, que é o da estação televisiva pública, e que este é o caminho para “dar mais visibilidade ao que já está a acontecer muito antes” de todos terem reparado no que a Alice faz.


Para ela, o Poetry Slam regista uma viragem no tempo. “Há um antes e depois do Poetry Slam na minha forma de fazer e ver a poesia.” É pela importância que passa a dar mais às palavras, para depois serem entoadas no tom certo. “Quando se sentam para te ouvir, as pessoas querem ser mexidas por dentro.”

 


A descoberta de Lisboa como inspiração


Está a viver num bairro histórico de Lisboa, mas confessa que a vida é um vai e vem tal, que mal conhece o lugar onde tem morada. Foi obrigada pela pandemia a olhar mais para a Lisboa que a rodeia. “Passei a passear muito por Lisboa e a pensar mais nela. Inspirou-me muito ver esta cidade deserta. Ver espaços sem preenchimento, sem corpo. As pessoas fazem os lugares, passo o clichê.” E regista a maior das descobertas visuais: “Percebi que as paisagens estão sempre em construção, parece que nunca há uma paisagem acabada, há sempre uma grua ou andaimes para algo que está por nascer.”

Ainda não levou esses passeios para os versos que escreve, mas nem por isso esquece Lisboa nos poemas. Aquele que recita mais em palco chama-se “Capital” e fala sobre as prostitutas do Martim Moniz.

“Se eu ficar sempre conhecida apenas como a poeta que escreveu este poema, tudo bem”


Foi escrito por acaso. “A tendência de quando estamos a caminhar, a passar, é não olhar para o que está a nossa volta. E há muito que acontece que precisamos mesmo de olhar. Naquele dia, eu estava a tentar escrever um poema curto: quanto tempo vivem as borboletas. Mas não havia grande lógica no tema. E, se calhar, é por isso que elas [prostitutas] tiveram espaço para entrar na minha cabeça e no meu poema. Decidi olhar nos olhos desta senhora.” E não viu nada. “Era um vazio. Mas acho que não tem a ver com elas, tem a ver comigo. Eu é que não vi nada e escrevo isso: um olhar sem trago.”

Terá sido o mais perto que a profissão que exerce esteve da poesia que faz. “Passei a explorar nos meus poemas a forma como eu vejo o corpo.”

Este poema prefere ainda deixar na gaveta, sem revelar versos escritos. Prepara-se para, um dia, lançar um livro e diz já ter editoras interessadas no trabalho que faz. Mas não será a primeira vez que Alice deixa o nome na literatura. Em 2021, levaram o poema “Terra” para as páginas da coletânea “Do que ainda nos sobra da guerra”, publicado na editora Ipêamarelo. O nome do livro é, aliás, o último verso do poema que assina.


Para escrever o dela, diz ainda “ter que ler muito”, para “acrescentar algo à literatura, que não seja mais do mesmo”. Neste momento, tem Saramago e o Memorial do Convento na mesa de cabeceira.

Diz que não esperem que seja poeta antirracista. “Não faço disto ativismo”. Mas também não teme que fique para sempre rotulada como “a poeta que escreveu o poema ‘Poeta'”, apresentado na RTP África e pela primeira vez declamado na 1ª edição PowerList 100 na BANTUMEN, no início deste ano. Alice quer trazer outros assuntos, sobretudo sociais, aos versos que escreve. E continuar a ter espaço num palco qualquer por aí.