Lisboa - Nascido na capital de Angola, em Novembro de 1935, Gentil Ferreira Viana começou jovem, ainda no liceu de Luanda, a lutar pela identidade angolana nos moldes que eram possíveis naqueles tempos em que o fascismo português exercia feroz repressão política em Portugal e nas suas colónias. Seguia as pisadas do seu pai, Gervásio Viana, um dos fundadores da Liga Nacional Africana.

Fonte: Adolfo Maria

Em 1954 foi para Portugal fazer os seus estudos universitários (em Angola não havia então universidade), onde viria a concluir o curso de direito. Como estudante universitário participou em várias acções políticas em prol do nacionalismo angolano.

 

Possuidor de uma inteligência invulgar e de grande capacidade de análise propôs rupturas com a maneira como os vários estudantes e intelectuais “mais velhos” das colónias portuguesas entre os quais Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Lúcio Lara faziam política na metrópole colonial. Gentil Viana defendia a posição de que os nacionalistas das colónias portuguesas não deviam participar intimamente na luta política portuguesa mas, sim, organizar-se de modo autónomo para a luta anti-colonial e para o reforço do movimento nacionalista em cada uma das colónias portuguesas. Pondo em prática as suas ideias, Viana traçou um programa para que estudantes de consciência nacionalista tomassem a direcção da Casa dos Estudantes do Império, uma associação que albergava, no geral, elementos de uma minoria privilegiada e que o governo fascista pretendia que fosse apolítica. A partir de 1958 a “Casa” passou a ser dirigida por elementos nacionalistas de todas as cores da pele, predominando os mestiços e negros, e desenvolveu intensa actividade associativa e cultural, incluindo editorial. Assim foram editados escritos de Agostinho Neto, Viriato da Cruz, António Jacinto, Mário de Andrade, Craveirinha, Noémia de Sousa, entre outros.


Tendo eclodido a luta armada em Angola em 1961, alguns estudantes angolanos organizam e realizam uma fuga maciça clandestina a partir das cidades universitárias portuguesas de Coimbra, Porto e Lisboa para reforçarem os movimentos nacionalistas, sobretudo o MPLA. Conseguindo iludir a omnipresente polícia política salazarista, cerca de cem pessoas chegam a França em meados de 1961.


Daqui partiram para vários países. Gentil Viana, um dos mentores desta fuga, é enviado para Conakry, onde o presidente guineense, Sekou Touré, albergava o Comité Director do MPLA, dirigido por Mário Pinto de Andrade. Este fez-se acompanhar por Viana, ao tempo com 26 anos, na intensa actividade diplomática junto da ONU e de vários países para a condenação do regime colonial português e o reconhecimento internacional da causa nacionalista angolana.


Entretanto, em 1962, avolumavam-se as dificuldades para o MPLA no Congo, governado por Adoula, depois da eliminação física de Patrice Lumumba, o primeiro chefe do governo congolês, que fora eleito através das eleições que antecederam a independência desse país. A UPA (mais tarde FNLA), enquanto perseguia os militantes do MPLA, impedindo-os de entrarem em Angola, mobilizava as populações angolanas refugiadas no Congo, fugidas da repressão colonial. Na sua propaganda utilizava o racismo acusando o MPLA de ser um movimento de «mulatos» e de não fazer a guerra. Esta actividade da FNLA tinha a aprovação e protecção do governo de Adoula e dos Estados Unidos da América que dominavam o governo congolês. Também, no seio do MPLA, havia fortes fricções resultantes desta conjuntura externa e da animosidade crescente entre Viriato da Cruz e Agostinho Neto, que conseguira fugir clandestinamente de Portugal em Maio de 1962 e a quem seria entregue a presidência do MPLA, numa estratégia delineada para combater a influência da UPA.


Em Dezembro de 1962, o MPLA realizou uma conferência nacional em Leopoldville (actual Kinshasa) tendo como objectivos principais a discussão dos problemas da luta e do movimento e oficializar a entrega da presidência que Mário de Andrade já fizera simbolicamente a Agostinho Neto. Nessa conferência dois elementos, o secretário geral do MPLA, Viriato da Cruz, e um militante, Gentil Viana, monopolizaram o debate num tremendo confronto de ideias e estratégias. Viana, que sempre admirou Viriato, combateu com veemência a estratégia do secretário geral e apresentou um plano estratégico a que chamou «ideia-força», cujo aspecto principal consistia no desenvolvimento da guerrilha com base numa relação estreita da direcção do MPLA, com os militantes e as populações, o que implicaria a entrada dos dirigentes no país para aí, perante as realidades, organizarem e formarem politicamente militantes e populações em simultâneo com a condução da luta e o desenvolvimento da guerra. A maior parte dos membros da direcção apoiou Gentil Viana e a conferência votou as teses de Gentil Viana.


O seu plano depressa foi abandonado pelo comité director e mais tarde seria apelidado de “as teses guevaristas do Viana”. Não vendo sinais reais de mudança no MPLA, Gentil Viana que mantinha a sua condição de militante, decidiu afastar-se das actividades do movimento. Em 1964, vai para a China, onde também já estava exilado Viriato da Cruz, que era então dirigente da Organização dos Escritores Afro-asiáticos. Nesse país conviveram e continuaram as suas discussões filosóficas e políticas. Gentil Viana traduziu para a língua portuguesa obras de alguns clássicos do marxismo e também de Mao-Tse-Tung (Mao-Dzé-Dong, na grafia actual.


Numa visita que uma delegação do MPLA, chefiada por Agostinho Neto, faz à China, em 1971, o presidente falou com Gentil Viana e ambos acordaram que este voltaria à sua actividade militante. Pouco tempo depois, G.V. realizava uma formação militar superior na China, integrado num grupo de quadros do MPLA para aí enviados (a quase totalidade dos companheiros de Viana neste curso foram nomeados para altos cargos militares e policiais no regime que o MPLA implantou na Angola independente).


Quando, em meados de 1972, Gentil Viana e os seus companheiros daquele curso chegaram à Zâmbia, que era a rectaguarda da chamada Frente Leste do MPLA, encontraram uma situação política e militar extremamente degradada. A ofensiva do exército português tinha desmantelado as bases guerrilheiras e levado populações, militantes e quadros a refugiarem-se no país vizinho. Este grande fracasso devia-se mais ao desastroso funcionamento do MPLA que ao poderio militar colonial. Perante a desorientação e o desânimo reinante nas fileiras do movimento, Gentil Viana propôs que se desencadeasse um vasto movimento de discussão e crítica que envolvesse populações, militantes e dirigentes. Para tal suspendia-se temporariamente o comité director e as hierarquias de modo a que todos falassem em pé de igualdade. O objectivo final era - com base na análise das críticas, das ideias saídas da discussão sobre todos os aspectos da vida do movimento, da sua organização e estratégia - elaborar-se uma nova estratégia e eleger novos órgãos directivos políticos e militares que deveriam relançar a luta armada e aperfeiçoar continuamente a organização.

Agostinho Neto aceitou este plano de Gentil Viana e, assim, começou, nas regiões fronteiriças uma profunda discussão com os militantes, quadros e população apoiante do MPLA sobre os problemas e soluções possíveis que foi intitulada “movimento de reajustamento”. Gentil Viana elaborou textos de grande densidade política, nomeadamente sobre os porquês do “movimento de reajustamento”, os objectivos da luta de libertação nacional angolana e como os alcançar, o contexto nacional e internacional naquele momento, a necessidade de métodos democráticos no funcionamento das organizações políticas, a importância do conhecimento humano para a análise dos problemas e soluções e na evolução das sociedades. Foi grande o empenhamento de todos nesta vasta crítica e discussão que deu origem a uma renovada e generalizada esperança. O “movimento de reajustamento” devia culminar na eleição de uma “comissão provisória de reajustamento” que passaria a ser o órgão dirigente na Frente Leste. Segundo Viana, a lista devia emanar directamente da assembleia final mas Agostinho Neto recusou, dizendo que ele próprio faria uma lista dos futuros dirigentes que a assembleia ratificaria; outros quadros a quem Neto já prometera postos, apoiaram-no, tendo ficado G. V. isolado sobre esta questão crucial.


Inesperadamente, pouco tempo depois deste “movimento de reajustamento”, em Dezembro de 1972, Agostinho Neto assina com Holden Roberto em Kinshasa um acordo pelo qual as duas organizações políticas a que presidiam se juntam numa frente política e militar. Este acordo, obtido pela pressão de Mobutu que queria relançar a FNLA, onde houvera uma tentativa de golpe de estado cuja repressão dizimou dezenas de quadros militares, traduzia-se numa posição de inferioridade para o MPLA, pois a condução política dessa frente seria feita pela FNLA. Em breve este movimento e Mobutu exploraram diplomaticamente o trunfo que lhes caira na mão. Entretanto, Neto ordenava a transferência de quadros militares da frente Leste para o Congo- Brazzaville, na ilusão de que poderia relançar a luta no Norte de Angola, cuja fronteira a FNLA e o Congo lhe tinham fechado até aí. Após as esperanças de relance da luta na Frente Leste que o “movimento de reajustamento” trouxera, criava-se este vazio. Com pretexto de que a direcção do MPLA só se interessava por fazer a guerra no Norte, e na sequência de uma revolta latente dos quadros do Leste contra os do Norte, desencadeou-se uma insurreição de guerrilheiros, quadros e populações na Zâmbia que Chipenda apadrinhou e de que viria a assumir a condução: assim nascia uma facção do MPLA, a chamada “Revolta do Leste”.

No início de 1973, era crítica a situação do MPLA: continuava o impasse militar no Norte, estava diminuido diplomaticamente na arena internacional pelo recente acordo, enfrentava uma insurreição na vasta Frente Leste. É então que Agostinho Neto nomeia Gentil Viana seu conselheiro pessoal. Este traça um plano de combate diplomático que faça o MPLA retomar a iniciativa nesse campo e ele próprio faz várias missões a países africanos e organismos.


Em finais daquele ano o presidente do MPLA ordena que se faça um “movimento de reajustamento” na rectaguarda da Frente Norte, ou seja, bases guerrilheiras de Cabinda e instalações do movimento em território do Congo Brazzaville. Não era mais a discussão que se fizera no Leste, era um arremedo com pessoas escolhidas previamente para a orientação da discussão. Este “reajustamento” nada resolveu e criou tensões enormes. Não tendo aceitado participar na Comissão Provisória de Reajustamento, Gentil Viana é expulso da assembleia de militantes activos em Fevereiro de 1974. Depois disto, Viana e alguns quadros decidem organizar-se para lançar um apelo aos militantes. Começava assim a Revolta Activa. G.V. redige um documento que é aprovado após discussão clandestina e marcada a sua difusão para finais de Abril, quando estariam garantidas todas as medidas de protecção do governo congolês aos signatários. Entretanto, dá-se a revolução do 25 de Abril em Portugal e o documento teve de ser refeito para introduzir a análise da nova situação. Nesse documento, assinado por vários quadros e antigos dirigentes, indicavam-se os pressupostos que deviam orientar as próximas etapas de luta, enunciavam-se conceitos de um estado moderno que devia ser Angola, criticava-se o «presidencialismo absoluto» reinante no MPLA, requeria-se um congresso que deveria refazer a unidade do MPLA, dividido em três facções, e estabelecer os métodos democráticos na vida do movimento.


O congresso viria a realizar-se em Lusaka por pressões dos países vizinhos mas Agostinho Neto abandonou-o logo após o seu início. Em Setembro de 1974 os mesmos presidentes conseguem em Brazzaville um acordo proposto por Gentil Viana entre os responsáveis das três facções, pelo qual era constituído um comité central e um colégio presidencial composto de um presidente, Agostinho Neto, e dois vice-presidentes Daniel Chipenda e Joaquim Pinto de Andrade. No entanto, Agostinho Neto já desenvolvera intensos contactos em Portugal e, contando com o apoio da maior parte dos dirigentes do MFA e da extrema esquerda portuguesa, desprezou esse acordo e realizou em Outubro as tréguas com o exército português.


Depois do Acordo de Alvor, no início de 1975, que definia os moldes de acesso de Angola à independência, dirigentes da Revolta Activa, nomeadamente Gentil Viana fizeram várias reuniões com enviados da direcção do MPLA para a sua reintegração no movimento como militantes. Contudo, cinco meses após a proclamação da independência do país, o Bureau Político do MPLA decretava a prisão de vários membros da R.A. Apesar da luta que já travavam no seio do movimento, Agostinho Neto e Nito Alves estavam unidos na repressão a membros da OCA e da Revolta Activa. Preso, Gentil Viana ficou à guarda de tropas cubanas. Imediatamente encetou uma greve da fome alegando que, na sua terra, não queria ser guardado por tropas estrangeiras. Foi transferido em coma para uma clínica onde acordou acorrentado à cama.


Passados mais de dois anos e meio, Agostinho Neto decretou uma amnistia e, em Novembro de 1978 Gentil Viana é expulso de Angola, tendo seguido acompanhado de um agente da polícia política, a DISA, para a Jugoslávia para se tratar da cegueira que lhe atingira o olho esquerdo. Nesse país acabou por ser recebido com deferência, dado o prestígio que tinha. Dali seguiu para Portugal onde teve de lutar para conseguir um cartão de estrangeiro residente, pois estava na condição de apátrida. Com a ajuda de amigos pôde começar a exercer a sua profissão de advogado. Em breve, com companheiros seus também forçados ao exílio iniciou projectos de intervenção cívica através de estudos que deviam ser relizados sobre Angola. Em meados dos anos 80, cria com alguns companheiros um Grupo de Reflexão. Este grupo elabora e envia em 1989 aos chefes de estado africanos um memorandum sobre a guerra civil em Angola e as suas seis componentes: União Soviética, Cuba e MPLA por um lado, Estados Unidos da América, África do Sul e UNITA por outro. Mais uma vez a iniciativa e o documento base era da autoria de Gentil Viana. Já em 1990, outras diligências para a paz em Angola, incluindo diplomáticas, foram feitas por este Grupo de Reflexão que foi recebido por entidades e partidos políticos portugueses e dirigentes da República de Cabo Verde. Neste país, os membros do Grupo de Reflexão assinaram e publicaram um documento em que se propunha o “recurso à Nação” para que a Paz fosse encontrada, pois sendo útil a mediação estrangeira no conflito, só a participação efectiva e a todos os níveis dos cidadãos angolanos no processo seria garante de sucesso. A ideia de recurso à Nação parteiu de Gentil Viana e ele redigiu o documento.


Entretanto, a UNITA e o MPLA tinham começado secretamente as longas negociações que levariam aos acordos de Bicesse em Maio de 1991. Em Novembro desse ano, Gentil Viana analisando a precária situação em Angola e a enorme possibilidade de reinício da guerra civil, elabora um plano de convivência nacional e parte para Angola para o apresentar. Esse plano previa a assumpção de um compromisso público de renúncia à guerra por parte dos dois beligerantes e de convivência pacífica de todas as forças políticas, sendo garante da sua aplicação uma instância constituída por representantes das religiões, de organizações cívicas e profissionais, e por individualidade de reconhecido prestígio cívico e moral. A ideia mestra era mais uma vez o “recurso à Nação”. O bispo da Igreja Evangélica, o cardeal da Igreja Católica, o presidente da República e os dirigentes de todos os partidos (tinham-se formado numerosos) receberam com simpatia Gentil Viana e um seu companheiro de luta. Mas, quando eles voltaram a Angola em Maio de 1992 para desenvolver as suas ideias, encontrou indiferença porque cada beligerante já contava as espingardas para uma eventualidade de o resultado das eleições não lhe ser favorável. E, de facto, cerca de um mês após as eleições de Setembro de 1992 a guerra recomeçava na própria capital do país. Gentil Viana, que tinha regressado à sua actividade profissional em Lisboa, ficou profundamente abalado. Em Novembro de 1962 sofreu um acidente vascular cerebral de que veio a recuperar surpreendentemente.


A guerra civil foi prosseguindo e Gentil Viana envelhecendo. Agora que a paz parecia ter voltado Viana ia ficando enfraquecido e doente. Atingido recentemente por uma leucemia, Gentil Viana veio a falecer em Lisboa neste sábado, 23 de Fevereiro de 2008. Gentil Viana, senhor de uma espantosa inteligência, permanente combatente pela liberdade do seu povo e pela liberdade de toda a Humanidade, viu as suas enormes capacidades desperdiçadas por quem tomou as rédeas do poder na Angola independente e, pior que isso, foi perseguido e escorraçado do país que ajudou a libertar. Estão de luto todos os verdadeiros patriotas angolanos, estão de luto todas as pessoas do mundo amantes da liberdade e do progresso.


23 de Fevereiro de 2008
Adolfo Maria