Luanda - Foi no dia 2 de Dezembro de 2016 que o engenheiro José Eduardo dos Santos anunciou, em reunião do Comité Central do MPLA, realizada em Luanda, a sua desistência como cabeça de lista do MPLA às eleições gerais de 23 de Agosto de 2017. Com a escolha que coube ao general João Manuel Gonçalves Lourenço para o preenchimento da vaga, era o prelúdio da virada irreversível de um longo reinado de 38 anos. Os resultados das eleições publicadas pela Comissão Nacional Eleitoral (CNE) deram vitorioso o então ministro da defesa. Mas ficaram marcados por uma contestação veemente por parte da UNITA, da Convergência Ampla de Salvação de Angola-Coligação Eleitoral (CASA-CE) e do Partido de Renovação Social (PRS), liderados pelos Drs. Isaías Ngola Samakuva, Abel Epalanga Chivukuvuku e Benedito Daniel, respectivamente. Para os três principais partidos na oposição, as eleições foram fraudulentas. Pelas redes sociais, vislumbravam-se megas manifestações, com consequências imprevisíveis para o país. No seio da população, receava-se o desenterrar do machado de guerra. A crise foi desactivada graças à mediação silenciosa de entidades internacionais e nacionais.

Fonte: Club-k.net


Ultrapassado esse impasse, no dia 26 de Setembro de 2017, o general João Lourenço foi empossado ao cargo de presidente da república, chefe de Estado e comandante-em-chefe das Forças Armadas Angolanas. Recebido quase de bandeja o poder, sua actuação destampou rapidamente as divergências que já minavam o MPLA em si quanto à gestão da coisa pública. Apoiado por uma cerca de novos bajuladores e aqueles do antigo poder a ele convertidos, o propósito de «JLO» (apelido à ele atribuído tão logo o seu evento ao poder) era desculpabilizar-se do “mau cheiro” da governação do seu antecessor, da qual é acusado, pelas funções nela assumidas , ser nela parte, incluindo sua mulher, a Dra. Ana Dias Lourenço, que foi sucessivamente vice-ministra e ministra do plano no espaço de 15 anos (1997-2012).

 

Até ali, a narrativa de combate à corrupção, branqueamento de capitais, enriquecimento ilícito, nepotismo, etc., era mais da conta dos partidos na oposição e da organização juvenil, vulgo «Revús», do tão mediático «Processo 15+2». O cúmulo da pouca vergonha da justiça angolana foi a atitude esquisita de uma procuradora que, feita «La viuva negra» , usou a peruca para esconder o seu rosto ao público durante o julgamento. Outros porta-estandartes dessa luta, foram os activistas políticos e cívicos, como o jornalista Rafael Marques de Morais e o advogado Manuel David Mendes, sem se pôr de parte o jornal Folha8 do também advogado Afonso William Tonet. No intuito inconfesso de “roubar” o louro à oposição e a todos estes então críticos ao MPLA, o terceiro presidente de Angola foi constrangido a subscrever-se ao combate contra aqueles a que não tardou por designar de «marimbondos» . Por esta postura, alguns observadores políticos locais e externos não tardaram em rotulá-lo de ʺreformadorʺ. Recordo-me das suas palavras aquando a cerimónia de tomada de posse como presidente da república: «Ninguém é suficientemente rico ou poderoso demais para se furtar a ser punido, nem ninguém é pobre de mais ao ponto de não poder ser protegido.» Resultado: confrontação directa com o antigo presidente, tido como o “marimbondo-mor”. Pelas vistas, dir-se-ia tratar-se da segunda maior crise política pós-independência no seio desse partido, com cenário de uma verdadeira guerra informacional de ruptura, envolvendo eduardistas e lourencistas. A não ser que seja apenas uma “engenharia” para, como se diz, o inglês dormir, essa ruptura demonstraria ser tradição histórica no MPLA de o líder predecessor ofuscar a imagem do seu antecessor. Daí seguiu-se o período de tateamento governativo, notabilizado por precipitadas mexidas no aparelho do Estado, au ponto de, segundo algumas redes sociais, ter nomeado e exonerado pessoas já falecidas. A frequência das mesmas fez valer ao general João Lourenço um outro apelido: «O exonerador implacável».

 

Entretanto, do seu lado, o ex-presidente, apercebeu-se do tratamento degradante que lhe era dado enquanto «presidente emérito do MPLA», título que lhe foi atribuído no VII Congresso do partido, realizado a 8 de Setembro de 2018, em Luanda. Assim, sentindo-se ofendido e abandonado pelos seus fiéis colaboradores e por muitos aqueles que fizeram da bajulação sua profissão, no dia 16 de Abril de 2019, achou melhor viajar para Barcelona (Espanha), a pretexto de que fosse simplesmente para tratamento médico. Por trás, deixava a contas com a justiça dois filhos seus – o Sr. José Filomeno dos Santos «Zenu» e a engenheira Isabel dos Santos –, ambos exonerados de altos cargos a nível do aparelho do Estado: esta, da Sonangol e, aquele, do Fundo Soberano de Angola (FSDA). À data, a filha primogénita do «JES» era dada como uma das mulheres mais ricas de África. Detido em Setembro de 2018, o Sr. «Zenu» foi julgado e condenado, em 2020, a uma pena suspensa de 5 anos, por crimes de gestão danosa envolvendo o FSDA no valor de 5 milhões de dólares. A desgraça nunca vem sozinha, diz o adágio popular. Assim, enquanto ia procurando escapar da humiliação fora de Angola (essa é uma das verdadeiras razões da sua viagem), lá estavam também indiscrições «dando azo a versões de que o casamento de 27 anos do ex-casal presidencial estaria em risco» , e isto «[...] já na véspera das eleições de 2017.»


Certamente, a realidade política em Angola já não rima com o slogan de: «O MPLA é o povo, e o povo é o MPLA!» Assim, seus dirigentes, apavorados com a ideia de virem um dia a perder o poder político – e, com isso, o poder económico-financeiro que ostentam sem vergonha –, esperam ultrapassar a situação, fortes da sua «tradição de vitórias» (grafia constante e publicamente assumida pelos seus militantes e simpatizantes). É o preço a pagar perante os grandes desafios políticos de futuro! Tarefa que me parece cada vez mais difícil, a olhar pela onda de protestos das populações (esmagadoramente jovens) que se vai desencadeando quase por todo o país face a triste realidade de açambarcamento das riquezas nacionais ao longo dos mais de quatro décadas de ʺ(des)governaçãoʺ do MPLA. Afinal, aqueles que pareciam erguer a bandeira da necessidade de uma educação patriótica e cívica na sociedade angolana, são os mesmos que, na verdade, mais a necessitavam!
«O facto de José Eduardo dos Santos ter voltado [para Angola, a 14 de Setembro de 2021] é bom para toda a gente, não apenas para a nossa relação, mas bom para o país, bom para o Partido» (DW ANGOLA, 2021). Esta afirmação do general João Lourenço não reflecte a visível atmosfera de crispação profunda que ainda existe entre as duas grandes correntes no MPLA. Não há dúvida que a aposta dos seus dirigentes é eternizarem-se no poder por todas as formas.

 

Uma das lacunas e debilidades das políticas governativas do terceiro inquilino da Cidade Alta prende-se com a forma selectiva como tem sido levado o combate contra a corrupção e o enriquecimento ilícito no país, que consiste em proteger ʺtubarõesʺ bem conhecidos e expor aqueles tidos de alvo. Quem nisso serve de cobaia, é o Dr. Augusto da Silva Tomás, detido em Setembro de 2018, julgado e condenado a pesada pena de 14 anos de prisão, por crime de peculato e desvio de fundos públicos. A sentença do Tribunal Supremo foi lida no dia 15 de Agosto de 2019.


No dia 11 de Novembro de 2020, Angola foi marcada com a morte, pela polícia, do jovem estudante Inocêncio de Matos, quando este participava de uma manifestação pacífica, em Luanda. Outro facto marcante da governação do general João Lourenço, foram os incidentes ocorridos em Cafunfo, na província diamantífera de Lunda Norte, onde o Movimento do Protetorado Português Lunda Tchokwe (MPPLT) tem vindo a reclamar, há décadas, a autonomia das Lundas. Ao «número indeterminado» de mortes avançado pelas autoridades locais do ministério do interior, fontes independentes defendem tratar-se de um «massacre», com registo de mais de 27 pessoas mortas.
O Tribunal Constitucional (TC) da república de Angola anulou, a 5 de Outubro de 2021, o VIII Congresso da UNITA, em cujo engenheiro Adalberto Costa Júnior havia sido eleito presidente. O objectivo inconfesso do partido governante era impedir, através deste órgão judicial, a sua candidatura ao pleito eleitoral que se despontava ao horizonte. Reconduzido triunfalmente ao cargo, a 1 de Dezembro, e com a sua imagem galvanizada dentro e fora do seu partido, o «ACJ» acabava de vencer o seu primeiro desafio, tornando-se assim cada vez mais num calcanhar de Aquiles para a liderança do MPLA. Embora a atmosfera que antecedeu e precedeu a morte, a 8 de Agosto de 2022, em Barcelona, do ex-presidente da república e do MPLA, o engenheiro José Eduardo Dos Santos, estas foram realizadas no dia 24 do mesmo mês, antecedidas de uma renhida campanha eleitoral entre o MPLA e a UNITA, esta apoiada pelos seus parceiros no quadro da coligação ʺFrente Patriótica Unida (FPU)ʺ . Os resultados finais apresentados, cinco dias depois, pela Comissão Nacional Eleitoral (CNE), deram mais uma vez vencedor o general João Gonçalves Lourenço, candidato do seu partido, isso por cima de uma forte contestação de três dos oito partidos concorrentes às eleições . O contrário à contagem de votos paralela da UNITA de 49,5% para si e 48,2% para o MPLA, resultado baseado, segundo aquele partido, em actas sínteses.


Enquanto se aguardava pelo veredicto do TC, nos palácios governamentais festejava-se já a «vitória», ao passo que, nos bairros de Luanda, cercados por um aparato policial, o ambiente era de consternação e protesto, mesmíssimo noutras principais cidades do país. Sem surpresa, no dia 8 de Setembro, o TC, no papel de Tribunal Eleitoral, validou os resultados definitivos anunciados pela CNE, recusando as reclamações interpostas pela UNITA e a CASA-CE no sentido ʺde se aferir a verdade eleitoralʺ ao 5º pleito realizado no país desde 1992. Aliás, a aprovação pela assemblea nacional, a 23 de Junho de 2021, da revisão da Constituição da República de Angola de 2010, destinava-se a fechar todas as possibilidades de aceitação aos recursos dos partidos na oposição. Como disse William TONET (TV8, 2022), «Venceu o partidocracia com o Acórdão do Tribunal Constitucional [Nº 769/22]», pois, 99% dos juízes constituintes desse órgão, é do MPLA pelo modo de sua indicação .


Com esta «vitória» do MPLA – claramente ganha de forma injusta –, mais uma vez ficou adiada a alternância do poder em Angola, tão visivelmente almejada pela esmagadora maioria dos angolanos, quer do interior como da diáspora. A acontecer em tempos idos da guerra-fria, traduzir-se-ia em uma derrota somada da UNITA (pró-ocidental), pelo MPLA (pró-soviético). Aliás, este xadrez geopolítico ainda faz bem parte do contexto angolano de hoje.


Contudo, há duas grandes verdades a reter dessas eleições: primo, que elas não foram ʺjustasʺ, muito menos ainda ʺtransparentesʺ, mesmo sendo, aparentemente, ʺlivresʺ e ocorridas num ambiente pacífico e; secondo, que Angola está ainda bem longe de ser um ʺEstado democrático de direitoʺ, ou seja, que os poderes judiciário (tribunais) e legislativo (assembleia nacional), subordinam-se ainda à vontade do partido no poder, o que não permite aos seus constituintes de pesarem ʺfora ca caixaʺ. Se assim não fosse, é o engenheiro Adalberto Costa Júnior quem, justamente, teria sido empossado como quarto presidente de Angola, no dia 15 de Setembro. A todos os observadores nacionais e internacionais (CPLP, SADC, etc) não foi preciso um microscópio para se constatar essa realidade nua e crua. Aliás, em Angola, toda gente tem consciência da fraude decorrente dessas eleições, incluindo os dirigentes e membros do MPLA. Outras duas verdades não menos importantes a reter, são: i)- Que as forças de defesa e segurança do país estão também bem longe da sua vocação republicana e; ii)- Que os órgãos de comunicação social públicos – todos – estão ainda às ordens do partido no poder. Somadas estas quatro verdades ilustrativas do retrocesso do processo de democracia em Angola, grande é-me a tentação de acreditar àqueles que, dentro e fora da mesma, opinam não ser pelas urnas que se poderá tirar o MPLA do poder. O futuro dirá!


Olhando para o panorama político angolano dos quatro últimos anos (2018-2022), não há dúvida de que a UNITA soube explorar as crispações, lacunas e debilidades das políticas governativas do general João Lourenço. Mas, nesses casos de alternância política, cego não sou para crer que basta a vontade popular expressa em urnas, manifestações ou outras formas de expressão democrática: é ainda determinante o posicionamento da opinião internacional na sua diversidade intercontinental. E quanto, em líquido ou em recursos naturais, o regime/MPLA vai distribuindo aqui e acolá para a ʺcompraʺ de lobbies? Certamente, ninguém sabê-lo-á!


Uma das certezas é que estamos numa conjuntura política internacional onde as potências, grandes ou pequenas, as multinacionais mundiais e Estados singulares se desfrutam com quem tem o poder de assaltar o poder, em detrimento da vontade (passiva) dos povos. É exactamente isso que se assistiu em Luanda com o emprego musculoso das forças militares e policiais antes, durante e depois da proclamação dos resultados. Outra certeza é de existir também internamente parte da sociedade civil (incluindo líderes religiosos, empresários, etc) habituada a viver do ʺEstado providênciaʺ, pelo que não hesitam em vender as suas consciências… Porém, neste segundo mandato, resta um grande desafio ao general «JLO»: conseguir virar de ʺpresidente eleito pela CNE e pelo TCʺ, que é, para presidente dos angolanos, cuja maioria o negou nas urnas, de forma clara. Para já, levanta-se uma questão de moralidade: para quem, descaradamente, ʺmandou roubar votosʺ para continuar a ser presidente, quê exemplo deixa para a sociedade angolana, para a África e para o mundo?


Apraz-me de partilhar aqui a opinião de um jovem músico rappers angolano, Sr. Flagelo Urbano. Publicada a 1 de Setembro de 2022, pois no intervalo entre o anúncio dos resultados provisórios e dos definitivos, ela enquadra-se também bem como uma das lições dessas eleições. Eis um excerto:

 

«[…] Uma coisa precisamos conhecer, quer sejamos do MPLA, CASA-CE, [P] Njango, FNLA ou outro partido. Essas três pessoas [Adalberto Júnior, Abel Chivukuvuku e Filomeno Vieira Lopes] conseguiram o inimaginável. Conquistar Luanda e mais duas províncias estratégicas desse país [Cabinda e Zaire] que há anos são bastiões eleitorais do histórico partido MPLA, é obra de gigantes. Não é para qualquer um.


Por isso, independentemente do resultado eleitoral […], eles merecem reconhecimento, vênia, respeito e serem para sempre lembrados como aqueles que, 30 e tal anos depois, conseguiram o até bem pouco tempo inalcançável.


Com esses senhores, a sociedade fervilhou. Nunca na história de Angola as pessoas se mobilizaram tanto em tornar um pleito um propósito, uma visão holística, como nestes últimos tempos […].»


As entrelinhas desta interessante reflexão, eu acrescentaria: o ACJ e aqueles dois outros líderes, são as únicas pessoas que, tão-somente pelo discurso e o apoio granjeado junto das populações, obrigaram o partido no poder de, depois da CNE e do TC, expor ainda mais a sua nudez ao mundo, com a colocação de militares e polícias em prontidão combativa elevada quase por todas as cidades do país, incluindo a movimentação de meios militares e policiais ligeiros e pesados, mormente na cidade de Luanda. Um cenário inigualável desde a independência de Angola, em 1975. Daqui em diante, aguarda também a essas três pessoas um grande desafio, o de saber resistir das armadilhas, certamente já lançadas…, para separá-los. Este é o meu maior receio. Indubitavelmente, o de muitas outras pessoas também.


Somado este quadro ilustrativo do retrocesso do processo de democracia em Angola, grande é-me a tentação de acreditar àqueles que, dentro e fora da mesma, opinam não ser pelas urnas que se poderá derrubar o MPLA. Via que a UNITA repudia claramente, com a decisão da tomada de assentos no parlamento dos seus deputados, a 16 de Setembro de 2022. «O preço do poder não vale o banho de sangue do meu povo», frisou o engenheiro Adalberto Júnior durante a manifestação da UNITA, realizada em, Luanda, a 24 de Setembro. Por tão polêmica que seja a abordagem, o tempo dirá se valeu ou não a pena poupar vidas humanas em não largar as pessoas nas ruas para a conquista (incerta), pela violência política, do poder, e ainda com consequências imprevisíveis para o futuro de Angola!

Por
Hélder Caetano
(Luanda, 25 de Setembro de 2022)