LUANDA —  Analistas políticos angolanos ouvidos pela Voz da América consideram que a revelação na quarta-feira, 22, de que os resultados da peritagem feita às ossadas de algumas das vítimas do 27 de Maio de 1977 confirmou que elas não são dos corpos das vítimas, pode afectar a imagem do Estado angolano e do Presidente João Lourenço, que se tinha apresentado como “reformador e reconciliador”.

Fonte: VOA

O facto de o Governo não ter permitido as famílas de participarem nos testes de ADN com os seus próprios especialistas é tido, pelos entrevistados, como uma nódua que manchou, à partida, todo o processo.


Para o investigador Fernando Guelengue, “estamos diante de um escândalo que desprestigia totalmente não só o trabalho do Governo e a reconciliação nacional, mas também a pacificação dos espíritos”.

“João Lourenço, que se mostrou como reformador, deixa aberta uma tampa que ainda vai despolatar muito assunto”, acrescenta.

O jornalista, Ilídio Manuel recordou que “o Presidente da República pediu desculpas em nome do Estado e não há dúvida que a sua imagem também ficou chamuscada”.

Por seu lado, o académico e sociólogo João Lukombo entende que o Governo não vai publicamente manifestar-se abalado com mais este escândalo político, alegando não ser o primeiro em que se envolve o Executivo sustentado pelo MPLA.

O choque

Um choque, uma ferida que volta a abrir, foi como reagiram filhos de alguns dos membros do MPLA assassinados pelo próprio regime durante o chamado massacre de 27 de Maio de 1977 ao tomarem conhecimento que nenhum dos restos mortais entregues pelo Executivo às famílias corresponde aos dos seus pais assassinados na altura.

"Foi com espanto e dor ... que se concluiu que nenhuma das amostras corresponde aos cadáveres", dizem numa "Carta a Angola", a que a Voz da América teve acesso nesta quarta-feira, 22.

Esta reacção surge depois da confirmação dos resultados de testes de ADN feitos às ossadas de algumas das vítimas e seus parentes por uma equipa de peritos internacionais chefiada pelo ex-presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal, de Portugal e professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, Duarte Nuno Vieira, quem liderou a equipa que investigou as ossadas a pedido de alguns familiares.

João Van-Dunem, filho de José Van-Dunem e de Sita Valles, assassinados na altura pelo regime, reconheceu, em declarações à RTP, "que criou-se a expectativa que, sim, possivelmente, teriam localizado os corpos dos nossos pais".

Conceição Coelho, filha de Rui Coelho, também assassinado, depois de 45 anos, afirmou que "tínhamos a expectativa de que agora, finalmente, conseguiriamos reaver os restos mortais, finalmente poder enterrar esses restos mortais, o que acontece.. tivemos uma enorme frustração".

Ante esta realidade, os órfãos do 27 de Maio dizem não desistir e querem uma investigação séria.


Refira-se que, em 2021, o Governo angolano criou uma Comissão de Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos (CIVICOP), presidida pelo então ministro da Justiça de Angola, Francisco Queiroz, que chegou a entregar ossadas a familiares de algumas das vítimas.

A 26 de Maio de 2021, véspera do 44º aniversário do massacre de 1977, o Presidente João Lourenço pediu perdão.

"Não é hora de nos apontarmos o dedo procurando os culpados. Importa que cada um assuma as suas responsabilidades na parte que lhe cabe. É assim que, imbuídos deste espírito, viemos junto das vítimas dos conflitos e dos angolanos em geral pedir humildemente, em nome do Estado angolano, as nossas desculpas públicas pelo grande mal que foram as execuções sumárias naquela altura e naquelas circunstâncias", afirmou o Presidente da República.

O massacre

A 27 de Maio de 1997, uma alegada tentativa de golpe de Estado supostamente liderada pelo antigo ministro do Interior, Nito Alves, expulso do MPLA uma semana antes, foi fortemente reprimida pelas forças de segurança leais ao então Presidente Agostinho Neto, com apoio das tropas cubanas, na altura estacionadas em Angola.

O movimento passou a ser conhecido por “fraccionanismo” e foi completamente dizimado.

Várias fontes estimam que cerca de 30 mil pessoas poderão ter sido mortas.