Luanda - Em Angola, foi aprovado na generalidade em finais de Maio o projecto de lei relativo ao estatuto das organizações não-governamentais, um projecto que tem gerado muita controvérsia, a sociedade civil considerando que este dispositivo visa limitar o seu direito de expressão e inclusivamente a sua própria existência.

Fonte: RFI

Ao longo destas últimas semanas, apesar de a sociedade civil ter reclamado a retirada deste projecto numa petição e também na rua, nomeadamente no passado dia 17 de Junho, este dispositivo continua em cima da mesa.

Nesta quarta-feira, mais de cem ONGs do mundo inteiro, nomeadamente a Amnistia internacional e a Transparência internacional, publicaram uma declaração conjunta em que apelam o executivo angolano a recuar no intento de validar esta lei.

Ao abrigo deste dispositivo está nomeadamente prevista a criação de um órgão directamente sob a alçada do governo cuja tarefa consistiria em controlar as ONGs angolanas, com a possibilidade de dissolvê-las sem sequer passar por um processo judicial.

O primeiro de outros aspectos apontados nesta declaração que a RFI abordou com João Malavindele, director executivo da ONG angolana Omunga.


RFI: Na sua declaração conjunta, as ONGs apontam a eventual criação de um novo organismo de supervisão das organizações da sociedade civil, dependente do governo, ao abrigo deste projecto de lei. Como reage a isto?

João Malavindele: Ela é inconstitucional porque fere a própria Constituição, mormente no seu artigo 48° número 2, bem como fere a própria lei das associações privadas que existe até ao momento. Acho que as organizações não-governamentais, como o próprio nome diz, não devem ser tuteladas por um órgão do executivo ou um órgão administrativo. Quando isso acontece, deixa de ser sociedade civil ou organização não-governamental, podemos dar um outro tipo de nome. Isso é uma ingerência bastante grave que não se coaduna com aquilo que é a própria essência de organizações não-governamentais que surgem através de iniciativas de cidadãos que se juntam por uma causa. Eu acho que a lei das associações que existe até hoje é muito clara em relação a isso e a própria Constituição também. Quando se cria um organismo que é do executivo, isto não tem outro objectivo senão o de controlar e também de asfixiar as organizações não-governamentais.

 

RFI: Há também outro aspecto: a imposição de requisitos onerosos de registo, inspecção e monitorização, assim como a obrigação para as Organizações não-governamentais de revelar as suas fontes de financiamento.

João Malavindele: Isto é um artificio que se quer criar à volta de tudo isto porque todas as organizações que trabalham em Angola, que estão legalmente constituídas, todos os seus fundos, passam pelos mecanismos legais, estamos a falar do Banco Nacional e dos bancos privados que têm conhecimento da origem das fontes de financiamento das organizações não-governamentais. Até porque muitas das organizações internacionais que financiam as organizações não-governamentais nacionais, também financiam programas do Estado. Então, não há aqui problema e se houver necessidade de nós partilharmos isso, nós podemos partilhar mas desde que não seja uma imposição legal. Porque as organizações não-governamentais têm os seus órgãos sociais. São esses órgãos sociais onde essas organizações devem em primeira instância prestar contas de tudo aquilo que tem sido a sua actividade. Por isso é que nós consideramos essa proposta de lei inconstitucional porque viola os direitos dos associados, viola os direitos fundamentais dos cidadãos relativamente ao direito de associação.

 

RFI: Além desse aspecto, o que também é apontado por estas organizações internacionais é o facto de se impor restrições ao financiamento de organizações ou indivíduos "envolvidos em actividades que actividades de ponham em causa interesses constitucionalmente consagrados", um conceito que segundo estas organizações é vago e pode, de certa forma, impedir a colaboração com organizações e parceiros internacionais.

João Malavindele: O problema é que esta proposta de lei traz conceitos inacabados, não há precisão naquilo que aparece como proposta, o que é grave. Não podemos regular a vida associativa com frases ou conceitos inacabados. No fundo, o que o executivo quer é, através dessa proposta de lei, encontrar um dispositivo legal que visa atingir determinadas instituições ou organizações da sociedade civil e até pessoas com alguma exposição política e também na vertente de Direitos Humanos.

 

RFI: Ainda nesta senda, o que também é apontado é a proibição do envolvimento das organizações da sociedade civil em actos que possam ser considerados "subversivos", o que segundo estas organizações também se pode traduzir por uma restrição da liberdade de expressão.

João Malavindele: Claro! O que é um "acto subversivo"? Isso tem que ficar claro. Isso deixa uma brecha para que a dado momento, com a criação dessa instituição que vem regular as organizações, por seu livre arbítrio, vá interferir ou prender ou mandar fechar uma organização, a partir do momento em que ela entender que se envolveu em actos subversivos. O que é isto? É preciso que isto seja clarificado. A lei tem de ser clara e objectiva, o que não acontece com esta proposta de lei. Nós não podemos permitir que uma lei como esta possa entrar em vigor num Estado de direito democrático.

 

RFI: Um dos argumentos utilizados para defender este projecto é que ele visa reforçar o cumprimento das recomendações do Grupo de Acção Financeira Internacional (GAFI) no tocante à prevenção do terrorismo e do branqueamento de capitais.

João Malavindele: Essa é a grande questão. Parece-me que há aqui -não diria uma interpretação extensiva- mas há aqui uma interpretação cavilosa da parte do Estado angolano, porque a recomendação do GAFI, sobretudo na sua recomendação número 8, diz que é preciso que os Estados tenham em conta as organizações não-governamentais porque são susceptíveis de estarem envolvidas em actividades de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo. Mas no caso de Angola, nas avaliações que foram feitas até agora, Angola não está na linha cinzenta relativamente a essa matéria, porque primeiro nós temos leis que tratam dessa matéria, temos leis contra o branqueamento de capitais, temos outras leis avulsas que versam sobre essa matéria. Também não temos registo de organizações que estejam directamente ou indirectamente envolvidas em actos de terrorismo e branqueamento de capitais. Então, esta proposta de lei, o executivo angolano vê como uma oportunidade numa altura em que em Angola aumentou cada vez mais o nível de consciência dos cidadãos, fruto também do trabalho que as organizações têm vindo a desenvolver ao longo desses anos. Hoje a consciência cidadã é bastante elevada e o executivo não tem acompanhado quer com políticas de combate à pobreza e outras estratégias de governação, não tem estado a acompanhar essa evolução. Uma das formas que encontrou neste momento através das recomendações que foram feitas, é criar um dispositivo legal que visa manter esse controlo das organizações não-governamentais que estão na base também do aumento dessa consciência cidadã no sentido de que elas possam estar cada vez mais sob o controlo do executivo. Por isso é que eu acho que nós como organizações da sociedade civil, precisamos de começar a indagar essa instituição internacional que é o GAFI, no sentido de melhorar no diálogo com os Estados nesse caso, porque no fim das contas, nós é que vamos sofrer com essa má interpretação que o Estado angolano faz relativamente a essa recomendação 8 do GAFI.

 

RFI: Tiveram algum tipo de diálogo com o executivo quando se preparou este pacote legislativo?

João Malavindele: Nunca, em nenhum momento fomos consultados, em nenhum momento tivemos um encontro prévio relativamente a essa proposta. Quando nos apercebemos, o que fizemos, através do Grupo de Trabalho de Monitoria dos Direitos Humanos, submetemos uma petição à Assembleia Nacional para que não houvesse sequer discussão na generalidade desta proposta, como se essa proposta nunca tivesse existido. Mas infelizmente, não fomos tidos nem achados pela Assembleia Nacional e até hoje aguardamos uma resposta à nossa petição.

 

RFI: Julga que há condições para eventualmente haver um recuo por parte do executivo?

João Malavindele: Isso é que nós esperamos. Estou cada vez mais optimista e haverá um recuo por parte do executivo, porque acho que se assim acontecer, sairemos todos a ganhar como angolanos. Eu acho que o executivo angolano tem de se dar por satisfeito por existirem organizações que possam apontar de forma muito construtiva caminhos, aquilo que há de bom e de ruim na sua governação, e em conjunto podermos lutar para o crescimento e o desenvolvimento do nosso país. Não é possível fazer um processo como este e deixar de parte aqueles que são os principais visados no processo. Então, auguro que haja essa sensibilidade da parte dos deputados da Assembleia Nacional para que esta lei não seja aprovada.