Luanda - De há uns tempos a esta parte, pela ponte da Catumbela, costumam a passar pesadas composições ferroviárias que rumam para Leste, saídas do Lobito. Noutros dias fazem o percurso inverso. Isso se tornou uma rotina, não apenas para os habitantes locais, mas que é extensiva às dezenas de vilas e cidades atravessadas pela linha desde o Lobito até ao Luau. São os Comboios do CFB que estão a operar em fase experimental pelo consórcio “LAR” (Lobito Atlântic Railway) no âmbito da implementação do projecto do Corredor do Lobito, em parceria com os Estados Unidos da América, cujo presidente escolheu Angola para a sua única visita ao continente africano durante o exercício do seu mandato.
Fonte: JA
O Corredor do Lobito desempenha um papel crucial nas excelentes relações, já caracterizadas por estratégicas pelos dois países. Não obstante a mudança de administração na América, como resultado das eleições de 5 de novembro, a visita do Presidente Joe Biden, que permanece em funções até ao próximo dia 20 de janeiro, simboliza a oportunidade de solidificar o futuro das relações económicas e políticas de ambos os lados.
Trata-se de uma importante plataforma logística desde o Porto do Lobito ao vastíssimo “hinterland” que se estende até aos países da chamada “cintura de cobre”, onde a exploração de minérios esteve condicionada devido à inexistência de uma via alternativa de escoamento economicamente viável se comparada ao CFB, paralisado durante dezenas de anos, por razões da guerra em Angola.
O termo do conflito armado permitiu ao Executivo angolano realizar volumosos investimentos para a recuperação do Caminho de Ferro de Benguela, numa altura em que chegava ao seu termo o Contrato de Concessão de exploração concedido à companhia e que tinha a validade de 99 anos, a partir de 1902.
Por razões estratégicas, Angola viu no CFB uma oportunidade significativa para expandir o seu comércio exterior, não apenas como transportador de recursos naturais, mas também projectando-o como um catalizador para o desenvolvimento económico regional, atraindo o investimento estrangeiro.
Nos dias em que atravessam o tabuleiro da ponte sobre o rio Catumbela, o ronco dos motores de 12 cilindros das potentes locomotivas diesel-eléctricas, denunciaas lonjuras do seu destino. A rota atravessa todo o território angolano até ligar-se às ferrovias dos vizinhos Congo e Zâmbia, onde existem as ricas minas de cobre e cobalto e outros minerais essenciais para várias indústrias ligadas à tecnologia e às energias renováveis no mundo inteiro.
Em 2022, foi constituído o consórcio internacional “Lobito Atlantic Railway”, formado pela Trafigura, Mota-Engil e Vecturis, e este obteve a concessão por um prazo de trinta anos para a operação, gestão e manutenção do Corredor do Lobito e do terminal mineiro do porto do Lobito.
A linha férrea, quando estiver completamente modernizada, proporcionará uma rota mais eficiente e com menor emissão de teor de carbono para o mercado de cobre, cobalto e outros metais cruciais para a transição energética e vai operar de forma comercialmente aberta com todo o mercado, segundo os especialistas.
São mais de mil e 200 quilómetros de linha para percorrer em cada viagem. Por essa razão, o consórcio está a cumprir um programa de implementação da sua operacionalidade,que inclui o treinamento do pessoal e o teste do equipamento circulante e da infra-estrutura ao longo da via. No auge da operacionalidade do Corredor do Lobito, prevê-se que a quantidade de minério transportado atinja a cifra anual de 1 milhão de toneladas.
O projecto de reabilitação do Corredor do Lobito beneficia do apoio dos Governos de Angola, RDC, Zâmbia e da Parceria para o Investimento Global em Infra-estruturas (PGII) do Governo dos EUA. O engajamento representa um investimento de mais de 500 milhões de dólares durante a vigência da concessão, com um financiamento potencial de pelo menos 250 milhões de dólares da Corporação Financeira de Desenvolvimento Internacional dos EUA. O investimento vai permitir a renovação de troços da linha férrea e infra-estruturas associadas, além de garantir a aquisição de mais 1.500 vagões e 35 locomotivas.
O comboio simboliza a alegria de um povo
Na Catumbela, o silvo das sirenes do comboio já se tornou familiar para os habitantes da vila. É um apito diferente dos trâmueis que ao longo do dia circulam entre as cidades de Benguela e do Lobito e levam nas suas carruagens de listas amarelas e cinzas, centenas de trabalhadores, estudantes de batas brancas e uniformes de outras cores e uma trupe de negociantes com mercadorias do campo e dos armazéns para os diferentes mercados ao longo da linha de cerca de 26 quilómetros.
Este silvo do comboio grande, que rasga o ar por vezes a meio da noite, é um som mais penetrante e prolongado. Parece carregar dentro de si uma mensagem da secular longevidade do Caminho de Ferro de Benguela. Se cada apitadela pudesse ser traduzida a frase seria esta: “Estou de partida para mais uma viagem, a construir algo que ficará para sempre. ”
Ouvir o silvo do comboio a partir no meio da solidão da noite provoca nas pessoas uma saudade inexplicável. Deixa-nos a imaginar o que eles levam no bojo das suas carruagens e o que trarão na viagem de volta. Temos dois tipos de comboio a circular na mesma linha de mil e 200 quilómetros de extensão até ao Luau. Há os comboios de passageiros que param nas dezenas de estaçõesexistentes nas quatro províncias, nas quais descem e sobem pessoas, cada uma com o seu destino e o seu projecto de vida. Já os comboios de minério não transportam passageiros e apenas fazem as escalas por razões operacionais.
Quando se ouve o silvo de uma locomotiva, as pessoas ficam curiosas a perguntar qual comboio está a chegar. Serão os grãos dourados das lavras de milho do Bié, prontos para alimentar o litoral? Ou talvez o minério bruto, arrancado das entranhas da terra Congo, ansioso por ganhar forma nos portos e fábricas? Para todos os efeitos, os comboios quando chegam não trazem nos vagões apenas mercadorias, mas também a promessa de que o interior e o litoral se estenderão as mãos na luta pelo desenvolvimento. São como a artérias a levar o sangue novo do progresso para os lugares que há tanto tempo esperam pela chance de florescer. Cada trilho assentado, cada dormente pregado no solo é como um elo entre o ontem e o amanhã.
Quando os comboios passam de noite, é porque quem os opera trabalha enquanto dormimos. Tripulam as locomotivas e operam os sistemas como quem cuida de uma criança que ainda não aprendeu a andar, mas que já dá sinais de que um dia correrá em segurança.
Quando o sol voltar, as “estradas de ferro” estarão mais próximas de cumprir o seu objectivo, e as sirenes, que ecoam na escuridão, serão a música do despertar de uma nação inteira. O comboio carrega não apenas bens e riquezas, mas também o legitimo sonho de uma Angola, onde o som dos trilhos seja o refrão da prosperidade.
Os comboios não foram feitos para apodrecerem nas estações. Porém, durante três décadas, foi exactamente isso que aconteceu. Os trilhos que antes ligavam o país como veias pulsando a seiva da vida, tornaram-se símbolos de uma Angola paralisada, dividida pela dor da guerra. Vagões foram abandonados ao longo da linha e ficaram a enferrujar sob o peso do tempo, as locomotivas silenciadas aguardavam o dia em que suas sirenes pudessem voltar a ecoar.
Naquela época, o comboio tornou-se um alvo. As minas escondidas nos trilhos e as emboscadas traiçoeiras transformaram o que deveria ser um símbolo de união num cenário de medo. Cada viagem era um risco, e muitos maquinistas, carregando a coragem nos bolsos e o medo no peito, partiram sem saber se voltariam. Muitos não voltaram ou voltaram estropiados para o resto das suas vidas.
Hoje, ao ouvir o som firme das composições que seguem pelo Corredor do Lobito, é impossível não pensar em tudo o que esses trilhos já testemunharam no passado. Cada travessa ou carril que permaneceu no lugar, transformou-se num testemunho da resiliência de um povo que jamais deixou de sonhar com a Paz e o reencontro.
Os comboios voltaram a circular. Não mais como fantasmas de um passado distante, mas como sinais de um futuro que, embora construído com lentidão, está finalmente a ganhar forma. Os nossos comboios simbolizam uma verdadeira epopeia de luta, por isso, não carregam apenas carga. Cada um deles, também transporta histórias, cicatrizes e uma inesgotável vontade de recomeçar.
Enquanto o silvo distante desaparece na escuridão da noite, sentimos que, de alguma forma, estamos todos a bordo desse comboio.