Luanda - Foi no dia 1 de janeiro de 2025 que Neth voltou a ver o mundo sem grades. Indultada pelo Presidente da República, João Lourenço, ganhou a liberdade como quem recebe uma segunda chance escrita pela caneta da clemência. Mas sete dias depois, reincidiu: no antigo município de Icolo e Bengo, hoje província com o mesmo nome, foi acusada, segundo consta, de roubo de um frigorífico e 80 mil kwanzas.

Fonte: Club-k.net

Acto contínuo, três meses mais tarde, em março, protagonizou um episódio mediático em Benguela: foi vista nua em plena via pública a dançar. E, mais recentemente, a 10 de maio, foi detida pela Polícia Fiscal Aduaneira por desacato às autoridades, agressão física a um agente e destruição de bens. As manchetes repetem-se. As opiniões dividem-se. A justiça move-se. Mas a escuta continua ausente. O Psicólogo Clínico Fernando Kawendimba diria: falta a escuta ativa e aparição da luz aos idiotas; O Criminalista Alcântara Costa diria: A perícia psicológica é urgente para entender o X da questão da volição e da conação para estarmos aptos na decisão entre o imputável e o inimputável do acto, a priori, tipificado como ilícito, culpável e punível; e, o Ergonomista Mauia Lukiata diria: As instituições precisam de ser humanizadas para entender o mistério que há no comportamento humano na sua interação com a sociedade e etc...

 

Se estivéssemos no século XVIII, os teóricos iluministas — os Clássicos da Criminologia, como Cesare Beccaria — talvez vissem Neth apenas como alguém que, de forma racional, violou a norma social. Beccaria defendia que “os homens escolhiam os seus comportamentos de forma racional, buscando o maior prazer com o menor sofrimento”, e que a pena deveria ser proporcional ao delito para dissuadir futuros crimes. Numa leitura fria, Neth teria feito más escolhas — e deveria sofrer as consequências.

 

Mas a vida não é fria nem lógica. É caótica, marcada por dores íntimas, falhas no cuidado, silêncios prolongados. É aí que entra a escola Positivista da Criminologia, inaugurada por Cesare Lombroso, que via o crime não como uma escolha livre, mas como um fenómeno enraizado em fatores biológicos, sociais e psicológicos. “O criminoso não é sempre responsável moralmente, mas sim um ser enfermo, resultado de condições patológicas ou hereditárias”. A culpa, neste olhar, é partilhada com a sociedade que não cura, que não escuta, que não ampara.

 

Num dias desses, naquelas conversas que transcendem a mente do cidadão comum, um amigo meu lembrou-me que Neth, em diversas ocasiões, revelou ter sido diagnosticada com Transtorno Afectivo Bipolar (TAB) — uma condição que alterna entre estados depressivos e fases de euforia (mania). A psicologia contemporânea associa frequentemente o TAB ao Transtorno de Stress Pós-Traumático (TEPT), especialmente quando há um historial de traumas precoces.

 

E, que historial? Contado na primeira pessoa no Fly Podcast Ep_120, ouvimos que Neth foi vítima de abuso sexual aos 11 anos (pelo próprio cunhado), perdeu o pai aos 14 (com quem tinha forte vínculo emocional), vive com HIV, passou por um centro de reabilitação e perdeu a guarda do filho. Uma sucessão de traumas não tratados, que se entrelaçam com o uso de álcool e se manifestam em comportamentos erráticos — mas que, no fundo, são um grito inconsciente por ajuda.

 

Nesse ponto, vale recordar Fiódor Dostoiévski, autor russo que, na sua monumental obra Crime e Castigo, nos oferece uma reflexão profunda sobre a culpa, a redenção e o sofrimento humano. O personagem Raskólnikov comete um crime e acredita, num primeiro momento, que a sua inteligência o exime da moral. Mas, ao longo do romance, percebe que o castigo não vem apenas das leis: vem do peso existencial da culpa, da dor psicológica, da perda de sentido. Dostoiévski ensina-nos que o verdadeiro castigo é o sofrimento da alma, não a prisão. Neth, à sua maneira, parece estar neste mesmo abismo moral-existencial, punida não só pelo Estado, mas pelo desamparo que vive dentro de si.

 

Não podemos olhar para o caso da Neth apenas com olhos judiciais. É necessária uma resposta clínica, ética, humana. Se é verdade que é preciso uma resposta, neste espírito de ideia, a Terapia Comportamental Existencial, que trabalha com o sentido da existência, o sofrimento e os vínculos afetivos, pode ser um caminho de reestruturação interna. Mas não basta uma terapeuta ou uma consulta ocasional — é urgente a criação de uma comissão multidisciplinar, com psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais e médicos, que desenhem planos de intervenção ajustados a cada caso.

 

Como dizia Beccaria, 'é melhor prevenir os crimes do que puni-los'. E como sustentava Lombroso, 'não há crime sem causalidade concreta'. E, nas entrelinhas de Dostoiévski, ouvimos: não há redenção sem empatia.

 

Com isso, temos aqui o desafio do nosso tempo: ver o ser humano por trás do delito, escutar o silêncio dos que gritam por dentro, e construir uma justiça que também saiba cuidar. Porque, no fundo, Neth é espelho de uma sociedade que ainda não aprendeu a amar os seus feridos e não aprendeu a curar-se. É o momento de voltarmos para nós mesmo. Qual é a bússola e qual é a direcção?

 

Neth é uma parte daquilo que somos e não revelamos... Vamos pensar.

 

Mário Chanja tcp Chanja Shindika, Psicólogo Criminal e Docente Universitário