Luanda - Tinha dez anos quando cheguei à Zâmbia. Durante quase uma década ( da infância à adolescência) foi lá que cresci. Aprendi a pensar, a rezar, a debater e a sonhar nas salas de aula, igrejas e casas zambianas. Embora angolano de origem, nunca me senti alheio àquele país. A Zâmbia moldou-me; é, em todos os sentidos que contam, a minha segunda pátria.

Fonte: Club-k.net

Por isso, a decisão da família do antigo Presidente Edgar Chagwa Lungu de o sepultar na África do Sul, e não em solo zambiano, é mais do que um gesto íntimo de luto — é um sinal público que deixa um rasto de tristeza, perplexidade e acusação velada.


No dia 20 de Junho de 2025, a família divulgou um comunicado confirmando que o funeral e o enterro do Presidente Lungu terão lugar em Joanesburgo. Trata-se, afirmam, do cumprimento do desejo da família por uma despedida privada e digna. O tom da nota é comedido, até cordial — mas o subtexto é claro. Ao agradecerem ao governo sul-africano pelo seu “não-intervencionismo” e por respeitar os direitos da família ao abrigo da Constituição sul-africana, os signatários deixam implícita a sugestão de que tal respeito talvez não tenha sido assegurado em território zambiano.


A formulação é subtil, mas calculada. Ao apresentar o enterro no estrangeiro como uma questão de dignidade, paz e protecção constitucional, a família — representada pelo Hon. Makebi Zulu, figura de relevo no Partido da Frente Patriótica (PF) — lança, discretamente, uma interrogação ao povo zambiano: que tipo de ambiente reina hoje no país, se um antigo Chefe de Estado não pode ser sepultado na terra que governou?
É um dia triste, não apenas para a Zâmbia, mas para toda a região. Como alguém que sempre admirou a tradição democrática zambiana — tantas vezes discreta, mas firmemente enraizada na dignidade institucional — confesso sentir uma perda profunda.

Independentemente das opiniões sobre o legado de Lungu — que a história julgará como lhe compete —, o seu capítulo final deveria ter sido escrito em solo nacional.


Se alguns sectores da Frente Patriótica tencionam instrumentalizar este momento para transformar a morte de Lungu em símbolo de perseguição política, poderão ver o seu esforço gorado. O luto não se converte automaticamente em capital político. Os zambianos são cidadãos atentos, capazes de distinguir entre a dor autêntica e a exploração partidária da memória.


Espera-se que o Presidente Hakainde Hichilema venha esclarecer, com serenidade, que o governo tudo fez para garantir uma despedida condigna ao antigo Chefe de Estado. Essa explicação não deve servir para marcar pontos políticos, mas sim para defender a integridade das instituições da República.


Importa sublinhar: não é o local do enterro que determinará o futuro da Zâmbia — é a forma como o país lida com esta morte. Será que a nação irá ceder à suspeita e à divisão, ou reafirmará o seu compromisso com a unidade, o respeito e a memória institucional?


Enquanto angolano que cresceu na Zâmbia, lamento profundamente este momento. Lamento a partida de um ex-Presidente cujo legado continua a suscitar debate. Lamento, sobretudo, a oportunidade perdida de uma despedida unificadora.


A Zâmbia sempre foi farol de moderação política numa região tantas vezes marcada por excessos. Não permita que este episódio de luto se transforme numa ferida de divisão nacional.


A história recordará que Edgar Lungu foi enterrado na África do Sul. Mas recordará, com ainda mais nitidez, como a Zâmbia reagiu a esse facto.