Não é possível conviver com tanta discriminação

F8 – Em 1991 houve o primeiro acordo de Paz em Angola, entre a UNITA e o MPLA/Governo, no Alto Kauango, como foi esse acordo?
       WT-Foi um acordo importante e natural, entre angolanos. Eu estava a cobrir a guerra dos 57 dias de cerco ao Luena, por parte das tropas da UNITA. Para mim não fazia sentido aquele conflito, na medida em que os políticos já se encontravam a negociar em Portugal, visando um acordo. O prosseguimento da guerra poderia inviabilizar qualquer entendimento seguramente, caso as tropas continuassem a procurar vantagens posicionais no teatro das operações e inocentes continuariam a morrer inutilmente.
       
       Foi mesmo por acaso o “encontro rádio” com o gen. Mackenzie?
Foi por acaso. Eu estava preparado para enviar um trabalho para Washington, quando, de repente, teve lugar uma interferência. A voz do outro lado desafiou-me a não reportar só o lado governamental, pois a realidade era outra, ao que respondi não poder reportar o outro lado ao mesmo tempo, pois estava com as tropas governamentais. Por isso, solicitei então a permissão para ir para o lado onde estava a UNITA. Não me respondeu na altura, por ter que contactar o seu superior hierárquico, o que o fez retornando mais tarde à linha e dando o conta do acordo.
      Coloquei a questão ao general Higino Carneiro, que considero ser um  amigo, e ele anuiu, mas só depois de muitas hesitações, por desconfiar que se podia tratar duma eventual armadilha, pois acontecendo-me alguma coisa como correspondente da VOA, o governo poderia ser responsabilizado. Mas, depois de alguma insistência da minha parte lá se realizou o combinado ao telefone e atravessei a linha de fogo, ao encontro do comando geral das FALA/UNITA.

Quem ia consigo?
Nesta empreitada convidei as jornalistas Luisa Ribeiro da Lusa e Rosa Inguane de Moçambique, salvo erro.
       F8 - Essas pessoas participaram na sua iniciativa?
      WT- Não. Apenas testemunharam. Encontrei do outro lado também um amigo, que era o general Ben Ben. Perguntei-lhe se não seria possível um cessar-fogo, já que estávamos a negociar em Portugal. Este mostrou-se sensível à minha iniciativa e prometeu contactar Savimbi, que na altura estava no exterior de Angola. Na madrugada do dia seguinte Savimbi liga-me para saber da minha ideia. Mostrou-se muito desconfiado e quase não acreditava na iniciativa, mas deu-me a sua primeira anuência e parti para o outro lado para negociar com o general Higino e Sanjar e tive igualmente de fazer o mesmo com o Presidente José Eduardo dos Santos
       
 Como é que os chefes, Savimbi e Dos Santos, reagiram à sua intromissão no caso quando estavam em curso as conversações de paz?
Não foi uma intromissão, mas uma oportunidade de se calarem as armas. Eu tinha um argumento de peso para convencer os contendores e transmitir-lhes confiança. Não os trairia, pois era amigo dos generais dos dois lado: Ben Ben e  Mackenzie da UNITA e Higino Carneiro e Sanjar do MPLA/Governo. Graças a Deus, após quatro dias de ir e vir de um lado para o outro e de negociar com as respectivas lideranças conseguimos chegar a um acordo que satisfez as duas partes, E conseguimos parar com a guerra fratricida
      
Os acordos de Bicesse tiveram lugar a 31 de Maio de 1991, menos que 15 dias depois das tréguas de Alto Kauango. Que benefícios vieram dessas tréguas?
Os angolanos conheceram muitos benefícios, basta ver como tão rapidamente foi possível assinar em Bicesse, depois de os primeiros acordos de paz terem sido mediados por um angolano. Apesar de considerarem ter sido o de Bicesse, a história reza e continuará a rezar que nunca antes de Kauango os militares da UNITA e do MPLA se haviam sentado a uma mesa para assinar um acordo. Alto Kauango foi a mãe de Bicesse, que o complexo de nacionalismo pretende apagar da história.
     
Tem alguma explicação para o facto de ninguém falar destas tréguas?
Quando diz ninguém fala, está a referir-se ao Governo, mas isso está no quadro da lógica da discriminação, tudo porque continuo com ideias próprias, sou um homem de esquerda, autóctone e com cultura do Sul. Logo a política luso-tropicalista surge a querer apagar acontecimentos históricos que não lhe digam respeito. Se fosse um estrangeiro ou um bajulador invertebrado este acontecimento nunca seria esquecido. Mas fico contente por termos emprestado a nossa modesta contribuição sem pretensões a honrarias. A minha maior medalha foi ter evitado a morte de muitos inocentes com aquele acto, que não considero meu, mas sim, nosso. Muitas pessoas conseguiram viver e outros sobreviver às balas e aos canhões. Isso é bom. Por outro lado o acordo está aí com 19 pontos para a posteridade, pois foi a partir do Alto Kauango que se estabeleceram os telefones vermelhos, as patrulhas mistas, reuniões conjuntas e outras questões militares sensíveis.
      
Voltando atrás no tempo: quando é que começou a fazer jornalismo?
Comecei a fazer jornalismo depois de 1977, pois até essa altura estava nas forças armadas. Como fui apanhado na onda dos presos de 1977, depois de sair fiquei bastante frustrado com a forma como esse processo decorreu. Depois de sair da cadeia e de ter sido colocado em Benguela e Kuado Kubango, entrei como assistente de operador de câmara na TPA, depois de ter sido rejeitado pelo Jornal de Angola, onde participei num concurso, tive boa prestação, mas o director da altura, Costa Andrade Ndunduma, disse não poder aceitar um fraccionista nos seus quadros. Tive de correr dali para fora. 
     
Sabe-se que deixou Angola e foi a Portugal. Porquê?
Na televisão tive um percurso lindo, pois trabalhei em quase todas as áreas de produção e jornalismo. De assistente ascendi a câmara, depois concorri a realização e comecei a trabalhar com grandes nomes de então, como o Cândido e o Ladislau, na qualidade de assistente de realização, no programa “Conheça Angola”. Mais tarde subi a realizador e fiz dois grandes programas de que me orgulho muito, sobretudo “O Horizonte”, programa juvenil.
      Depois deste programa fui abrir oficialmente a delegação da TPA em Benguela e o objectivo seria também abrir a do Huambo, mas por incumprimentos da direcção decidi regressar a Luanda e à Realização e propus realizar um programa diferente, que se denominou Panorama Económico, que versava temas económicos e já naquela altura era um programa de critica à má gestão e ao desperdício. Levou um ano a ser aprovado pela direcção económica do MPLA.
      Como programa de critica fui tendo muitos problemas e quase fui expulso de Angola, principalmente quando ia lutando com um membro do Comité Central do MPLA, na altura, Cabelo Branco, por ter conseguido descobrir fábricas inteiras que o pais havia importado estragadas nas matas do Cacuaco. Foi uma investigação que levou cerca de 3 meses e no final tive, inclusive de ser “desinfestado” no Hospital militar, pois o local estava impestado de animais mortos para dissuadir as pessoas de se aproximarem do local. O meu operador de câmara, na altura, desistiu e regressou, mas como me encontrava tão próximo não desisti e consegui algo que foi um grande furo, pois teve grande repercussão e levou o Presidente a tomar uma decisão instaurando uma comissão de inquérito.
       
       Quanto tempo ficou em Portugal?
Fiquei o tempo bastante para passar por redacções importantes em Lisboa.
      
Trabalhou para que jornais?
Trabalhei no “O JORNAL”, que se transformou na actual revista VISÂO.
      Funcionei ainda, na primeira radio privada em Portugal de grande informação a TSF-Rádio Jornal e no primeiro canal privado de televisão a SIC, onde tive o privilégio de ser o primeiro rosto negro, levado por um grande homem do jornalismo português e angolano: Emídio Rangel. 
      
      Quando é que entrou para a Voz da América?
      Entrei na VOA em 1989/1990 em substituição de Ricardo de Melo, por concurso liderado pelo director da emissora de então, Greg Pirio. Foi uma grande escola e os americanos confiaram-me responsabilidades que nunca antes o meu país me havia conferido, pois eu cobria quase toda a região Austral e Central  
       
       Ouvi dizer que esteve para ser fuzilado por Savimbi. Como foi isso?
     Foi um episódio triste. Estava eu na VOA quando sou convidado para ir à Jamba, por Norberto de Castro, que na altura era o responsável da informação em Lisboa. Antes de chegar à Jamba vejo que tinha na bagagem um passaporte nacional antigo e então me lembrei de o apresenta. Foi o fim da picada, pois todos esperavam que eu apresentasse um passaporte americano. Isso foi o suficiente para me confiscarem a bagagem e revistarem-na. Encontraram no meio de um livro que levo sempre uma folha da minha biografia, onde conta o percurso no MPLA e de que era oficial de comunicações. Acredito que isso os irritou e pensaram que era um agente da DISA, pois nem abriram o passaporte angolano, porque senão viria que o mesmo estava caducado e era antigo. Fui interrogado e só acabou quando os americanos tomaram nota disso e terão explicado à UNITA e a Savimbi que sabiam do meu passado. Fui então solto e convidado a continuar a trabalhar. Na altura tive a solidariedade de todos os jornalistas presentes, em especial do meu amigo Jonuel Gonçalves e do general Bem Bem que se deslocou do Likua, sua base, para vir pessoalmente dar-me a sua solidariedade e dizer que condenava a situação em que me encontrava. Ele agiu como um verdadeiro amigo, dos tempos que nos conhecemos no Huambo. 
       
       Depois disso guardou contactos com gente da UNITA?
      Sim. Mantive, como jornalista, todos os contactos e nunca deixei de os criticar quando a isso era obrigado, daí ter feito coisas boas para Angola, com base nas relações humanas que tenho com todos os actores políticos. Antes de ser de um partido político sou angolano e é isso que em mim está em primeiro plano, logo contacto com todos, independentemente dos pontos de vista divergentes.
      
      Quando é que voltou para Angola?
     Voltei a Angola depois de me ter cansado da emigração e na véspera do período eleitoral
      
      Foi acusado de ser da CIA, porquê?
     Fui acusado pelo facto de pensar com a minha cabeça. Muitos pensaram que eu não conseguiria fazer jornalismo no exterior e então quando me viram na VOA começaram a inventar esta história?
      
     E não é verdade?
     Nunca fui agente da CIA, até por, se calhar, não ter o perfil desejado, mas se a memória dos meus detractores não fosse fraca iria reportar o positivo da minha passagem pela VOA, pois foi com a minha presença que pela primeira vez o Presidente dos Santos e outros governantes passaram a sua voz naquela rádio. Angola passou com a minha presença a ter outro tratamento noticioso. Mas realista e imparcial
      
     O que é que o fez regressar a Angola?
      WT- Uma vontade férrea de poder participar na mudança de um novo ciclo, que havia sido interrompido em 1975 e 1977. Acreditei na força e na vitalidade do meu partido: o MPLA. Penasavas que podia assumir o seu passivo e concertar com todas as vozes internas as divergências tidas e que macularam a sua imagem. Mas o tempo passou e ao invés de unidade e reconciliação interna somamos mais divergências. É triste, mas o MPLA está muito fragmentado e só não se nota isso porque o poder encobre as nossas divergências com bastante violência, discriminação e ostracismo. Estou decepcionado com o MPLA e com o rumo que o pais está a tomar, pois a qualquer momento pode resvalar.
      
    Porquê?
      Não é possível conviver com tanta discriminação, com tanta pobreza, com tanto desemprego, com tanta fome, com tanta miséria,  concomitante com tanta riqueza, selectivamente concentrada numa minoria ligada e ao redor do poder. As desigualdades são brutais e só ainda não existem manifestações, em função da cultura do medo. Mas temos de reconhecer que esta não é eterna. E acredito se o MPLA se se despir de determinados complexos, tem ainda capacidade de reverter a situação e fazer de Angola, na prática, um país mais justo e com menos discriminação. É preciso haver coragem para mudar, para lá do umbigo partidário
      
      O que falta?
      O mundo está numa crise, como nunca antes. Corremos um sério risco de extinção se nada for feito; temos uma crise energética, uma crise financeira, uma crise económica, uma crise de fome, uma crise armamentista (????....) e uma crise de lideranças, como no passado. Isto quando, por capricho do destino, o último grande líder mundial, vivo ainda hoje, surgiu em ÁFRICA na pessoa de Nelson Mandela. Angola bem carece de um líder suprapartidário, que não tem. Um líder dessa dimensão estaria forçosamente mais comprometido com as aspirações dos vários povos e nações que habitam o território angolano. Mas em Angola o que é legitimo é  que se dê prioridade, primeiro ao seu partido e aos militantes do partido, como forma de recompensa de fidelidade e disciplina, Isso é certo, mas partidária, e, portanto, discriminatória. Este modelo já mostrou a sua ineficácia, logo deveríamos evitar, no futuro, que um Presidente da Republica fosse ao mesmo tempo presidente dum partido.

Fonte/Editado: Folha8 & Club-k