Luanda - O Ministro da Administração do Território, Dr. Bornito de Sousa, proferiu recentemente declarações contundentes sobre o processo eleitoral que, por confundirem a opinião pública, requerem clarificação e levaram-me, no interesse público, a convidá-lo para um debate público com quem de direito.


*Márcia Valentim
Fonte: Club-k.net

O Meu Repto ao Dr. Bornito de Sousa

Afirmou o Ministro que o presidente da Comissão Nacional Eleitoral, será um juiz, a ser eleito por concurso curricular público, para garantir a independência do órgão encarregado da realização das eleições gerais no país.


Primeiro, não é competência constitucional do Ministro fazer propostas de lei sobre questões eleitorais. Nos termos do artigo 164º da Constituição, legislar sobre eleições constitui competência com reserva absoluta da Assembleia Nacional.


Segundo, sendo a CNE um órgão colegial, qual será a relevância do método de escolha do seu presidente? É irrelevante o facto de o presidente da CNE ser escolhido ou não por concurso público, porque ele não terá de facto competências de organizar a eleição. Se for o MAT a controlar a logística, se for o MAT a produzir e distribuir os cadernos eleitorais; se for o SINFO a escolher os membros das assembleias de voto; se for o Executivo a controlar os computadores do escrutínio; se for o Executivo a controlar a execução do orçamento da CNE, o papel da CNE será passivo, subalterno.


Terceiro: se as competências eleitorais cruciais são exercidas pelo Executivo, é enganoso afirmar que a presença de um juiz na CNE, eleito por concurso público, é que irá garantir a independência do órgão encarregado da realização de eleições gerais no país. Pelo contrário: o juiz vai sim garantir a independência dependente da CNE. 

 

Bornito de Sousa, afirmou também que o Presidente da República e Chefe do Executivo não tem representante na CNE.


O Presidente da República não pode ter “representantes” na CNE, como tinha antes, porque a Cosntituição assim o impõe. Dantes, a CNE era um órgão “participado” pelos diversos órgãos de soberania, a saber, Presidente da República, Assembleia Nacional, Governo e Tribunais. Agora, a Constituição de 2010 alterou isso. Estabelece um novo perfirl ou modelo de administração eleitoral, a “administração eleitoral independente”.

 

A caracterização dos perfis de administração eleitoral é um assunto bem estabelecido no direito eleitoral internacional. Foi feita com base em estudos especializados da prática seguida por mais de duas centenas de países democráticos. Um desses estudos foi realizado e publicado em 2007 pelo International Institute for Democracy and Eleitoral Assistance – IDEA; e um outro, de Lopez-Pintor (2000), foi realizado sob os auspícios do PNUD.
Com base nesses estudos, o direito eleitoral comparado produziu dois principais critérios para classificar as administrações eleitorais: 1) a posição institucional do órgão; e 2) o vínculo institucional dos membros.

 

A posição institucional da administração eleitoral diz respeito ao estatuto jurídico, seu posicionamento em relação às outras instituições do Estado. Um órgão da Administração Eleitoral será governamental quando órgãos da administração pública, portanto do governo, administram ou controlam o processo eleitoral, como sucede, por exemplo, na Alemanha, na Áustria, nos Estados Unidos, na Itália e na Suécia. Será misto quando o processo eleitoral é administrado por órgãos do governo e órgãos independentes do governo, como acontecia entre nós, até a promulgação da constituição aprovada em 2010. A Administração eleitoral será independente, quando nenhum órgão do governo participa na administração do processo eleitoral, como sucede por exemplo no Brasil, Austrália, Canadá, Israel, África do Sul e em todos os países latino-americanos com a excepção da Argentina.


O vínculo institucional dos membros pode ser de carreira, partidário, especializado ou combinado. Será de carreira se o membro for admitido por concurso público ou de outro modo e permanecer vinculado à instituição a título permanente, independentemente de pertencer ou não aos partidos representados na Assembleia ou ao Partido que governa. Será partidário se o membro for designado por um Partido político. Será especializado, se o membro for designado em razão das suas competências técnico-científicas; o vínculo será combinado se os membros forem indicados por duas ou mais das razões acima expostas.

 

O direito eleitoral comparado não considera o adjectivo “independente” no artigo 107º da Constituição como referente ao vínculo institucional dos membros, mas sim à posição institucional dos órgãos da administração eleitoral em relação aos outros órgãos do Estado. Nesta base, não tem fundamento doutrinário afirmar-se que a “independência da CNE deve ser entendida pelo seu funcionamento”. A independência da CNE é primeiramente orgánica, e depois funcional. Tem a ver com o seu posicionamento institucional em relação aos outros órgãos do Estado e não com o vínculo institucional dos seus membros. Onde criticamos o Ministro é no facto de pretender enfatizar uma suposta independência funcional quando retira da CNE as principais competências eleitorais. É como que se o Ministro estivesse a chamar-nos “burros”. 


Bornito de Sousa disse tamém que o MAT não está a substituir as competências da CNE, por actuar de acordo com as funções que lhe são atribuídas por lei, pois o registo eleitoral é uma actividade administrativa do Executivo. ... “À CNE cabe organizar o processo eleitoral no seu sentido estrito, como a votação, as urnas, as assembleias e boletins de voto e a logística eleitoral, mas o registo dos eleitores é uma actividade administrativa que deve ser do Executivo”.

Era assim antes, agora não. Porquê?


Porque no quadro dos princípios gerais da organização do poder do Estado e sob a epígrafe Administração eleitoral, a Constituição constitui o registo eleitoral parte integrante do processo eleitoral, a ser organizado pela administração eleitoral independente. Tanto é assim que ela estabelece os princípios orientadores para a realização do registo sob a epígrafe “Administração eleitoral”. E fá-lo nos seguintes termos: “o registo eleitoral é oficioso, obrigatório e permanente, nos termos da lei”.


O princípio da oficiosidade do registo eleitoral significa que, independentemente da obrigatoriedade de todos os cidadãos procederem ao seu próprio registo, incumbe à Administração eleitoral (e não mais ao Executivo) o dever de promover a inscrição de todos os cidadãos com capacidade activa de que tenham conhecimento, podendo e devendo para o efeito requisitar ou solicitar a entidades públicas ou privadas os elementos de que careçam. Consequentemente, a Constituição torna inconstitucional a lei (lei 3/05, de 1 de Julho - Lei do Registo Eleitoral), que o Ministro diz que lhe atribui a função de fazer o registo. Esta lei antiga de 2005 viola o princípio da oficiosidade ao condicionar a inscrição dos eleitores à promoção prévia pelos próprios interessados. Por isso, está eivada de inconstitucionalidade superveniente.


O princípio da permanência do registo eleitoral significa que não há repetição do registo aquando de cada nova eleição. Significa também que deve haver permanentemente uma estrutura de registo em todo o país. Esta estrutura já não pode ser a CIPE, porque ofende o princípio da exclusividade de competências consagrado pelo artigo 107º da Constituição, sendo, por isso, absoleta.


Considerando que Angola já possui, desde 2007, o Ficheiro Informático Central do Registo Eleitoral – a base de dados do registo contendo o universo da população eleitoral do país de cerca de 8,500,000 eleitores - o princípio da permanência do registo eleitoral significa que o FICRE deve manter-se para todas as eleições, sem necessidade de qualquer renovação, salvo as alterações tornadas necessárias pela descarga dos mortos, pelo aditamento de novos eleitores e pelas mudanças de residência, para que, em cada eleição, o FICRE corresponda com actualidade ao universo eleitoral.

 

Uma vez inscrito, o eleitor não precisa de voltar a inscrever-se. É o que se chama protecção do eleitor pelo princípio da permanência nas listas. O que há a fazer agora para se conformar os actos do Estado à Constituição é transferir a custódia do FICRE e da Base de Dados do Registo Eleitoral para a CNE, porque sem o FICRE não será possível organizar os processos eleitorais. 


Por outro lado, a Constituição não diz que cabe à CNE organizar “o processo eleitoral no seu sentido estrito”, como afirma o Senhor Dr. Bornito de Sousa. A Constituição diz inequivocamente: “os processos eleitorais são organizados por órgãos da administração eleitoral independente...”


O que levará o nacionalista Bornito de Sousa Baltazar Diogo a interpretar a disposição inequívoca “processos eleitorais” como sinónima de “processo eleitoral em sentido estrito”? Será a doutrina? Será a sua consciência jurídica? Ou será o desejo de colocar a ética acima da política? Será o respeito pio pelo princípio da separação de poderes ou as normas da deontologia profissional?


O facto é que mesmo antes de o Parlamento discutir a lei do registo, já o Executivo tinha comprado um sistema de informação geográfica, que lhe permite fazer o mapeamento eleitoral e definir o local onde as pessoas irão votar. O Executivo acoplou essa função ao “registo eleitoral”. Além disso, o Executivo comprou também a infra-estrutura tecnológica para as eleições, incluindo os aplicativos e equipamentos para a gestão das bases de dados dos eleitores, dos locais de votação e dos procedimentos eleitorais. Isto significa,que o Executivo é que está a preparar “em sentido amplo” as eleições, em contravenção à Constituição.


Esta preparação das eleições em sentido amplo prossegue, apesar de Bornito de Sousa ter escrito no seu relatório de Junho sobre o registo eleitoral que “o quadro actual não permite uma rigorosa elaboração do mapa das assembleias e mesas de voto, nem tão pouco uma organização eficiente dos cadernos eleitorais”.


No final, o Ministro lamentou que haja núcleos que tentam demover as pessoas de se recensearem ou de confirmarem os dados eleitorais, com os argumentos, entre outros, que o MAT desenvolve tarefas da competência da Comissão Nacional Eleitoral (CNE) ou que o Executivo prepara a fraude eleitoral.


O povo angolano não é burro, é maduro. Os factos falam mais alto do que as palavras. E se houver interesse em dissipar dúvidas, é de interesse público que o Ministro Bornito de Sousa aceite o repto de debater o assunto em directo com as personalidades que constituem ou dirigem os núcleos a que se referiu.


Senhor Ministro: aceita o debate na TV Zimbo ou no Face Book?


*Márcia Valentim