Luanda - Colocaram-me o desafio de defender a tese da autarquização de Cabinda, no início do processo de implementação das Autarquias Locais, previsto para 2020.
Fonte: Club-k.net
Os autores de tal provocação escudam-se no argumento de ter sido eu, o intrépido jurista, a catalogar as várias correntes doutrinárias sobre a questão de Cabinda, trazidas a público em obras escritas (Autarquias Locais no Direito Angolano, Editora Novos Cérebros, 2018 e Pensar Direito Volume IV, Editora Novos Cérebros, 2018), mas sem nunca ter assumido uma posição.
Se esse é um facto inegável, já a defesa de uma das correntes se afigura um desafio hercúleo e de bravura, tal é a sensibilidade que o tema encerra. Mas como a covardia não mora aqui, aceito mostrar, hic et nunc, qual o quadro defensável para o conhecido enclave.
Cabinda, por razões históricas, geográficas, culturais, políticas e pelo seu fraco desenvolvimento socioeconómico, merece um tratamento jurídico diferenciado do resto do país. Se essa posição inicial é quase consensual entre as grandes forças políticas angolanas, com excepção para os movimentos independentistas que existem em Cabinda, com destaque para a FLEC (que há anos luta pela independência do enclave), a solução jurídico-política actual não encontra um denominador comum. Hoje, estamos longe da visão centralizada que o partido no poder impôs nos períodos monopartidário e democrático, “mitigada” por um inoperante “Estatuto Especial” de duvidosa tecnicidade, que, embora esteja em vigor, não passa de “letra morta”.
A questão resume-se na escolha de uma de duas: independência ou autonomia.
Eis a questão!
A independência colocaria um ponto final e Angola perderia a “galinha dos ovos de ouro”. Ponto.
A autonomia levanta apenas a questão do seu grau, ou, colocando a questão de outro modo, de qual o tipo de autonomia que se deve consagrar para Cabinda.
Para mim, tendo em conta a dimensão reduzida do território e a sua branda densidade populacional, sem perder de vista os factores históricos, geográficos, políticos, culturais e socioeconómicos, que justificam a autonomia da província no seu todo, julgo que ela pode ser a primeira autarquia supra-municipal, prevista pela Constituição da República de Angola.
Esta tese, que encontra acolhimento constitucional, substituiria o obsoleto Estatuto Especial, e, se não calasse os críticos mais radicais, militantes da tese da independência, colocá-los-ia em cheque perante este “meio termo”, que se apresenta como uma alternativa na busca de consenso, invertendo o quadro actual. E mais: a proposta do Executivo para a institucionalização das Autarquias Locais em Angola também não prevê uma solução para Cabinda. Penso que Cabinda não pode ser tratada como as demais províncias de Angola no processo de autarquização em discussão no país. A busca de consenso político é uma prioridade no processo em curso de democratização e reconciliação nacional. Ver Cabinda como uma mera província do território é nivelar mal e ignorar as especificidades de um território e de um povo que, pelas particularidades já referidas, merece um outro tipo de enquadramento no contexto nacional. Se o Estatuto Especial se mostra insuficiente para levar a paz àquela província do nosso país, e se o processo de implementação do Poder Local está em curso, nada mais prudente e oportuno do que apanhar o “barco” e conferir a Cabinda um quadro normativo verdadeiramente autónomo. Esta autonomia do enclave, no quadro do Poder Local que se avizinha, não só poderá viabilizar a paz e a reconciliação nacional, como também permitirá criar condições para o tão almejado desenvolvimento socioeconómico desta província, há muito adiado. A gestão do conflito de Cabinda é sofrível, e não será a militarização ou a imposição de um regime autoritário que trará a concórdia a irmãos desavindos!
A nossa história recente ensinou-nos que o consenso e a busca de soluções, dentro do quadro do Estado Democrático e de Direito, é viável. É a lição que extraímos do longo conflito fratricida que Angola viveu no período pós-independência. A paz e a reconciliação nacional alcançam-se com o diálogo e com a criação de condições normativas e materiais para a sua concretização. Vale, pois, aqui alertar para o facto de que a problemática de Cabinda entronca com questões ligadas à defesa da soberania e do interesse nacional, pois esta encontra-se paredes-meias com questões de segurança do Estado. É, pois, uma preocupação por ser uma província fronteiriça; a instabilidade militar pode afectar a Região dos Grandes Lagos, já por si, bastante conturbada. A instabilidade política e militar na RDC pode encontrar em Cabinda terreno fértil para estender os seus efeitos nefastos, podendo ser um vaso comunicante nos dois sentidos (Angola/RDC e vice-versa). Mais do que um apelo, aquilo que sugiro aqui é um “aperitivo” de uma tese maior que defendo (ver obras citadas). Nos três processos em curso em Angola, a saber: de pacificação e reconciliação nacional; de reconstrução nacional; e de democratização do país, Cabinda é a província de Angola que menos sentiu os seus efeitos. Penso que a primeira visita do Presidente da República (João Lourenço) como Titular do Poder Executivo, que foi em Cabinda, no quadro da sua presidência aberta, deve ter continuidade, e a autarquização do enclave afigura-se como a mais aconselhável de entre as opções. A autarquização de Cabinda, no plano provincial, incluirá Autarquias Municipais.
Na orgânica da Autarquia Provincial, teríamos um Presidente da Autarquia Provincial de Cabinda, que formaria o seu Executivo Provincial (Câmara Provincial de Cabinda) e a Assembleia Provincial de Cabinda. Com as necessárias adaptações, seguiria o modelo da Proposta de Lei de Organização e Funcionamento das Autarquias Locais, sob consulta pública. Para a tutela da Autarquia de Cabinda, proponho que esta província tenha um representante do Titular do Poder Executivo na província, com poderes de controlo de mera legalidade. Outrossim, no que tange às finanças de Cabinda, enquanto Autarquia Local, proponho que, para lá do regime geral das finanças locais, Cabinda tenha um regime especial. Este regime especial deverá ser elaborado com o concurso da população local (através das várias forças políticas e da sociedade civil organizada), na sequência dos consensos que se prevê com a presente proposta.
Outra questão não menos importante é a do reconhecimento do Poder Tradicional e dos respectivos direitos costumeiros prevalecentes em Cabinda. Com a consagração do verdadeiro poder local em Cabinda, não só poderíamos alcançar a paz, como seria o marco para o desenvolvimento socioeconómico da província mais a norte de Angola. Este modelo de autarquização provincial, resultando em Cabinda, num segundo ciclo eleitoral autárquico, poderia ser ensaiado pelo Estado nas Lundas, onde os movimentos de federalismo reclamam, não injustificadamente, também por autonomia. Porque não têm a mesma intensidade de Cabinda, que me perdoem os defensores daquelas províncias do leste, sugiro ao Estado que deixe a autonomia das mesmas para uma segunda fase. É o gradualismo e não a exclusão que sugiro. A necessidade de construir um Estado Democrático de Direito em bases realistas e seguras aconselham que o mesmo seja feito de forma progressiva ou gradual. Aliás, o princípio do gradualismo é inerente ao Estado Democrático de Direito. As suas instituições, os direitos económicos, culturais e sociais, entre outros bens jurídicos, são concretizados de forma faseada ou gradual. Quando sabemos que os nossos direitos e bens jurídicos constitucionalmente consagrados vão ser concretizados, embora deferidos no tempo, não nos podemos sentir excluídos, tal como acontece com o sector Justiça, em que os tribunais não estão implantados em todas as regiões e municípios do país, por falta de condições humanas e materiais (infra-estruturas), também eles num processo de implementação gradual. O processo de autarquização do país deve ser feito, de igual modo, de forma faseada. Estamos todos num devir!
Por outro lado, o modelo de Estado unitário, vertido na Constituição de 2010, não permite a criação de regiões autónomas, como se verifica em Portugal com os arquipélagos da Madeira e dos Açores. Outrossim, não se vislumbrando, a curto prazo, uma revisão constitucional, sugiro a autarquização das províncias em Angola com as especificidades referidas como única saída para se atender aos movimentos reivindicativos que reclamam por “autonomias”. Este meio termo, oportuno, que se abre no processo de implementação do Poder Local em curso, se não trouxer a pacificação desejada, vai, no mínimo, orientar as discussões e apaziguar as partes desavindas, condição bastante para a construção de pontes, sempre plausíveis para a formação de consensos. Angola é um mosaico de “nações”, apesar de predominar o tronco ancestral bantu na grande maioria de nós, outras “raízes” continuam a dar frutos, numa terra que se apresenta plural e diversa, mas que pode viver em irmandade. Os Serviços de Inteligência e Segurança do Estado, que no passado defenderam o “Estado” e a integridade territorial, são hoje chamados, no quadro de implantação do Poder Local, a prevenir os perigos inerentes, susceptíveis de causarem danos aos superiores interesses nacionais.
Se a autarquização de Cabinda, no quadro da concretização do Poder Local em curso, for uma realidade em 2020, Angola terá dado um passo importante no processo de democratização e de construção do Estado de Direito, com o fim último de formar uma nação multicultural, assente em bases seguras, com uma visão plural do Poder Local, e onde se atende às autonomias administrativas das províncias, tendo em conta as suas especificidades. Se tal desiderato se consumar, já não daremos como falha esta nossa jornada.