Luanda - Especialista em Direito Constitucional, advogado, com mestrados em Ciências Políticas e Criminais, Ciências Jurídicas Forenses e funcionário público, Agostinho da Conceição Paulo considera uma grande falha não se ter abordado, na última revisão da Constituição, o excesso de poderes na esfera do Chefe de Estado e defende como urgente o esvaziamento desses poderes. “São tantos os poderes que, às vezes, ficamos com a impressão de que o Presidente deve e está autorizado a interferir nas decisões do poder legislativo e judicial”, afirmou.

Fonte: Club-k.net

Como constitucionalista, como é que analisa as alterações efectuadas recentemente na nossa Constituição?

Onze anos depois das alterações constitucionais de 2010, que, entre outras abordagens, tiveram as suas principais referências na aprovação do direito de opinião, manifestação e de greve, reforçando o paradigma de Angola como um Estado democrático e de direito, surgiu a necessidade de se adaptar o actual quadro legal ao novo paradigma político e social vigente no país. Foi assim que, a partir de uma iniciativa presidencial, se realizou, em 2022, uma revisão pontual da lei Magna, com ligeiras alterações em alguns artigos, particularmente os que têm a ver com a soberania do poder judiciário, a visão e perspectiva da administração pública, bem como o funcionamento dos tribunais à luz da nova Lei Orgânica dos Tribunais de Jurisdição Comum, que se adaptam na perfeição ao novo Estado de direito que se pretende erguer em Angola, com suporte na justiça social.

Podemos dizer que as alterações correspondem às expectativas?

Nem por isso. Contrariamente ao que seria de se esperar, a revisão pontual da Constituição pecou em grande medida por não passar umas pinceladas aos excessos que conformam as competências do Presidente da República.

 

Há excessos de poder na figura do Presidente da República?

Muitos. São tantos poderes que, às vezes, ficamos com a impressão de que o Presidente deve e está autorizado a interferir nas decisões do poder legislativo e judicial.

 

São reais essas interferências?

Com certeza, são reais e praticamente incontornáveis. O Presidente goza do poder discricionário no que concerne à nomeação dos líderes dos Tribunais Superiores, o que não é nada bom.

 

Considera oportuna neste momento uma eventual alteração do estatuto do Presidente da República?

O país precisa disso e com alguma urgência. As alterações iriam permitir um melhor “check and balance” do Executivo e acabar com as tão propaladas interferências do Chefe de Estado nas decisões do poder legislativo e judicial.

 

Mas podemos dizer que as alterações ocorridas garantem novas perspectivas?

Podemos dizer que sim em relação ao poder judiciário, sobretudo no aspecto concernente à soberania do juiz. Mas, repito, esqueceu-se de tocar nos poderes excessivos que continua a ter a figura do Presidente da República, enquanto Chefe do Governo e Comandante-em-Chefe das Forças Armadas Angolanas. Como constitucionalista, considero urgente o esvaziamento desses poderes. Foi uma falha grave não se ter abordado este assunto na última revisão.

 

Quais são as principais consequências que esses excessos podem causar?

São vários. Por norma, quando há excesso de poder, o agente público tende sempre a actuar fora dos limites da sua esfera de competências e, naturalmente, os consequentes abusos à mistura. Os agentes públicos que se envolvem nesse tipo de acções, por norma, acabam sempre mal e não raras vezes têm um fim trágico.

 

Está a augurar maus presságios para o nosso sistema?

Não é que esteja a augurar maus presságios. Pelos erros que se cometem não podemos esperar um fim melhor. Com as políticas actuais em curso no nosso país, o MPLA pode estar a cavar a sua própria tumba. Se insistir no erro, pode vir a ser vítima do seu próprio veneno.

 

O que quer dizer com isso?

Acho que o senhor jornalista percebeu muito bem.

 

É membro do MPLA?

Sim, com toda honra. Sou militante e apoiante incondicional do MPLA.

 

Acha que o MPLA está a cavar a sua própria tumba?

É o que vai acontecer se não mudarmos as políticas de governação, de gestão da coisa pública, etc., etc…é preciso acompanhar os sinais de mudança. Não é necessário ser um grande pensador para concluir que quando o MPLA deixar de ser o partido governante, estes excessos que se consentem hoje podem, num futuro muito próximo, se transformar na arma potencialmente letal que o vai destruir, com fortes possibilidades de o fazer desaparecer do cenário político nacional.

 

Considera possível que isso aconteça?

Sim, e é assim que vai acontecer se MPLA deixar o poder. As vezes fico a ver aquelas imagens que circulam nas redes sociais sobre o antigo, creio que director de gabinete do antigo Presidente Mobutu Sese Seko, da República Democrática do Congo(ex-Zaíre) feito demente a passear pelas ruas de Kinshasa e vem-me à memória o fim a que muitos dos que fazem hoje parte do sistema podem vir a ter.

 

Nos últimos tempos uma série de escândalos em cadeia têm manchado o poder judicial. O que nos pode dizer em relação a esses presumíveis ilícitos?

Como constitucionalista, considero muito triste acompanhar esta grande podridão que graça no interior do poder judicial. Por força desta podridão, em Angola, hoje, são poucos os que acreditam na justiça. Muitos deixaram de confiar nas decisões dos tribunais. Os tribunais são os órgãos de soberania que devem garantir a estabilidade social dos cidadãos e do Estado. É lamentável quando nos apercebemos que são esses mesmos órgãos de justiça que fazem desacreditar a perspectiva de Angola como um Estado normal.

 

Está a confirmar que o nosso sistema judicial não goza de boa saúde?

Não… não goza. Estamos mal do ponto de vista do judiciário. Às vezes ponho-me a pensar se não seria melhor reformularmos todo sistema.

 

Não está a ser duro demais na sua avaliação?

Nem por isso. Se o senhor jornalista prestar bem atenção, facilmente vai perceber que estamos num país onde ninguém sabe quem manda na justiça; se são realmente os juízes ou é o poder político. É preciso definir, no âmbito de uma perspectiva jurídico-constitucional, como devem funcionar os nossos tribunais. Os tribunais estão tão desacreditados que muito boa gente deixou de recorrer a eles para resolver os seus litígios, sobretudo os casos relacionados com negócios mal parados. É mais fácil chegar-se a um acordo extrajudicial arbitrado por alguma entidade ou por via da conciliação do que esperar pelo veredicto de um juiz, que dificilmente sai, se não pagares uma ‘propina’ que seja.

 

Temos corrupção em alta escala nos tribunais?

Com certeza. A corrupção atinge níveis assustadores não só a nível dos tribunais superiores, os de comarca também não escapam a essa odisseia. Existem processos que decorrem há mais de 2 ou 3 anos, mas nunca foram decididos em sede de uma providência cautelar, por falta de dinheiro. Os juízes e agentes da administração da justiça andam atrás dos constituintes para pedir dinheiro, como condição para o processo andar. Essa é a realidade nua e crua que vivemos na nossa sociedade.

 

Ninguém faz nada para conter esse mal?

Quem vai fazer se o mal parte do topo? Desde que Angola é independente, nunca se ouviu falar em tanta venda de sentenças como se assiste actualmente e em muitos casos envolvendo magistrados de tribunais superiores.

 

Há venda de sentenças nos tribunais?

Com certeza e não só. Existem muitos condenados com processos transitados em julgado, que depois da sentença vão para casa. Outros vão para fora do país, onde Portugal aparece como a primeira referência. São casos que chegam ao domínio público por envolverem figuras com alguma notoriedade política ou associados.

 

Pode citar alguns casos?

O caso da jovem que foi condenada por matar o marido é um exemplo, mas existem outros. Onde é que ela anda? Está em Lisboa. Como foi lá parar, ninguém sabe.

 

Do seu ponto de vista, qual seriam as saídas para o fim destas debilidades que enfermam o nosso judiciário?

As soluções podem ser encontradas se houver vontade para o fazer. Temos exemplos concretos e recentes no país, para comprovar essa minha afirmação.

 

É possível citar alguns desses casos recentes?

Estou a me referir ao caso da doutora Exalgina Gambôa. Foi um bom exemplo, mas o assunto não deveria se restringir apenas a ela. Deveria ser extensivo a outras áreas, que todos nós conhecemos. Não se pode avaliar de ânimo leve a situação em que se encontra o poder judiciário. É a estabilidade do país que está em causa. Ninguém vai acreditar no nosso Estado e país se os tribunais continuarem no estado em que se encontram. É lamentável ter que dizê-lo aqui, mas temos que admitir que as nossas instituições estão todas mancomunadas com a corrupção. Se quisermos realmente reverter o quadro actual, penso que a solução passa pela criação de um novo quadro jurídico. E repensar um novo quadro jurídico para Angola é pensar na redefinição de uma nova estratégia constitucional para o país. A Constituição que temos, quase já não funciona.

 

Não funciona?

São tantas as anomalias que, de forma impune, acontecem todos os dias no nosso país, que torna difícil acreditar que existem leis em Angola. Um dos exemplos caricatos a que me refiro neste aspecto tem a ver com as nomeações para altos cargos públicos, de pessoas criminalmente indiciadas. Esses são os erros que temos que combater se quisermos ter o judiciário a funcionar. Somos todos cidadãos e, naturalmente, cada um com as suas cores partidárias, mas não podemos pôr os interesses partidários acima dos interesses da Nação. Temos que olhar para o país. O país está mal!

 

Falou na redefinição de uma nova estratégia constitucional. Como seria edificada esta estratégia?

A estratégia passa pela avaliação profunda e perspicaz se, em pleno século XXI, é normal termos uma Constituição onde o poder judiciário delega os seus poderes a uma figura como a do Chefe de Estado para decidir sobre o que é suposto ser ele a decidir; se é correcto termos uma Constituição onde os cidadãos não escolham directamente o seu Presidente e os seus deputados. Redefinir se é normal um órgão de soberania de tamanha importância como o do poder judiciário, os magistrados serem escolhidos por uma entidade política administrativa para decidir em processos que estas mesmas entidades estão envolvidas? Se é normal que o Tribunal Constitucional ou eleitoral tenha juízes com cores partidárias? Penso que o futuro do nosso país depende da redefinição de um novo quadro jurídico-constitucional e o agravamento das sentenças em algumas tipologias de crimes.

 

Defende a agravação de algumas penas?…

É necessário agravar as penas em certas tipologias de crimes. Por exemplo, um criminoso que furta o dinheiro alocado para a compra de medicamentos, a pessoa envolvida não deveria ser julgada como ente que comete um crime de delito comum. Porque ao furtar para se apropriar indevidamente de valores que não lhe pertencem, ele também está a matar o paciente que está a espera, no hospital ou em casa, dos medicamentos que necessita para tratar do mal que lhe apoquenta. Por outras palavras, ele furta e mata ao mesmo tempo.

 

Lei geral do trabalho/sub

Para além da lei geral de trabalho, que passou com apoio da esmagadora maioria parlamentar, estão em discussão outras propostas de alteração a lei de imprensa e sobre o estatuto das ONG's, onde as discussões parecem longe do consenso.

 

O que tem a dizer sobre as várias propostas de lei que estão em discussão na Assembleia Nacional, como a alteração à Lei de Imprensa e à Lei do Estatuto das ONG?

Como disse inicialmente, a revisão pontual da Constituição teve como principal objectivo ajustar a nossa lei magna ao momento que o país vive. Tínhamos uma Lei Geral do Trabalho que não beneficiava a maioria dos trabalhadores angolanos. A Lei 7/15, de 2015, funcionou como uma espécie de lei latifundiária, que atribuía maiores garantias jurídicas à entidade empregadora e, a grosso modo, fragilizava a perspectiva do sujeito trabalhador. Ao propor a sua alteração, o legislador chegou a conclusão que a Lei 7/15 põe em perigo a estabilidade do emprego e com isso põe em causa um direito fundamental do cidadão que é o direito ao trabalho. As alterações que se fizeram contribuíram para a estabilização do mercado de emprego.

 

A nova lei protege os interesses mais sublimes dos trabalhadores?

À luz da antiga lei, mais concretamente no sector privado, ao empregador era permitido rescindir o contrato sem qualquer garantia para o trabalhador. A antiga lei não atribuía garantias alguma aos trabalhadores. Ao fim de cinco anos de serviço ou um pouco menos, o trabalhador tanto podia transitar para efectivo ou simplesmente assistir à rescisão do seu contrato, conforme a boa vontade do patrão, enquanto que a nova lei determina que ao fim de um contrato de três meses o trabalhador passa a ter um contrato por tempo indeterminado, se nenhuma das partes manifestar o interesse de rescindir.

 

Mas pelo que podemos perceber, em relação à Lei Geral do Trabalho, parece haver ainda algumas arestas por se limar, como os subsídios de desemprego e de isolamento?

Pelo que é do meu conhecimento, no âmbito das prerrogativas concedidas à administração pública, o Estado estabeleceu o subsídio de isolamento para acudir algumas situações difíceis que enfrentam alguns funcionários públicos que vivem ou trabalham em zonas recônditas. Penso que, nos próximos tempos, vai também à discussão a questão dos subsídios de desemprego. Mas a grande questão que se levanta aqui é saber quem é realmente o desempregado em Angola? A essência das actividades laborais em Angola está na informalidade. São os mercados informais os maiores empregadores. Será que podemos considerar desempregados os que trabalham nestes mercados? Ou vai-se considerar desempregados os cidadãos que não trabalham para o Estado ou os que não têm contrato de trabalho? Portanto, essas são questões que vão gerar acesos debates até se chegar a uma definição concreta sobre a figura do desempregado no nosso país. Saber quem vai beneficiar do subsídio de desemprego, parece ser a grande questão do momento. Olhando para a informalidade das nossas actividades económicas, podemos facilmente perceber que as pessoas que aí laboram não podem ser consideradas desempregadas. O que pode ser necessário é ,talvez, formalizar essas actividades, com atribuição de carteiras profissionais, a exemplo do que acontece com as trabalhadoras domésticas que hoje fazem já parte do mercado formal de emprego. Nos nossos bairros, nas nossas comunidades, podemos encontrar vários exemplos de cidadãos que, apesar de não exercerem uma actividade formal, chegam a ter rendimentos e condições de vida melhor do que muitos que trabalham para o Estado.

 

Qual é a sua opinião sobre as propostas de alteração da lei sobre o estatutos das ONG?

Considero um grande retrocesso levar à discussão a nova proposta de Lei sobre o estatuto das Organizações Não-Governamentais (ONGs). O país já ia muito avançado em relação a isso.

 

Quer dizer que a proposta representa um recuo?

Sim, genericamente as novas propostas representam um retrocesso. O governo parece querer criar um bode expiatório para passar a controlar os grupos associativos. Não colhem os argumentos sobre uma pretensa supervisão das suas actividades para assegurar que não sejam usadas por organizações terroristas ou de branqueamento de capitais, ou mesmo se envolverem em acções que possam colidir com os interesses soberanos do Estado. Isso nunca aconteceu em Angola. Não há registo, no nosso país, de alguma ONG envolvida em ilícitos com processo transitado em julgado.

 

As novas propostas beliscam os direitos e liberdades dos cidadãos?

Claro que sim. Elas beliscam as garantias constitucionais dos cidadãos. Num Estado de Direito os cidadãos são livres de criar as associações, fundações, etc., etc….

 

E em relação à lei de imprensa?

É muito negativa. Estamos muito atrasados em relação aos outros países da região. Provavelmente, estamos no fim da lista. Já caminhamos muito, mas assusta-me saber que continuamos a recuar no tempo, a perder os ganhos que conquistamos com o sacrifício de milhares de angolanos. As instituições democráticas perderam o seu valor. Num momento como este que o país atravessa, seria bom que aos jornalistas pudesse ser permitido exercer as suas funções de forma responsável, pluralista e com isenção, os políticos fazerem políticas responsáveis, os juízes julgar os casos nos termos da lei, termos uma polícia nacional republicana e dar aos cidadãos o direito de se manifestarem, desde que respeitem o preceituado na lei.

 

No seu entender, o país não está bem em termos de liberdade de imprensa?

Em qualquer parte do mundo, desde que respeite a lei e a Constituição, o jornalismo é uma actividade exercida de forma liberal. Já não faz sentido um órgão de imprensa depender de um Ministério das Telecomunicações ou outro qualquer. Não faz sentido obrigar as médias cibernéticas a se registarem para difundir as suas informações. Em países normais e desde que se respeite a lei e a Constituição, cada um pode criar uma página no Facebook e passar a divulgar as suas informações, sem necessidade de registo algum. A informação tem que ser pluralista e isenta. O Estado não pode pensar que, nos dias que correm, é possível continuar a controlar as médias ou as novas tecnologias de comunicação. Insistir neste tipo de erros é o mesmo que regredir no espaço e no tempo.

 

Mas o assunto é tão grave assim?

Parece que não, mas é. Em muitos países, assuntos como esses já não são temas de discussão. Exercer jornalismo é o direito de informar, comunicar, o direito das pessoas falarem, opinarem. A comunicação social é plural, o respeito ao direito de divulgar informação, de informar sobre cultura, política, enfim… o direito de cidadania. As propostas do Estado são inconstitucionais e lesam gravemente a Constituição, no aspecto concernente à liberdade de imprensa. Os órgãos de comunicação públicos e privados devem ser independentes, se quisermos ter uma imprensa pluralista e isenta. O direito à informação não pode depender de um Ministério que funciona como polícia, para os controlar. Eles devem subserviência apenas à lei e à Constituição.

 

Mas, no nosso caso concreto, temos a ERCA a regular o exercício do jornalismo.

Mas o que a ERCA faz em Angola? Já passou o tempo de continuar a ter uma Entidade Reguladora da Comunicação Social que funciona como uma espécie de representação de partidos políticos, que quase nada faz em defesa da liberdade de imprensa. A imprensa tem que fiscalizar as actividades do Executivo, funcionar como verdadeiros barómetro da democracia. Feito de outra forma, o país nunca vai evoluir e nem tão pouco alcançar o progresso que tanto almejamos para Angola e os angolanos.

 

Acha que a ERCA já não se adequa ao momento actual?

Como já disse, defendo a criação de um novo órgão regulador da imprensa em Angola. Seria óptimo que isso acontecesse, mas se a opção for manter a ERCA, que assim seja desde que passe antes por mudanças profundas em relação ao seu figurino actual. Continuar com uma ERCA no formato actual é o mesmo que asfixiar a comunicação social, a favor de dois ou três partidos.

 

Por outras palavras, não temos liberdade de imprensa?

Podemos ter, mas é muito negativa a avaliação que faço em relação à liberdade de imprensa. Estamos muito atrasados em relação aos outros países da região. Provavelmente, estamos no fim da lista.

Tribunal Constitucional vs Partidos políticos/Sub

 

Os partidos políticos reclamam muito sobre supostas interferências do poder judiciário nos seus assuntos internos. Não acha um exagero estas reclamações?

Vou responder essa sua questão com outra pergunta. No âmbito da Lei Orgânica que rege o seu funcionamento, que competências tem o Tribunal Constitucional para inibir que uma decisão tomada num partido político seja considerada não efectiva?

 

O Tribunal Constitucional não tem prerrogativas para interferir nas decisões internas dos partidos políticos?

Obviamente que não. As decisões dos partidos políticos são a manifestação da vontade dos seus militantes e onde o Tribunal Constitucional não tem poder deliberativo. A intervenção do Tribunal Constitucional neste quesito apenas é permitida quando há o registo de alguma desconformidade com a lei. Um congresso, por exemplo, é uma deliberação dos militantes dos partidos políticos. O Tribunal Constitucional só entra nestas questões se houver alguma violação dos direitos fundamentais, políticos ou da Constituição. Eleições em partidos políticos são deliberações dos partidos políticos e a decisão de validar ou não, não passa pela interferência do Tribunal Constitucional.

Eleições autárquicas?/sub

 

O que está na origem dos atrasos que continuam a inviabilizar a aprovação da lei que institucionaliza as autarquias?

Ao contrário do que muitos pensam, os atrasos em nada têm a ver com uma suposta interferência do Governo. Na verdade, não está a ser fácil a aprovação do projecto de lei das finanças públicas sobre as autarquias locais que vai de facto definir um novo quadro sobre a implementação das autarquias, como a grande questão do momento, ou melhor, a mais importante da actualidade.

 

Por que mais importante?

A autarquia local poderia ser implementada a qualquer momento, mas não estaríamos a fazer nada se não houver cabimentação financeira para a sobrevivência das autarquias. Essas são as discussões que estão a ser realizadas no quadro do poder legislativo que vai fazer com que as autarquias apenas tenham lugar quando as condições estiverem criadas.

 

As dificuldades estão na questão da autonomia financeira das autarquias?

Para ter autonomia financeira e administrativa, é preciso haver uma lei para regular essa autonomia financeira, no caso, a lei das finanças públicas sobre as autarquias locais. É necessário definir como as autarquias vão funcionar, se conseguem sobreviver de forma auto-sustentada ou vai ser necessário a intervenção do Estado para suportar todas as suas despesas ou apenas parte delas.

 

Já existe uma redefinição do quadro jurídico-administrativo sobre as autarquias?

Esta questão já foi ultrapassada, o que está a faltar neste momento é a definição dos municípios onde vão ser implementadas as autarquias e os que estão em melhores condições para fazê-lo.

 

Pelo que tudo indica, a questão do gradualismo foi ultrapassada?

Por achar que o gradualismo representava um dos grandes entraves ao avanço das discussões, o legislador constituinte entendeu por bem retirar esta matéria da Constituição.

 

Quer dizer que as datas para as eleições autárquicas podem ser anunciadas a qualquer instante?

Pelo que sei, foi recentemente criada uma comissão para viabilizar as condições para a implementação das autarquias e acredito que, a breve trecho, as eleições podem ser convocadas.

 

A UNITA lidera a Comissão para os assuntos autárquicos…

Para mim foi uma estratégia bem pensada do Chefe de Estado. A UNITA é a que mais gritava e a determinada altura chegou-se a pensar que o MPLA é que manipulava as coisas para evitar ou retardar o mais possível a realização das eleições autárquicas. Para ver como as coisas são, decidiu-se entregar a liderança da Comissão ao Galo Negro e creio que as dúvidas ficaram sanadas.

Demolições violam os direitos fundamentais/Sub

 

A seu ver a quem deve recair o ónus da culpa em relação às demolições que se assistem em alguns municípios de Luanda?

A julgar pela forma como estão a ser conduzidas, as demolições desenfreadas que se assiste um pouco por todos os cantos de Luanda violam os direitos fundamentais do cidadão. As administrações públicas não têm competência para fazer demolições. Essas são competências atribuídas única e exclusivamente aos tribunais. No exercício das suas funções, a administração pública deve ater as suas atenções à administração da coisa pública e remeter os litígios aos tribunais para os devidos efeitos. Ao proceder como está a fazer, a administração pública lesa os direitos fundamentais dos cidadãos. Não precisamos disso. Temos muitos problemas por resolver, não precisamos criar outros. Considero as demolições um grande problema que traz ao de cima muitas perguntas sem resposta, a começar pelas próprias administrações municipais, com a fiscalização a cabeça. Esses é que deveriam ser responsabilizados pelas construções anárquicas que se registam na nossa cidade capital. Onde é que andavam as administrações municipais quando essas obras iniciaram? Acho que antes de iniciar com as demolições as administrações deveriam ser responsabilizadas pela inércia ou cumplicidade neste tipo de práticas. Porque os bairros nascem do dia para a noite e ninguém faz nada para conter esse mal.

 

Considera os serviços de fiscalização o principal responsável por esses ilícitos?

A fiscalização é só o elo mais fraco. E já agora pergunto, quem é que passa as autorizações de construção? Tem que ser alguém dentro das administrações, outra entidade não poderia ser. Este é um grande problema que se vive em Luanda e que, apesar de perdurar há muitos anos, nunca ninguém conseguiu tirar o chapéu desta viúva, porque há muito boa gente que vive disso.

 

O Estado falha nas suas políticas de gestão de espaços?

Isso já é um assunto de domínio público. Associada à corrupção, temos as interferências em forma de ordens superiores, a desorganização associada à indisciplina estrutural na gestão dos espaços públicos. Como surgiram os zangos e outros bairros que foram crescendo de forma desordenada em Luanda? Eram zonas urbanizadas, veja agora o estado em que se encontram. O problema não é do cidadão que constrói. É de quem tem poder, que em vez de mitigar ou ajudar a mitigar o problema, utiliza as ordens superiores para facturar.

 

O mesmo aconteceu com as reservas fundiárias?

Há coisa de 10 anos, haviam em Luanda várias reservas fundiárias. As placas com os dizeres “reserva fundiária” podiam-se encontrar em certas zonas da cidade. Onde é que andam estes terrenos? Os terrenos desapareceram sob o silêncio das autoridades. Muitos condomínios surgiram de forma inexplicável nestes espaços sem qualquer informação adicional para aos ilustres contribuintes.

 

Quer dizer que a responsabilidade não é só das administrações?

Elas também têm a sua quota-parte de responsabilidade nas construções ilegais, mas há também as interferências que, muitas vezes, os administradores não conseguem controlar. Quando tentam fazê-lo, vêm na calada da noite as chamadas telefónicas com as ameaças do tipo: “Olha, ou o senhor se cala definitivamente ou vamos tomar outras medidas!”.