Luanda - Quase todos os angolanos já leram essas manchetes: “Negligência médica acelera mortes nos hospitais de Angola” (DW), “Falta de medicamentos e negligência ‘aceleram’ morte nos hospitais de Angola” (Público), “Hospitais angolanos sem financiamento e com elevada mortalidade, denuncia sindicato” (Ver Angola), “Hospital do Prenda admite negligência médica na morte de paciente e suspende equipa de serviço” (Novo Jornal), “Angola: Mortes evitáveis em hospitais por falta de recursos” (DW), “Paciente morre no Hospital Geral do Moxico por alegada negligência médica” (Angop), “Cidadã morre por alegada negligência médica no Hospital do Calumbo” (O País), “Familiares de mulher morta no bloco operatório da Maternidade Augusto Ngangula clamam por justiça” (Diário Independente) e “Suspensa equipa médica no hospital do Prenda após morte de paciente” (Jornal de Angola).
Fonte: Club-k.net
Como chegamos a esse atraso civilizacional? Por que banalizamos a vida do angolano?
Hospital Geral de Cacuaco – Heróis de Kifangondo
Há 10 dias, eu também estou a viver esse problema! Há 10 dias, a minha família está mergulhada no caos! Aos poucos, a minha família está a ser dilacerada! Se nada for feito, nos próximos dias, vocês poderão ler matérias nos jornais sobre o assunto que está despedaçar a minha família. Então, como cidadão angolano, directamente impactado pela situção, decidi fazer algo a respeito: escrever este texto para denunciar os actos que levam os hospitais mantidos com os nossos impostos a “brincarem com a nossa cara”. Porque, o mal triunfa quando as pessoas de bem se calam!
A história: Na terça-feira, dia 22 de Abril, acordei a pensar que seria apenas mais um dia normal. O sol já entrava pelas frestas da cortina, e o barulho dos carros na rua lembrava-me que a cidade Luanda nunca pára. Tomei um banho rápido, vesti-me apressado e comi ginguba com bombó frito e kissangua, como de costume. Tinha compromissos com a empresa e precisava resolver a renovação da certidão comercial de uma das startups que lidero no Guiché Único de Empresas, na Nova Marginal, bem no coração da capital do país, Luanda.
Peguei os meus documentos e saí, a pensar apenas nos prazos, nas reuniões, nas mensagens acumuladas no WhatsApp. Naquele momento, a vida seguia como programado.
Cheguei ao Guiché, tirei a senha, fui chamado e sentei na frente da atendente. A sala não estava muito cheia. Paguei o serviço ao Estado, utilizando o ATM interno do Guiché. O Guiché é um lugar agradável, com o som abafado das impressoras, o burburinho das conversas, aquele cheiro de papel, suor e café. Eu estava ali, concentrado, enquanto a funcionário digitava lentamente os dados no computador.
Foi quando o telefone vibrou no bolso. Uma vez. Depois outra. Peguei o aparelho. No visor apareceu: “Mãe Adriana Tenguna.”
Franzi a testa. Ela não costuma ligar assim tão cedo, no meio da manhã. Meu coração acelerou num estalo silencioso. Deslizei o dedo e atendi.
— Oi mãe... tá tudo bem?
Do outro lado, silêncio. Só o som trémulo da respiração acelerada dela.
— Filho... — a voz dela saiu embargada e quebrou logo nas primeiras palavras — eu... eu não queria te ligar tão cedo assim... mas não tinha como esperar. O teu pai... o teu pai Gabriel está hospitalizado no novo hospital da Centralidade do Sequele.
Inaugurado a 19 de Julho de 2024 pelo Presidente da República, João Lourenço, o Hospital Geral de Cacuaco – Heróis de Kifangondo é uma unidade hospitalar pública localizada na Centralidade do Sequele, no município do Sequele, província do Icolo e Bengo.
Meus músculos se contraíram todos de uma vez. Senti o tempo parar. O pai Gabi é o irmão cassula da minha mãe biológica, a dona Engrácia Tenguna. E, de acordo com a nossa tradição de Camabatela, Ambaca, ele é meu pai legítimo. O pai Gabi é um dos jovens mais incríveis que conheço. Uma pessoa de fácil trato, sempre amigável e sem inimigos.
— Como assim, mãe? O que houve? — perguntei.
— Ele está hospitalizado desde o dia 16 de Abril e piorou... estão a dizer que é grave. Ele tá no quarto 2.31, cama 3, 2º andar... e o meu irmão não está bem...
O som do choro dela atravessou o meu ouvido e atingiu o peito como uma lâmina. Fiquei mudo por alguns segundos, a tentar segurar tudo dentro de mim. Mas já era tarde. O nó na garganta, a vertigem e o desespero venceram-me.
— Mãe... e o que os médicos dizem? — perguntei.
— Os médicos não dizem nada o que ele tem... mas ele tá muito mal... eu tó com medo...
— Fica calma, mãe! Ele vai ficar bem, tá? Fica calma...
Desliguei. Fiquei uns segundos parado, a sentir o mundo a desabar ao meu redor. E depois, só o impulso de correr. Levantei-me sem pensar. Deixei os papéis sobre a mesa, a atendente chamou-me, mas já era só ruído. Tudo se dissolveu. Só restou a pressa, o medo e a urgência. Passei pela porta do Guiché como se fugisse de algo
— ou como se fosse salvar alguém.
Os meus olhos ardiam. Não era poeira. Era outra coisa. Um medo antigo, uma dor que carrego desde quando perdi o meu irmão no hospital do Prenda.
Enquanto o motorista dirigia o carro do aplicativo, liguei para alguns médicos amigos e todos foram unânimes: É melhor manter o seu pai no hospital público, porque as clínicas privadas são um desastre, onde falta de tudo!
Meu Deus!, pensei.
Conectei alguns jovens da família: irmãos, irmãs e primos para uma reunião online, a fim de encontrar uma solução urgente. As informações eram desanimadoras. Ficamos revoltados ao saber que o nosso pai só estava a ser tratado com soro, balões e balões de sangue. Os médicos não tinha a mínima ideia do que o nosso parente padecia. Então concluímos que a melhor maneira salvar a vida dele, seria tirá-lo do hospital público e interná-lo nas conhecidas melhpores clínicas do país, que são a Multi Perfil, a Girassol ou a Endiama.
Era necessário agir rápido! Foi o que fizemos.
Clínicas de capital público, mantidos com os nossos impostos
Clínica Girassol
A minha primeira atitude foi pegar o telemóvel e aceder o website da Clínica Girassol. Para o meu espanto, a clínica não tinha nenhum número de telemóvel, apenas fixo. Liguei para o primeiro número e uma voz feminina atendeu-me. Contudo, ela deu-me um segundo número fixo, dizendo-me que era o apropriado para minha necessidade. Logo percebi que aquela clínica não era para meros mortai s, apesar de ser mantida com os nossos impostos do OGE, cuja fonte de financiamento são os recursos naturais de todos os angolanos.
Liguei para o segundo número, que chamou uma eternidade e quando atenderam, uma voz masculina fez-se ouvir. O atendente, parecia de outro planeta. Não sabia dar-me informação nenhuma, foi uma perda de tempo.
Clínica da Endiama
Desliguei e acedi o website da Clínica Sagrada Esperança, vulgo Clínica da Endiama. O número de telemóvel, apesar de prometer atendimento 24/24h, tocou uma eternidade e ninguém atendeu.
Clínica Multi Perfil
O atendimento foi bastante solicito e atencioso. Para o banco de urgência, informou que seriam necessário Kz 80.000,00 (Oitenta Mil Kwanzas) e caução de Kz 650.000,00 (Seiscentos e Cinquenta Mil kwanzas) de internamento, que pode variar de acordo com a evolução do paciente.
Voltamos a realizar uma reunião familiar online, conectando todos no mesmo propósito. Durante a reunião, cada um dos participantes contou a sua experiência com as clínicas. Dessa reunião, dois pontos que dificultariam as nossas intenções, ficaram claros:
1º Quando você tira um paciente de um hospital público para uma clínica mediante a assinatura de termo de responsabilidade, corre-se o risco de vaguear com o paciente, caso a clínica não tenha êxito e seja necessário retornar ao hospital público. O hospital público não aceita o paciente de volta.
2º Os gastos nas clínicas são um absurdo sem precedentes. Muitas clínicas mantém o paciente já morto em aparelho, escondidas numa farsa de que a pessoa está viva, enquanto cobram somas avultadas à família.
Colocamos os pros e os contras na balança e decidimos manter o nosso paciente no hospital Heróis do Kifangondo, no município do Sequela.
O descaso do hospital Geral de Cacuaco – Heróis de Kifangondo
De acordo com informações que tivemos acesso, o hospital dá tudo ao paciente. Desde roupa, comida, água, remédios, etc.
Porém, as informações que recebemos na reunião familiar de ontem (24/04) foram devastadoras. Quando o membro da nossa família — ocultei o nome de propósito — terminou de dar o relatório, houve um silêncio e depois choros.
Não tínhamos informação sobre que doença o pai Gabi enfrentava. É doação de vários balões de sangue. Toda hora sangue! Toda hora sangue! E os médicos sem saber o que o pai Gabi tem.
Até ontem, dia 24 após vários dias, nenhum exame os médicos nos apresentaram. O pai Gabi está entubado e os médicos dizem sem certeza nenhuma, de que é suspeita de malária aguda, câncer, diarreia seca ou hepatite.
Hoje entendo porquê as famílias passam as noites à frente dos hospitais. A minha mãe está assim! Ela está esquelética, dormindo ao relento! Não confiamos nos médicos, porque mais parecem amigos da maldita morte do que do angolano igual.
Nunca vi barra tão pesada da incompetência angolana, com doentes maltratados nos hospitais, descaso e desespero que dilacera as famílias. A nossa família está à beira de um colapso nervoso. Já vivi vários anos no exterior e não sou criança, mas parece que estamos em Gaza — um daqueles lugares mortos onde a saúde coclapsou por causa da guerra. Está claro para mim que aqui já vivemos uma “pós-miséria” incurável, angolanizada. A miséria se aprofundou.
Chocado, sentei-me para escrever este artigo. Comecei a fazer reflexões “sensatas” sobre o que fazer, na base do “precisamos” disso, “precisamos” fazer aquilo, precisamos tomar providências, etc. “Precisamos”. De repente, bateu-me: para quem estou a falar? A quem queixo-me? A quem recorrer? As minhas perguntas caem no nada. Como fazer as instituições reflectirem e agirem, se a pós-miséria atinge não somente os miseráveis, mas degrada as maneiras de combatê-la?
São duas misérias que interagem no nosso dia-a-dia, acopladas: a activa (política) e a passiva (os desgraçados). Criadores e criaturas.
Se o pai Gabi morrer, a sua morte ficará sem respostas, porque não há o que responder e como responder. Quem? Uma ministra da saúde enjaulada no “luxuoso Lexus”, que usa a militância partidária como escudo para manter-se no cargo? Quem? O médico que maltrata os pacientes, cujo jaleco já testemunhou horrores?
Por isso, escrevo este artigo pessimista, sim; quem achar deprimente, pare de ler. Mas tenho de continuar; não sei bem para quê nem para quem. Mas escrevo…
A brutalidade dos médicos irresponsáveis, que são agentes do mal, atingiu a minha família de forma severa. O absurdo de tratar o pai Gabi com soro e infinitas saquelas de sangue é um crime contra a humanidade.
Não adianta ficar a repisar os óbvios erros desse Ministério da Saúde, que deixarão sombras terríveis para quem vier — seja o seu filho ou o meu. O sistema de saúde (será que temos um?) desenhado pela ministra Sílvia Lutucuta é medíocre. “Os seus erros são tão sólidos que chego a pensar que visam exterminar os angolanos pobres”. Isso já está diagnosticado, mas os supostos intelectuais dirão: “Está tudo bem, o país está maravilhoso”. E assim vamos.
Já entramos numa pós-desumanização do angolano e numa pós-miséria sem precedentes — essa é a minha tese. Há uma banalização da nossa desgraça, a ponto de ela não ser mais reversível. E não era assim. A Angola dos nossos ancestrais sempre contou com a possibilidade de melhorias. Os nossos ancestrais sempre viveram o suspense e a esperança de que algo iria mudar para melhor.
Mas os nossos hospitais estão acabados. O hospital do Sequele é novo, mas dirigidos por pessoas com mentalidade antiga. É possível que tenhamos caído do “terceiro mundo” para o “quinto mundo”, como já nos consideram analistas do exterior. O “quinto mundo” é a paralisação das possibilidades. Não adianta erguer hospitais novos! Quem vai salvar as centenas de pessoas negligenciadas nos hospitais públicos, de Cabinda ao Cunene? Quem vai permitir que as clínicas da Endiama, Multi Perfil, Girassol e outras, mantidas com o nosso dinheiro, tratem os ricos, mas tenham também alas de atendimento para os pobres deste país? Quem vai ajudar a impedir que o pai Gabi não morra no hospital do Sequele?
Já usufruímos meio século da estupidez política para manter os privilégios deles. Já tivemos “salvadores da pátria” que sempre nos ferraram desde Mário de Almeida Kasesa, que foi ministro da Saúde entre 1975–1977, até Sílvia Paula Valentim Lutucuta, ministra desde 2017–presente. E deu em nada. Como infiltrar nos ministros de saúde o espírito patriótico do Rei Ngola Kiluanji Kia Samba? Da Rainha Njinga Mbandi? Do Rei Kiluange kia Henda? Do Rei Lweji a Nkonde? Do Mutu ya Kevela? Hoje, é tarde demais!
E aí? Perguntarão os leitores desse artigo! Bem… É possível que a Rainha Njinga Mbandi incarne o seu espírito em Sílvia Lutucuta e volte. Será? Ela deve estar a analisar as possibilidades. Como a ministra só pensa em si mesma, se ela achar que vai melhor a saúde dos angolanos, não permitirá.
Se a ministra Sílvia Lutucuta é incompetente, então o presidente da República, João Lourenço deve ter a coragem de tirar do poder essas pessoas que se julgam os “donos do país”. Então, lembro-me da metáfora de Oswald de Andrade, de que “as locomotivas estavam prontas para partir, mas alguém torceu uma alavanca e elas partiram na direcção oposta.”
O que fazer? Ninguém sabe. Mas é difícil imaginar esse país por mais 50 anos. Se bobear, o país acaba antes.
Desculpem a depressão e boa sorte a todos os que sobreviverem…
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O autor
Ribeiro Tenguna é escritor, membro da Brigada Jovem de Literatura de Angola e do Grupo Experimental da Academia de Letras do Brasil. É Engenheiro de Computação, Psicanalista Clínico, Teólogo e mentor de negócios da Fundação Tony Elumelu. Tem especialidade em Resolução de Conflitos e MBA-Master in Business Administration pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).