Luanda - O processo de implementação das autarquias locais constitui o aprofundamento da democracia a nível local. A sua implementação arrasta-se há vinte e seis anos. Com o fim da guerra em 2002, Angola passou a poder criar as condições para a implementação das autarquias locais. Há vinte anos foi preparado um conjunto de medidas que deveriam passar à fase de concretização. Todavia, o trabalho que nesse quadro contou com a participação de peritos desapareceu da agenda política e foi ocultado dos cidadãos e das cidadãs da República ?

Fonte: Club-k.net

ImageO partido que governa o país tem protelado a implementação das autarquias locais, escudando-se na maioria que detém no Parlamento, esquecendo-se, contudo, que detém apenas um mandato do único e verdadeiro soberano, os cidadãos e cidadãs da República de Angola, que têm ideias, pensam e tem um sentido de justiça! Essa maioria eleitoral, que em menos de seis meses assumiu que consultaria o seu mandate, os cidadãos e cidadãs da República, para decidir sobre dois assuntos de interesse público, a saber, o repatriamento de capitais e as autarquias locais. A prática está a demonstrar que essa intenção não passa do mais grosseiro embuste. Na primeira consulta, o Grupo Parlamentar desse partido afirmou publicamente ter consultado pessoas. Tão séria e verdadeira foi tal consulta, que nem na mais clara calada da noite não existiram testemunhas oculares dessa consulta. Na segunda consulta, a emenda está a ser pior do que o soneto. A administração João Lourenço, cujos pilares são o partido, apresenta ao soberano, aos cidadãos e cidadãs da República, um pacote de propostas de leis, na sua maneira de estar na política, perfeitas e imaculadas, cabendo ao soberano apenas o papel de exaltá-las e polir a superfície.


Perante a crítica de vários sectores da nossa sociedade destacando-se a crítica segundo a qual uma consulta não é uma aula de soletração aos meninos e meninas na iniciação à leitura, a maioria eleitoral tentou inverter o formato da sua didática e pedagogia da prática política! Todavia, essa suposta inversão revelou-se cosmética.

 

O processo de implementação das autarquias locais (administrações municipais autárquicas) começou como sendo um nado morto, por causa dos vícios de forma e procedimento. A representação que deve ser um acto de contínua auscultação do representado (o soberano: cidadãos e cidadãs) pelo representante (Executivo e Parlamento) foi inquinada desde o princípio. Não se surpreende bondade na forma e no procedimento da maioria eleitoral no que ao processo de discussão pública diz respeito. Pior! Gritante mesmo é a suposta bondade do conteúdo das soluções que essa maioria eleitoral apresenta ao soberano como o sumo bono!

 

O soberano fica a saber pela boca da maioria eleitoral, que há quarenta e dois anos se assume como infalível e omnisciente, que em Angola não existem pessoas capazes para assumirem o poder autárquico nem recursos financeiros suficientes para sustentar a administração local autónoma. Afinal o que tal significa e o que está em causa?

 

Angola dispõe já de administrações municipais e estas funcionam com mais ou menos recursos financeiros. O que mudaria se as administrações municipais existentes passassem a ser administrações municipais autárquicas (administrações autónomas)? Os administradores municipais passariam a chamar-se autarcas; seriam directamente eleitos pelos munícipes; deixariam de estar subordinados ao poder central do Executivo (deixariam de receber ordens do Executivo); para cobrirem as despesas do município continuariam a receber uma parte proveniente do orçamento geral do Estado e outra parte passaria a ser arrecadada localmente por via de taxas e de impostos.

 

As actuais administrações municipais cobrem as suas despesas essencialmente por via do orçamento geral do Estado. As administrações municipais autárquicas podem começar, numa primeira fase, por cobrirem as suas despesas por via do orçamento geral do Estado e, gradualmente, começar a cobrança local de taxas e impostos. O que impede que assim seja feito? A autonomia das administrações locais autárquicas é essencialmente de natureza político- administrativa. A autonomia financeira das administrações municipais autárquicas (arrecadação de receitas próprias) pode ser, gradualmente, construída, com recursos locais. Todavia, competirá sempre ao Estado, por via do orçamento geral do Estado, prover parte dos recursos financeiros das administrações municipais autárquicas.

 

O problema de existirem municípios pobres pode ser resolvido com a reorganização de municípios. Podem ser eliminados municípios e criados novos municípios abarcando as parcelas de território dos antigos municípios.

 

O delírio do poder absoluto continua a ser te tal magnitude na cultura política do partido no poder que a maioria eleitoral não se coibiu de anular a autonomia do poder local, consagrando na Constituição a tutela de mérito, que agora o legislador ordinário quer fazer prevalecer por algumas décadas. Uma coisa é a tutela de legalidade, isto é, o poder Executivo deter a capacidade de verificar se os actos da administração municipal autárquica estão de acordo com a constituição; outra, bem diferente, é a tutela de mérito. Diogo Freitas do Amaral define da seguinte maneira a tutela de mérito: “Quando averiguamos do mérito de uma decisão, estamos a indagar se essa decisão, independentemente de ser legal ou não, é uma decisão conveniente ou inconveniente, oportuna ou inoportuna, correcta ou incorrecta do ponto de vista administrativo, técnico, financeiro, etc. – tudo aspectos, estes, que não têm a ver com a legalidade da decisão, mas com o seu mérito” (2016: 731). Em bom rigor, a averiguação do mérito das administrações municipais autárquicas é da competência dos cidadãos-eleitores e cidadãs-eleitoras e não do poder Executivo. No que ao mérito diz respeito, quer o poder Executivo quer o poder Local (administrações municipais autárquicas) devem ter como examinador do mérito apenas as cidadãs-eleitoras e os cidadãos-eleitores!

 

A maioria eleitoral no poder, que não deve ser confundida com o soberano, na sua pretensão de infalibilidade, omnisciência e sabedoria, confunde legalidade com direito justo. O facto de ter consagrado o gradualismo e a tutela de mérito do poder Executivo sobre o poder Local nos termos e com o alcance interpretativo que se está a fazer, ainda que transitoriamente, mais não é do que um puro facto, sim isto mesmo, um acto de pura força! Mas, jamais direito justo em harmonia com o ADN da ideia do Estado democrático de direito, que constitui um padrão que nos permite aferir a bondade intrínseca do que está escrito nas constituições. Aliás, a Constituição em vigor é uma aberração na sua identidade: incorpora elementos como sejam uma carta de direitos e liberdades da pessoa humana, mas, ao mesmo tempo presta-se à potenciação de um ditador, um presidente que pode, em função dos resultados eleitorais e da liderança de um partido, para além de ser o titular unipessoal da administração, mandar no Parlamento, sem freios e contra pesos ao seu poder, e que não é responsável pelos actos praticados no exercício das suas funções, à excepção de alguns (poucos) actos.

 

As pessoas subscritoras deste grito entendem que é tempo de as pessoas de boa vontade dizerem basta a uma maioria eleitoral que se autointitula infalível, omnisciente e sábia. Os resultados dessa pretensão de infalibilidade, omnisciência e sabedoria ressaltam à vista desarmada na precariedade do saneamento básico, nas epidemias como sejam a cólera, a febre-amarela, a malária, no estado degradante e desumano dos hospitais, na qualidade sofrível do ensino básico, técnico e superior, nos salários de miséria, enfim, no subdesenvolvimento em que vive a esmagadora maioria das angolanas e dos angolanos dos nossos dias!

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