Luanda - Irene Alexandra da Silva Neto é filha de António Agostinho Neto, primeiro Presidente de Angola. Em entrevista ao Jornal de Angola, diz que quase nada se fala sobre o pai. A este diário, ela fala sobre alguns momentos marcantes da vida do pai, que, se estivesse vivo, completaria hoje 96 anos, e sobre o que a família passou depois da sua morte. Irene Neto acredita que se Agostinho Neto não morresse prematuramente, o país teria sido pacificado em 1979 ou 1980 porque ele já estava a negociar com os americanos e sul-africanos e tinha iniciado contactos para dialogar com Jonas Savimbi. Irene considera a morte do pai um assunto obscuro que apenas será desvendado no futuro. A filha de Neto defende a clarificação dos factos sobre a data da fundação do MPLA e diz ser hora de reconhecer os feitos de todos os que contribuíram para a emancipação de Angola.

Fonte: JA

Dra quais são, para si, os momentos marcantes da vida de Agostinho Neto no ambiente familiar e na política?
Na sua vida familiar, terão sido, em minha opinião, a conclusão do seu curso liceal que foi bastante demorado por razões familiares, o trabalho como funcionário da administração pública colonial nos serviços de saúde e o choque com a realidade social em Malanje e no Bié, onde foi confrontado com problemas raciais; a morte do pai em 1944; a licenciatura em Medicina em Lisboa intervalada de prisões; o seu casamento com Maria Eugénia da Silva em Lisboa e o nascimento dos seus filhos, suponho eu. Na política, sem sombras de dúvidas, terá sido a conquista e a proclamação da Independência de Angola depois de ter liderado a luta de libertação nacional. Mas muitos outros episódios o terão marcado no longo percurso desde as prisões ao degredo nas ilhas solitárias e isoladas de Cabo Verde, aos amigos que fez para toda a vida durante os anos universitários, a experiência de vida estudantil e de luta académica e política na Casa dos Estudantes do Império, no MUD Juvenil em Portugal, na criação do Clube dos Marítimos, do Movimento Anti-Colonial, das tertúlias no Centro de Estudos Africanos e a criação das diversas formações políticas por onde passou e se foram criando como balões de ensaio para chegar ao objectivo final de ser livre: CONCP, MINA, MPLA. As batalhas diplomáticas e lenta progressão da guerrilha durante a luta de libertação nacional. O regresso a Angola. Sem dúvida, o regresso apoteótico a Luanda, tão cantado em “Havemos de voltar”. A vitória sobre o exército sul-africano em 27 de Março de 1976, celebrado com um novo Carnaval. As vitórias das campanhas de alfabetização. O julgamento dos mercenários. A trágica tentativa de golpe de Estado de 27 de Maio de 1977. O esforço titânico para acabar com a guerra em Angola.

O que acha que ainda não foi dito sobre Agostinho Neto?
Quase tudo. As pessoas não conhecem a sua biografia nem a sua história. Nunca foi escrita a biografia de Agostinho Neto. Mas teremos novidades dentro em breve. A sua obra poética tem sido estudada mas ainda falta o estudo da sua vastíssima obra política. A visão política de Agostinho Neto é muito pouco conhecida. O esforço da Fundação já está a produzir frutos. Mas ainda estamos no começo de uma longa jornada intelectual e de divulgação das suas ideias. O amor que Agostinho Neto tinha pelo seu povo e pela sua terra e a sua rectidão ética e qualidade moral continuam ímpares e únicas em Angola.

Como é que a família recebeu a decisão do MPLA de aprovar um estatuto que confere a Agostinho Neto e a José Eduardo dos Santos o título de “presidente emérito” do MPLA?
A família considerou inoportuna, desnecessária e desapropriada a atribuição dos títulos propostos porque o momento da sucessão na liderança no seio do MPLA não se deveria centrar no Presidente António Agostinho Neto e sim nos Presidentes cessante e eleito do MPLA. O Presidente Agostinho Neto já tinha sido homenageado como Presidente Honorário do MPLA em 1961, condecorado com a Ordem do Herói Nacional em 2 de Dezembro de 1977, com a Ordem do Herói Nacional do Trabalho em 2 de Outubro de 1978, a Medalha 1º de Agosto em 30 de Julho de 1990, a Medalha de Combatente da Luta Clandestina em 13 de Agosto de 1990, a Medalha de Guerrilheiro do MPLA de 1ª classe, na mesma data, e a Medalha dos 50 Anos do MPLA aos 10 de Dezembro de 2006. Consideramos que Agostinho Neto, militante de reconhecida distinção e mérito,foi Presidente do MPLA durante a luta de libertação nacional, conquistou a Independência, fundou a Nação angolana e governou a 1ª República. Logo, a sua homenagem devia ser singular e distinta dos demais Presidentes do MPLA. Felizmente, este ponto de vista foi adoptado pelo MPLA e anunciado pelo Presidente João Lourenço no discurso de encerramento do VI Congresso Extraordinário do MPLA, realizado no passado dia 8 de Setembro e ocorrerá numa data de relevância como será o Centenário de Agostinho Neto em 2022.

 

A Dra. Irene Neto, na qualidade de filha de Agostinho Neto, está plenamente satisfeita com a homenagem que o Estado fez até hoje à figura do primeiro Presidente de Angola?
Houve em certo momento da nossa vida recente, uma tentativa de amnésia selectiva quer de Agostinho Neto quer da luta de libertação nacional. Considero injusto e pecaminoso esse processo de roubar os alicerces da nossa identidade nacional revolucionária e deixar vulneráveis as gerações pós-Independência, sem conhecimento, sem referências positivas, sem orgulho nacional, sem auto-estima, desmemoriados,desnorteados e deserdados da sua ascendência combativa e atreitos a futilidades e vícios destrutivos.

Como a família Neto viveu o processo de luto, sobretudo, nos primeiros dias do desaparecimento físico de Agostinho Neto?
Dificilmente. Foi uma morte abrupta, não anunciada, apesar do meu pai já estar doente. O facto de nos terem mantido a todos, população e filhos, à margem da sua doença e de ter partido para Moscovo sem se despedir de nós, foi devastador. Mais ainda quando tomaram a decisão unilateral de ser operado e não nos mandaram chamar. Apenas a minha mãe e a tia Ruth estavam em Moscovo, por parte da família. As outras pessoas eram do MPLA. Sermos filhos não nos dava o privilégio de sermos informados. Como se a saúde do meu pai fosse apenas um assunto de Estado. Considerei uma cobardia essa atitude. Até para nos darem a notícia da sua morte, esperaram pelo anúncio público através da Rádio Nacional de Angola. Sinceramente! E depois foram 13 exéquias fúnebres de 1979 a 1992, sujeitando-nos ao trauma de reviver o luto, todos os anos, publicamente e em directo para as câmaras da TPA.

Quem já a ouviu falar sobre Agostinho Neto ou lido textos com base em declarações suas fica com a nítida impressão de que a família se sentiu, em alguns períodos, abandonada pelo Estado. Esta leitura é correcta?
É. Não é impressão mas a pura verdade.

Foi pacífico o processo de transferência da família de Agostinho Neto da residência onde vivia, no Futungo de Belas, para a vivenda localizada no Miramar?
A transferência foi pacífica. O processo que levou à mudança, não o foi. Muitas dificuldades começaram a surgir com a nossa presença no Futungo, a quererem confinar-nos aos estritos limites do nosso jardim e a limitar a entrada dos nossos convidados. Já ninguém ousava visitar-nos pois tinham de enfrentar batalhões hostis da segurança, o que não era nada agradável e intimidava as pessoas. Começámos a ficar isolados. As entradas e saídas para a escola e faculdade tornaram-se um martírio e focos de atrito por vezes bastante fortes. Nós já tínhamos percebido que o nosso pai já não era o Presidente da República. Não por ter sido destituído. Morreu em funções. Mas é assim, novos chefes transformam toda a cadeia e os subalternos julgam que serão mais leais ao novel poder se maltratarem os anteriores dignitários. A grandeza das pessoas vê-se pela forma como tratam os outros, em quaisquer circunstâncias. Somos dignos de respeito e consideração estando ou não no poder. A não ser que tenhamos cometido crimes de lesa-pátria que não devem permanecer impunes.

É ou não verdade que a residência do Futungo de Belas foi oferecida por um português a Agostinho Neto? Caso seja verdade, quero que me diga se a propriedade foi restituída à sua família.
A casa do Futungo foi adquirida pelo MPLA para o Presidente António Agostinho Neto antes de 11 de Novembro de 1975. A propriedade continua connosco, assim como o antigo escritório do Presidente Neto, mas os imóveis necessitam de restauro urgente. A proximidade do mar traz desafios de conviver e combater o efeito corrosivo do salitre. Somos os curadores da história recente do país e temos noção da necessidade de preservação desse património tangível que se transformará em um marco museológico importante no futuro pois foi aí que o primeiro Presidente da República Popular de Angola exerceu as funções governativas. Qualquer dia esses imóveis serão necessariamente reconhecidos e classificados como património histórico da cidade e do país.

Que país teríamos se Agostinho Neto tivesse governado mais tempo?
Não teria ficado no poder durante 38 anos pois era sua vontade deixar a Presidência da República e ficar apenas no MPLA. As opções políticas e ideológicas teriam beneficiado as populações ao invés de privilegiar certas castas políticas ou económicas. Angola teria sido pacificada em 1979 ou 1980 e teríamos poupado o povo de tantas mortes e destruições. Agostinho Neto estava a negociar com os americanos e sul-africanos. E tinha iniciado contactos para falar com Jonas Savimbi. Já tinha falado com Mobutu Sese Seko que até visitou Luanda.

A Dra. Irene Neto já publicamente apresentou contestação da sua família à forma como alguns investigadores da História de Angola analisam o papel de Agostinho Neto na vaga de repressão ao movimento de 27 de Maio de 1977, tendo inclusive intentado uma acção judicial contra a já falecida historiadora Dalila Cabrita. O “27 de Maio” tem tirado sossego à família Neto?
O 27 de Maio é um dossier que diz respeito ao povo angolano, às super-potências da Guerra Fria e à forma como se traiu a revolução, 18 meses depois da Independência. É um cenário muito comum de intervenção externa em demasiados países do mundo. A nossa família sempre defendeu a ideia de se realizar uma comissão da verdade e reconciliação, para apurar a verdade, conhecer os factos e sarar as feridas, proposta hoje extemporânea. Não aceitamos de forma alguma o revisionismo actual e a narrativa de vitimização dos agressores que despoletaram uma resposta descontrolada que marcou um antes e um depois no processo de confiança na revolução angolana. Ainda não se sanearam as chagas abertas mas já é tempo para seguirmos em frente sem reminiscências doentias e ressabiadas no passado.

 

No VI Congresso Extraordinário do MPLA, João Lourenço identificou-se como o quinto presidente do partido, tendo aberto uma discussão à volta da verdadeira história do MPLA. Na sua opinião, foi feita uma correcção histórica ou concorda com os que dizem que o seu pai é o primeiro presidente do MPLA?
A história tem de facto de ser contada com rigor e esse processo deverá iniciar algum dia. Há maturidade suficiente para saber entender as estratégias políticas e tácticas de uns e outros na luta pela libertação nacional. O Manifesto escrito por Viriato da Cruz em 1956 é um marco histórico. A adopção da data de 10 de Dezembro de 1956 como data da criação do MPLA é uma convenção. O Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) é criado dentro e fora do país, em simultâneo em 1960. Deriva do Movimento da Independência Nacional de Angola (MINA) cujo líder era Agostinho Neto. É nessa altura que Manuel Pacavira é enviado por Agostinho Neto, de Luanda para Brazzaville, para contactar com camaradas como Lúcio Lara e outros e se decidem pela transformação do MINA em MPLA.Ilídio Machado era do PLUA. Em 1959, é preso pela PIDE, antes de conseguir reunir todas as organizações cívicas e políticas num só movimento. Não se pode dizer com rigor que foi o primeiro presidente do MPLA. Podemos afirmar que o primeiro presidente do MPLA foi Mário Pinto de Andra. De pois Agostinho Neto é preso em 8 de Junho de 1960. Assim, com rigor, o Presidente João Lourenço seria efectivamente o 4º presidente do MPLA. Mas se considerarmos a narrativa da criação do MPLA em 1956 e tivermos Ilídio Machado como presidente dessa formação política, teríamos cinco presidentes até à presente data. Confuso? Há que clarificar os factos sobre a data de fundação do MPLA. Seja como for, tornar conhecida a nossa história é um dever da nossa sociedade. E é hora de reconhecer os feitos de todos os que contribuíram para a emancipação de Angola.

 

Acredito que a maioria dos angolanos tem, há muito tempo, uma curiosidade: Agostinho Neto trouxe ao mundo três filhos, mas apenas um, no caso a senhora, tem uma vida com visibilidade pública. O que fazem os outros filhos?
Os meus irmãos vivem a sua vida.

 

Vai ao Memorial com alguma frequência?
Bastante frequência. Realizamos muitas actividades no Memorial e colaboramos sempre com o seu Conselho de Administração. Somos os guardiões de Agostinho Neto a quem estamos unidos por ser a nossa matriz, o nosso norte e a nossa bússola.

Alguma vez foi cogitada na família a possibilidade de os restos mortais de Agostinho Neto serem sepultados?
Esta hipótese foi sugerida há anos atrás quando o Palácio Presidencial entrou em obras de restauro e o corpo do Presidente António Agostinho Neto foi colocado no Mausoléu inacabado desde 1992 e por mais 13 anos, sujeito a intempéries e a condições indignas. As obras do Memorial retomaram em 2005 e o mesmo só foi concluído em 2011, 29 anos após o lançamento da primeira pedra, depois de ter havido vários descaminhos e desfalques das verbas orçamentais, e por persistência da família ante os atrasos e as tentativas de não o concluírem e removerem o corpo para um outro local.

 

Conservar um corpo embalsamado requer manutenções periódicas. Sendo um assunto de interesse público, quero que me diga o estado de conservação do corpo de Agostinho Neto.
É de interesse público saber que desde 1992 quando se transladou o sarcófago de Agostinho Neto, numa procissão a pé desde o Palácio do Povo, na Colina de São José, até à Praia do Bispo, abandonou-se o processo de embalsamamento do seu corpo. Há quem ainda acredite hoje que o seu corpo esteja embalsamado?

 

Embora nunca tenha havido um pronunciamento oficial do Estado angolano, a causa da morte de Agostinho Neto divide opiniões, com alguns a admitirem que tenha sido morto pela então União Soviética. Esta suspeição tem, para a família de Neto, alguma sustentação ou fundamento?
Este é um assunto obscuro que apenas será desvendado no futuro. No entanto, reservo-me o direito de questionar procedimentos e o desfecho da intervenção cirúrgica enquanto profissional de saúde.

 

A família de Agostinho Neto já admitiu a possibilidade de realização de exames forenses para que não se tenha mais dúvidas?
Obviamente que sim mas não há exames forenses possíveis quando ao corpo foram retiradas as vísceras antes de voltar a Angola num caixão, alegadamente para efeitos de embalsamamento e mumificação, e essas mesmas vísceras não nos foram entregues. A decisão de embalsamar e profanar o corpo do meu pai não foi tomada pela família em momento algum. Foi uma decisão do Comité Central do MPLA. Recordo-me perfeitamente da falta de respeito ante a morte do chefe, quando alguns médicos tiveram a incumbência de tratar do meu pai. Sendo médica, sei o quão insensíveis a nossa profissão pode tornar-nos, de tanto lidar com a morte e cadáveres. Mas o que ocorreu, para algumas dessas pessoas, não foi uma deformação profissional, foi mesmo uma deformação humana e política. Pessoas pequenas...

 

Quando Irene Neto decidiu entrar para a política activa, traçou etapas? Ou seja, ambiciona assumir o cargo que um dia o seu pai ocupou?
O nosso trajecto político é apenas a vontade de contribuir para o bem de Angola. É um compromisso geracional de honra para cumprir as metas traçadas para o desenvolvimento do nosso país e do nosso povo. Tenho tido a felicidade de viver uma vida multifacetada, em diversas áreas para servir as pessoas. Na medicina, no ensino, na diplomacia, na militância política e na cultura. Sou uma cidadã com direitos e obrigações. Não aceito ser menorizada nem discriminada. Julgo que tivemos mais velhos que não nos quiseram deixar viver plenamente, que foram egoístas e maléficos, que nos fizeram perder a nossa juventude, vigor e força, com histórias da carochinha de que era muito cedo, de que tínhamos muito tempo ainda. Ora, o tempo é algo que apenas se esgota, não fica em pausa à espera de ninguém. Podíamos ter feito muito mais e melhor. Agora, haverá ou não a oportunidade de vencer esses degraus, caso as circunstâncias se propiciem, decorrendo da necessidade ou vontade de ajudar o MPLA, se este quiser mudar de rumo e construir o país adiado e quase à deriva. É uma tarefa hercúlea que necessita de união e da congregação da vontade de todos os compatriotas e também de uma liderança adequada.

 

Que futuro tem o MPLA com João Lourenço à frente dos destinos do partido?
Não sou vidente, não sei qual será o futuro. Mas há várias opções e há esta oportunidade para mudar o estado das coisas e voltar a devolver ao MPLA a iniciativa e a liderança. O MPLA terá de voltar a ser a vanguarda do povo.

PERFIL

Irene Alexandra
da Silva Neto

Data e local de nascimento: 23 de Julho de 1961, em Lisboa
Estado civil: Casada com o economista, empresário e escritor angolano Carlos de São Vicente, mãe de três filhos e avó de uma neta

Formação académica
- 1965-1970: Escola primária no Congo Brazzaville e Tanganyika
- 1975-1977: Liceu Mutu ya Kevela
- 1977-1978: Pré-universitário
- 1979-1985: Faculdade de Medicina
- 1993-1997: Mestrado em Oftalmologia pelo Instituto Dr. Gama Pinto, em Lisboa

Cargos relevantes
- 2005-2008: Vice-ministra para a Cooperação no Ministério das Relações Exteriores (foi a primeira mulher a exercer esse cargo no pós-guerra)
- 2008-2010 e 2012-2017: Deputada à Assembleia Nacional, onde chegou a presidente da 7ª Comissão
- 2010 - Membro da Comissão Constitucional